Por Manuel Domingos Neto, do Outras Palavras
Comandantes não podem conduzir a Defesa Nacional porque suas corporações vivem disputando entre si. Alimentam velhas rusgas e agarram-se a cada milímetro de espaço no aparelho de Estado. Forças de terra, ar e mar não se entendem facilmente quanto aos seus papeis na Defesa. Cada uma se julga mais decisiva e meritória que a outra. Assim são as corporações, diga-se de passagem, civis e militares.
Sujeita à determinação exclusiva dos comandantes, a política de Defesa será insatisfatória. Ainda hoje se discute a possibilidade de o Japão ter perdido a Guerra do Pacífico por conta da querela entre suas forças terrestre e naval. A Defesa não pode resultar de arranjos entre corporações embevecidas por suas especialidades e dimensões. Confrontos de pontos de vista entre comandantes são corriqueiros, embora nem sempre evidenciados. Precisam ser arbitrados pelo poder político para evitar acirramentos deletérios.
A potência que mais guerreou no último século, os Estados Unidos, desde 1945 coleciona derrotas. A responsabilidade pelo fracasso é, sobretudo, do político. No Vietnã, o ianque perdeu devido à comoção mundial insuflada por sua agressividade e à habilidade do vietnamita, que recebeu apoio do mundo inteiro. No terreno, quem dobrou o Império foi Nguyen Giap, que ganhou patente de general, mas em essência, era um professor de história.
Quando Hitler desencadeou seus primeiros ataques, a defesa europeia estava nas mãos de Gamelin, chefe do Estado-Maior do exército francês, a maior força terrestre do continente. Gamelin conquistou os políticos e o vexame veio à galope. Quando os tanques nazistas se movimentaram, houve o que os franceses chamam de “guerra da mentira”. Gamelin terminou preso pelo invasor. Não traiu, mas seu nome ficou associado à humilhação dos franceses. Em Paris, não há uma avenida com seu nome. Só os especialistas sabem de seu triste papel.
Hoje, com a Europa assombrada por outra conflagração, encontro a verve de Gamelin no Livro Branco da Defesa e da Segurança Nacional da França, publicado em 2013, quando já estava em curso o cerco da Rússia pela Otan:
(A Europa) não é mais o epicentro da confrontação estratégica mundial. (…) Durante meio milênio, a Europa esteve no coração dos conflitos da história mundial. (…) Hoje, a Europa contribui para a segurança coletiva intervindo na gestão de crises regionais. Ela o faz promovendo valores de porte universal.
Como esquecer que, em 2013, a Europa já se enroscara no projeto do Pentágono de reduzir a Rússia? Hoje, o continente se afunda nos efeitos da guerra. A maioria das vítimas está no espaço que, segundo o documento, teria deixado de ser o “coração dos conflitos da história mundial”. Os africanos que tentam a travessia do Mediterrâneo escancaram a demagogia de seus “valores de porte universal”.
Comandantes são limitados para formular a Defesa Nacional porque se trata de política pública de amplo espectro. Abrange o conjunto do aparelho de Estado e a sociedade, como tenho insistido. Transcende os assuntos militares. Registrei também que quem controla a Defesa, controla o Estado e tenta impor sua vontade à sociedade. Se o militar der as cartas na Defesa, exercerá poder discricionário. Encarnará figuras de reis e imperadores que comandavam tropas montados a cavalo.
Dedicando-se à tarefa eminentemente política, o militar comprometerá suas habilidades profissionais, tal como o neurocirurgião que, ocupado em planejar política de saúde pública, perderá seu desempenho em mesa de cirurgia. Exceções confirmam a regra.
Na prática, foram criados mais postos desnecessários para oficiais superiores em Brasília. Na reforma militar que imagino, cada corporação deve ser comandada pelo chefe do Estado-Maior. O chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas deve ser a maior autoridade militar do país, secundando apenas o ministro da Defesa, cuja autoridade é fundada em determinação do presidente da República.
O planejamento da Defesa brasileira é prejudicado pela larga supremacia do Exército. Desde a Revolta da Armada, no início do regime republicano, a Força Terrestre é a mais forte, apesar de ser a menos apta para reagir ao agressor estrangeiro. Sua importância advém do fato de ser a mais capaz de se impor internamente.
Hoje, o Exército brasileiro considera que deve “atuar nos Domínios terrestre, marítimo, aéreo, cibernético, eletromagnético e espacial”, como prescreveu seu Estado-Maior no Manual de Fundamentos. A Força Terrestre resiste em admitir a primazia da Aeronáutica e da Armada na Defesa Nacional.
A fidelidade principal do militar é com sua corporação. A camaradagem é cultivada desde o início da carreira e escora a ascensão hierárquica. Neste sentido, nenhuma outra cultura corporativa se iguala à militar, que defende suas instituições com unhas e dentes, bem como suas especialidades técnicas.
Comandantes disputam recursos orçamentários e posições no sistema de Defesa. Assim, comprometem decisões necessárias à eficácia do sistema. O desentrosamento é oneroso devido à sobreposição de estruturas, em particular nos âmbitos do ensino, pesquisa, assistência médica e produção de armas e equipamentos.
O militar é um ególatra de berço. O infante aprende que a infantaria é eterna majestade das linhas combatentes. O artilheiro acha que o mais alto valor de uma nação ruge n´alma do canhão. O engenheiro quer a Engenharia fulgurando sobranceira na paz ou na guerra. O cavaleiro diz ser a estrela guia em sombrios horizontes. O aviador se reclama bandeirante audaz, cavaleiro do século do aço. O marinheiro acha que sua linda galera protege os mares da pátria em que tanto pensa. O militar não é o mais indicado a tomar decisões que afetem diretamente suas corporações e especialidades.
A egolatria castrense encafifa o civil, mas é compreensível: o espírito de corpo é imperativo para candidatos ao gesto supremo de abater o semelhante ou morrer. Disso decorre o estímulo permanente à competição no seio das fileiras, onde cada um busca superar-se e ser o melhor.
A egolatria é compreensível, mas, na concepção de Defesa, precisa ser contida pelo representante da soberania popular, que deve saber ouvir e construir arranjos entre as corporações mirando a eficácia do conjunto.
Certa feita, o comandante de uma unidade da Marinha convidou-me para proferir uma conferência. No almoço que se seguiu, estranhei o fato de não ser convidado para sentar-me ao seu lado. Puseram-me defronte à sua cadeira porque o comandante precisava separar fisicamente dois desafetos, velhos almirantes que não se falavam em decorrência de disputa de orientações relativas à Força. Fui usado para evitar que os dois sentassem lado a lado. Rivalidades internas impedem o militar de conduzir coerentemente a Defesa.
Corporações militares não podem pontificar na formulação desta política pública nem gerenciá-la. Isso representaria a militarização, aberta ou sub-reptícia, do aparelho estatal e da sociedade, ou seja, a conspurcação da democracia. As corporações devem subordinar-se às diretrizes da Defesa.
O militar é sacrificado com a guerra, mas é também beneficiado: mostrando serviço, é promovido e glorificado. A necessidade de reconhecimento do militar é exibida no peito enfeitado por insígnias.
Sendo beneficiário da ação guerreira, o militar não é o servidor indicado para decidir sobre o emprego da força. Deve ser ouvido na formulação da política de Defesa, assim como os policiais no estabelecimento da Segurança Pública e os profissionais da saúde na política sanitária.
Entregue aos profissionais das armas, a Defesa Nacional refletirá interesses restritos e futricas corporativas. Seus fundamentos serão limitados e enganadoras as suas diretrizes. Se a Defesa brasileira persistir ditada por comandantes, como sempre ocorreu, será perdulária, tacanha e vexatória. A democracia ficará sob risco permanente e a soberania persistirá uma quimera.
O guerreiro tem papel importante na defesa de uma sociedade, mas será sempre papel complementar. O soldado deve aprender que seu valor não encerra “toda a esperança que um povo alcança”, como diz a canção do Exército Brasileiro.
O derramamento de sangue é inerente à experiência humana, mas pode ser evitado. Potenciais agressores ofendem apenas quando percebem possibilidade de dobrar a vítima. A arte de contornar a guerra sem abdicar da vontade própria não é especialidade do guerreiro, mas do político. Corporações militares são ferramentas da política externa, não tem competência para dirigir os negócios da defesa.