10 de janeiro de 2021 11:06 por Redação
Por Eliane Brum, no facebook
A vagina que salvou o Réveillon do Brasil: ao cobrir a terra arrasada pelo canavial com uma buceta de 33 metros, a obra da artista Juliana Notari interrompeu a farra bolsonarista
Jair Bolsonaro planejou e executou uma coreografia de “macho” para abrir 2021. A bordo de uma lancha, aproximou-se da Praia Grande, no litoral paulista, onde centenas de banhistas se amontoavam apesar de o país já estar chegando aos 200.000 mortos por covid-19. Depois de acenar para adultos e crianças, atirou-se no mar e nadou até a multidão. Atravessou a massa de gente como se fosse ungido por ela, ovacionado por gritos de “mito! mito!”. Funcionou tanto que ele até repetiu o batismo dias mais tarde, na segunda vez caminhando pela areia como o Messias do seu nome do meio. A cena calculada tem grande potencial simbólico. Horrorizou o mundo em transe pandêmico, mas não envergonhou uma parte significativa do Brasil. Se a eleição fosse hoje, Bolsonaro teria chances consideráveis de se reeleger.
E então, outro gesto aconteceu. Outra imagem ganhou o mundo. A vagina de 33 metros de altura por 16 metros de largura e 6 metros de profundidade da artista Juliana Notari, abrindo em vermelho a terra arrasada pelos canaviais de Pernambuco, se impôs. No noticiário internacional, havia a imagem do presidente com sinais de sociopatia desafiando o vírus e a racionalidade com seu “histórico de atleta”. E, ofuscando esse espetáculo falocêntrico, a vagina vermelha se expandiu, multiplicou-se como imagem e ocupou muito além da terra em que foi esculpida e recoberta por concreto armado e resina. Se não fosse por ela, Bolsonaro mais uma vez abriria o ano controlando a narrativa do Brasil.
Nada poderia ser mais transgressor no país dominado pelo bolsonarismo, o que diz o seu nome e o que não diz, do que essa buceta gigante. Não há maior ato de resistência, no Brasil onde os corpos humanos foram convertidos em obscenidade pela moral dos imorais e, portando, têm sido violados continuamente, do que abrir a terra esgotada, a terra pisoteada, a terra ferida como o corpo de tantas mulheres, com a escultura de uma vagina. A arte, que a obscenidade de Bolsonaro e das milícias digitais de extrema direita tentaram tornar obscena, salvou o início de um ano que quase certamente será ainda mais difícil do que o de 2020. Há disputa. E sabemos onde ela está.
Uma obra de arte não é em si nem para si. Há a intenção do artista e há o que ela se torna no encontro e no confronto com o olhar de cada um, um encontro e um confronto que podem atravessar as épocas, transmutando-se a cada contexto. A arte é aquela que, antes de ser, se torna. E só se torna se for aberta aos mundos.
A pernambucana Juliana Notari há pelo menos duas décadas faz um trabalho muito consistente na intersecção entre o feminino e a violência. Dessa vez, chamou a vagina gigante de “Diva” e definiu-a como uma “vulva/ferida”. Ao divulgar em 31 de dezembro a obra que passou 11 meses esculpindo para a Usina de Arte, um parque artístico-botânico na cidade de Água Preta, em Pernambuco, sofreu um ataque brutal nas redes sociais. Só no Facebook o post já recebeu 27 mil comentários, parte deles reduzidos a agressões. Por romper o cotidiano e atravessá-lo, a artista foi atacada violentamente. A reação já faz parte da obra. Até um “Punhetaço” foi marcado pelas redes sociais pelos machos com medo de buceta. A sua, a nossa Diva, já entrou para a história das vaginas que perturbam o mundo com sua potência.
Escolho me encontrar com a vulva ferida a partir do confronto do ato de Bolsonaro e da obra de arte de Notari. Talvez porque a obscenidade de Bolsonaro, num momento em que a pandemia volta a se agravar também no Brasil, nos feriu logo no irromper de 2021. Calculadamente, ele fez sua demonstração de força para mostrar quem manda e enterrar todas as ilusões de que a virada de um ano possa interromper o exercício do mal. Bolsonaro é o presidente. E, por ser o presidente, não há ninguém no país mais responsável do que ele para conduzir o Brasil na maior crise sanitária em um século. E ele tem nos conduzido para a morte com a cumplicidade de milhões de brasileiros.
Os cúmplices não são apenas os que votaram em Bolsonaro, nem são apenas os que declaram nas pesquisas que seu governo é ótimo ou bom ou mesmo regular, no momento em que mais de 50 países já começaram a vacinar suas populações e o Brasil ainda não conseguiu sequer comprar seringas. Ser bolsonarista é mais do que ter votado ou pretender votar em Bolsonaro. O bolsonarismo virou um modo de agir no mundo que se baseia na produção calculada de mentiras e na imposição da vontade do indivíduo sobre as necessidades do coletivo, portanto pela imposição do mais forte pela violência. É por isso que o bolsonarismo é ainda mais perigoso do que Bolsonaro —e persistirá muito além dele. Tenho me surpreendido com a quantidade de pessoas que aderiram ao bolsonarismo nessa pandemia, ao acreditar que sua pretensa liberdade os autoriza a ameaçar todos os outros. Não existe a liberdade de matar.
Bolsonaro não trabalha com eleitores, mas com seguidores que votam. E é para eles que produz imagens. Desde o início da pandemia, ele atua para fazer uma associação perversa: a de que só os fracos morrem de covid-19. Os fortes, grupo que ele acredita representar, quando contaminados têm apenas uma “gripezinha”. Bolsonaro e o bolsonarismo já deixaram mais do que explícito quem consideram fracos: as mulheres, os LGBTQ+, os negros, os indígenas. Também já tornaram explícito quem são os fortes, os do topo da cadeia alimentar: os homens, “machos” porque héteros, os brancos.
Ao nadar para ser ungido pelo povo, numa demonstração de força, como fez no primeiro dia do ano, ele é o macho que desafia as ondas, o vírus, as instituições internacionais, a ciência, a ética, a racionalidade e a própria verdade. É o homem sem amarras, livre porque a única vida que importa é a dele. Quando na segunda cena, essa caminhando sobre a areia, ele carrega crianças no colo, a mensagem é a de que só os fortes merecem viver. Se os bebês forem contaminados, os “melhores” sobreviverão. É também por isso que ele pode dizer “e daí?” diante dos mortos ou, mais recentemente, “não dou bola”, referindo-se ao fato de seu governo ainda não ter garantido a vacina à população e estar atrás de tantos países, incluindo a Argentina, que já começaram a imunizar seus habitantes. Quando ele abraça pessoas sem máscara, espalhando perdigotos em seus rostos, ele está dizendo: se você é forte, merece viver; se for fraco, dane-se.
Também não é por acaso que, em suas declarações, ele costuma forjar uma associação pejorativa com raça e gênero. Como ao defender que aqueles que quiserem ser vacinados deveriam assinar um termo de compromisso responsabilizando-se pelos supostos efeitos colaterais. A mensagem é explícita: “Se você virar um chimpanz… se você virar um jacaré, é problema de você [sic]. Não vou falar outro bicho aqui para não falar besteira. Se você virar o super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou um homem começar a falar fino, eles [os laboratórios]não têm nada a ver com isso”.
Bolsonaro já declarou que não tomará a vacina. É o “macho” que nada para abraçar o povo exatamente porque o povo não importa. Toda a sua campanha foi alicerçada no ataque aos corpos que ele considera “errados” ou “fracos” porque não são o seu. Já vamos para o quarto ano, contando o da eleição, sendo violentados pelas declarações de Bolsonaro, que fala obsessivamente de orifícios, de pênis e de ânus, convertendo os corpos em objetos e dividindo o mundo entre aqueles que portam buracos e aqueles que têm o poder de enfiar coisas nos buracos. Para homens como ele, a única relação possível entre um corpo e outro corpo é a da violência. Tanto o pênis quanto as armas são falos empunhados para fazer buracos nos corpos dos que considera mais fracos ou inferiores.
Antes do batismo do macho protagonizado no litoral paulista, sua última declaração midiática foi ironizar a tortura sofrida por Dilma Rousseff pelas mãos de agentes do Estado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Logo depois do Natal, ele disse a apoiadores: “Dizem que a Dilma foi torturada e fraturaram a mandíbula dela. Traz o raio-X para a gente ver o calo ósseo. Olha que eu não sou médico, mas até hoje estou aguardando o raio-X”.
Não é uma escolha aleatória. A única mulher presidenta do Brasil foi destituída por um impeachment em cuja votação Bolsonaro, então deputado federal, homenageou o mais notável torturador e assassino da ditadura, associado a dezenas de mortes e a centenas de sessões de tortura de opositores políticos. Bolsonaro fez questão de adicionar uma perversão a mais: “Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.
Enaltecer o torturador, demonstrar prazer com a tortura da mulher que está empenhado em destituir do cargo e depois duvidar de seus ferimentos é o gozo do perverso. É assim que se comportam os torturadores e também os assassinos. Bolsonaro torturou Dilma durante o impeachment e, dias atrás, a torturou mais uma vez. Para mostrar que pode. Porque pôde, no passado, e por isso se elegeu —e porque pode no presente, porque faz tudo isso e segue sem ser perturbado por um processo de impeachment.
Essa é a mensagem que pretende vender e, como faz parte da estupidez de tantos comprar gato por lebre se achando o maior esperto do mundo, milhões de brasileiros acreditam. Como tudo em Bolsonaro, a imagem de força e de potência é só mais uma fake news ou, em bom português, uma mentira. Basta ir ao youtube ver Bolsonaro fingindo fazer flexões de braço para ver que ele é tão atleta quanto é cristão. Na terça-feira (5), afirmou publicamente sua impotência: “O Brasil está quebrado e não consigo fazer nada”. Os mais de 60 pedidos de impeachment que poderiam tirá-lo do governo que corrompe para botar quem consegue fazer alguma coisa estão dormindo na gaveta de Rodrigo Maia (DEM).
A força de Bolsonaro é a dos fracos: a violência, seguidamente armada. Violentar, corromper e mentir é só o que esse arremedo de homem consegue fazer. Bolsonaro fracassou como militar, sua carreira como deputado é uma vergonha e um desperdício de dinheiro público, ao tornar-se presidente, tornou-se o pária do mundo, como afirma seu próprio chanceler, motivo de piada de um lado a outro da Terra que ele acha que é plana.
Como descobrimos, porém, há milhões de brasileiros dispostos a acreditar em qualquer mentira e a chamar de “mito” um mentiroso. Assim, a virada do ano é tempo de balanço e de estabelecer metas de Ano-Novo também para Bolsonaro. Em seus atos, ele garantiu ao seus iguais que poderão seguir abusando de mulheres como Mari Ferrer, vítima de estupro que foi violentada mais uma vez durante o julgamento ao ser tratada como culpada. Em seus atos, o presidente do Brasil está reafirmando que os homens poderão seguir dizendo que o acusado de estupro não tinha condições de perceber que a vítima estava inconsciente e seguir julgando o comportamento da vítima em vez do ato do estuprador. Essa é a mensagem sempre que ele publicamente humilha uma mulher com palavras ou gestos ou decisões.
Na concepção de mundo do bolsonarismo não há relação que não termine com um outro subjugado e desumanizado. Bolsonaro tornou o Brasil um grande experimento pornográfico. O homem no cargo máximo do país brinca de nos matar. Ao mergulhar nas águas do mar, para muitos um ritual de purificação, ele renasce para mais um ano como senhor da morte. Tenho convicção de que as gerações futuras vão nos perguntar por que não fomos capazes de impedi-lo de seguir matando. Essa acusação assombrará os que hoje estão vivos para muito além da vida.
Fonte: https://pensarpiaui.com/