31 de julho de 2020 12:56 por Marcos Berillo
Por Sarah Fernandes
De Olho Nos Ruralistas
Líderes indígenas, quilombolas, ribeirinhos e seringueiros do Acre se uniram a ambientalistas, organizações não governamentais, pesquisadores e artistas para relançar a Aliança dos Povos da Floresta, uma associação criada pelo seringueiro Chico Mendes, há 35 anos, para defender as populações da Amazônia da ação de grileiros e madeireiros. Dessa vez, os inimigos são diferentes: os ativistas querem conter o contágio do novo coronavírus em comunidades tradicionais e reagir à política ambiental do governo federal.
Para isso, o grupo lançou, na última segunda-feira (27), uma campanha on-line chamada Empate 2020 – Povos da Floresta na Luta contra Covid-19, que visa angariar verba para garantir a alimentação de famílias indígenas e extrativistas. Todo valor arrecadado será destinado à compra de álcool em gel, máscaras e alimentos, dando preferência para comércios locais.
Os itens são os mesmos que o governo federal forneceria, se o presidente Jair Bolsonaro não tivesse vetado dezesseis dispositivos de um projeto de lei, o PL nº 1142/2020, que previa medidas urgentes de apoio aos indígenas na pandemia, como a garantia de atendimento médico, a entrega de alimentos e o acesso a água potável.
Um dos presentes no lançamento da campanha, durante evento on-line, foi o líder indígena Ailton Krenak:
— A campanha pode mobilizar recursos que são muito necessários neste momento para salvar vidas e promover assistência em uma situação emergencial aos povos da floresta. A Covid-19 está avançando sobre nossos povos, sem uma perspectiva de curto prazo. Talvez a campanha tenha que ser estendida para o resto do ano. É preciso estarmos prontos.
A iniciativa prevê a organização de campanhas de conscientização sobre como se proteger do vírus, sempre com linguagem alinhada à realidade dos povos da floresta. Serão adquiridos equipamentos de proteção individual (EPIs), luvas e máscaras para agentes de saúde que atuem em comunidades tradicionais do Acre.
Filha de Chico Mendes é uma das líderes da campanha
“A campanha retoma os princípios da Aliança dos Povos da Floresta, que uniu extrativistas, ribeirinhos e indígenas para lutarem e fazerem a resistência contra as ameaças que os cercavam”, declarou a ativista socioambiental Ângela Mendes, outra participante do evento. “Hoje nós ecoamos novamente esse espírito, para que possamos ajudar quem mais precisa”.
Uma das principais idealizadoras da campanha, Ângela é filha do líder seringueiro Chico Mendes (1944-1988) e coordenadora do Comitê Chico Mendes.
A expectativa dos organizadores é atender ao menos 3.638 famílias que vivem em quinze terras indígenas do Acre e nas Reservas Extrativistas do Alto Juruá, Riozinho da Liberdade, Alto Tarauacá e Chico Mendes. Os extrativistas e pequenos agricultores foram particularmente atingidos pela crise econômica causada pela pandemia, sobretudo porque feiras foram suspensas em função do isolamento social, o que diminuiu drasticamente a renda das famílias.
“Para proteger os povos da floresta, precisamos mantê-los seguros em seus territórios, com alimentos saudáveis e itens de higiene, para que eles não precisem sair de lá”, diz o texto de apresentação da campanha. “Ajude a dar condições para que estas comunidades, suas organizações, seus profissionais de saúde e aliados tenham segurança para enfrentar a pandemia com a força da floresta”.
É possível doar qualquer valor por meio do site da campanha. A meta é chegar a R$ 1 milhão. Até agora, 5% já foram alcançados. São responsáveis pela campanha o Conselho Nacional das Populações Extrativistas, a Comissão Pró-Índio do Acre, a ONG SOS Amazônia e o Comitê Chico Mendes.
“Mais do que arrecadar fundos, é preciso que as pessoas olhem o que somos e o que fazemos, e o nosso papel importante para preservar a Amazônia brasileira”, disse a coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara. “É nosso modo de vida tradicional que mantém a Amazônia viva”.
Pandemia atinge oito etnias no Acre
O Acre já registrou ao menos 18.657 casos do novo coronavirus, com 483 óbitos. Entre os indígenas do estado, 659 foram diagnosticados com a doença, somando 22 mortos, segundo levantamento da Comissão Pró-Índio. As etnias mais atingidas são Huni Kuin, Puyanawa, Jaminawa, Manxineru, Madijá/Kulina, Shadawãdawa Arara, Shanenawa e Yawanawa.
A taxa de mortalidade pela Covid-19 entre indígenas da Amazônia Legal chega a ser 150% maior que entre não indígenas, de acordo com estudo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e do Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam).
“Cada cultura, cada língua indígena é sustentada por 50 ou 60 membros de uma comunidade que são depositários de uma cultura ancestral, com lendas, mitos e rituais”, analisou o ator Paulo Betti, um dos apoiadores da campanha. “Cada velho índio que morre é uma biblioteca que é queimada. São histórias passadas oralmente que são perdidas”.
Nas reservas extrativistas não há registro oficial do número de casos confirmados da Covid-19 nem de óbitos. Esses dados são computados nas estatísticas do município onde a reserva está localizada. As duas maiores reservas extrativistas do estado somam ao menos 11 mil pessoas, sendo 8 mil na do Alto Juruá e 3 mil na Chico Mendes. Parte das famílias precisa se deslocar até as cidades para receber o auxílio emergencial e outros benefícios, como Bolsa Família e aposentadorias, o que aumenta o risco de contaminação.
Uma das vítimas da doença, aos 35 anos, foi Maria Marilene Rufino Lima, gestora da Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, no município acreano de Sena Madureira. Ela deixou a mãe, idosa, e um filho de 15 anos.
A atriz Lucélia Santos também apoia a campanha:
– Estamos vivendo um momento da história do Brasil muito crítico, como poucas vezes pudemos observar. Enfrentamos uma dupla batalha: contra a Covid, que está afetando incrivelmente as populações indígenas, que estão completamente abandonadas em uma atitude explícita de genocídio por parte do governo, e outra contra os opositores da floresta, aqueles que querem passar a boiada.
Seringueiros fizeram encontro nacional em 1985
Para frear o desmatamento na Amazônia, os seringueiros usavam uma estratégia de luta que hoje dá nome à campanha: os empates. Quando corria a notícia de que uma área estava sendo desmatada, famílias inteiras se dirigiam até o local, caminhando por quilômetros, se fosse preciso. Contra a truculência, eles usavam a paz e o diálogo e se colocavam na frente das árvores e das casas, mulheres à frente, para impedir as derrubadas. Por isso, para os seringueiros, empatar não significava terminar no zero a zero.
Outra estratégia de luta foi a criação da Aliança dos Povos da Floresta, uma proposta de Chico Mendes debatida durante o Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros, em outubro de 1985, em Brasília. A ideia era unir extrativistas, ribeirinhos, quilombolas e indígenas pela defesa dos seus territórios e da Amazônia, contra a ação de grileiros e madeireiros.
Foi nesse evento que os seringueiros cunharam a proposta do que conhecemos hoje como reserva extrativista, com a concessão de áreas públicas protegidas às populações locais, como um meio de preservar seu modo de vida e de garantir o uso sustentável dos recursos naturais.
Chico Mendes não chegou a ver a proposta virar realidade. O líder sindical — mais conhecido no mundo como ambientalista — foi assassinado em 1988; a primeira reserva extrativista do país, no Alto Juruá, no Acre, foi criada em 1990. Dois meses mais tarde foi demarcada a reserva que leva o nome de Chico, tida como um dos principais legados do líder seringueiro.
A chamada Crise da Borracha, causada pelo contrabando de mudas de seringueiras por ingleses para suas colônias na Ásia, no começo do século 20, pôs fim ao monopólio amazônico de produção de látex e deixou a região e as famílias seringueiras abandonadas por décadas. No início dos anos 70, o governo ditatorial passou a incentivar fortemente a ocupação dos seringais pela agropecuária. Sob o lema “integrar para não entregar”, financiou a tomada das terras por grandes fazendeiros de diversos estados.
Ao todo, o Brasil tem hoje pelo menos 89 reservas extrativistas, espalhadas em dezessete estados, agregando uma área de 14 milhões de hectares, maior que o território da Grécia — ou o da Inglaterra.