sexta-feira 22 de novembro de 2024

As cartas do economista Celso Furtado como legado

O que se sente de linear da leitura de mais de meio século de postagens é a paixão por pensar o Brasil. Na Sorbonne, onde concluíra o doutorado, Celso por anos seria o único estrangeiro “Monsieur le professeur”.

10 de maio de 2021 12:36 por Marcos Vasconcelos Filho

O economista Celso Furtado

 

Felizmente, as epístolas vêm conquistando o merecido estatuto entre as demais fontes de pesquisa — imagens, periódicos, livros, legislações, estatísticas, sítios, memórias. No entanto, se é inegável a sua relevância enquanto documentos de interpretação histórico-social, elas precisam ser analisadas com olhos de investigador vigilante.

Nesse universo das missivas, o leitor mais curioso da dimensão íntima dos chamados intérpretes brasileiros contará a partir de agora com uma cuidadosa seleção de cartas do economista Celso Furtado (1920-2004). Rosa Freire d’Aguiar, tradutora, jornalista, companheira de Celso durante anos e organizadora da obra, empreende um recorte de quase 300 amostras em meio a 15 mil papéis inéditos do protagonista, doados por ela em 2019 ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. Salta à vista o amoroso cuidado de preceder cada uma das mais de oitenta interlocuções com pequenos ensaios eruditos, os quais transcendem, justo por isso, a mera ordem explicativa.

»Correspondência Intelectual: 1949-2004« (2021) é um livro enriquecido por ilustrações e cujas mais de 400 páginas são lidas sob a fluidez de uma dupla revelação: o cotidiano dos personagens e a contextura de ideias. É um volume que não deve ser isolado, porém, da antologia »Celso Furtado: Essencial« (2013), nem dos »Diários Intermitentes: 1937-2002« (2019), edições ambas pelo mesmo selo da Companhia das Letras.

O arco temporal compreende um amplo quadro de ciclos na trajetória de Celso Furtado: a chefia da Divisão de Desenvolvimento da Cepal; a idealização e o encabeçamento da Sudene nos governos JK, Jânio e Jango; a pioneira titularidade no Ministério do Planejamento; o exílio, a contar de maio de 1964 e durante mais de vinte anos, no Chile, nos Estados Unidos e, principalmente, na França; a cassação; a demissão do serviço público; o retorno ao nosso país; a posse na pasta da Cultura quando da presidência Sarney, após pedido emedebista da mosaica figura de doutor Ulysses; e a morte, aos 84 anos.

O que se sente de linear da leitura de mais de meio século de postagens é a paixão por pensar o Brasil. Na Sorbonne, onde concluíra o doutorado, Celso por anos seria o único estrangeiro “Monsieur le professeur”. Ali, malgrado a burocracia própria da vida universitária, com suas aulas, seminários e orientações, o rigoroso docente aproveitara cada oportunidade de folga a fim de se concentrar na tarefa de uma existência, imposta a si próprio desde adolescente ginasiano no Recife.

Por certo, é em Paris que se maturam as forças interior e de pensamento do autor da seminal, lúcida e heterodoxa »Formação Econômica do Brasil« (1959), numa agenda abrangente, de enfoque interdisciplinar nos seus interesses, entre retomadas e inovações: (sub)desenvolvimento, dependência, imperialismo, Nordeste, América Latina, e assim vai.

Aos poucos, Furtado se habituaria aos ares da Cidade Luz, com seus cafés, o culto vernacular, as peculiaridades suas. Contudo, a distância espacial não o faria esquecer as origens. Como uma fixa ideia, o passado, o presente e, mais que tudo, o futuro brasileiros mobilizariam todas as suas energias sertanejas. Dos 39 títulos de sua sortida bibliografia em vida, considerável quinhão se editara, germinara e aprofundara-se em Paris. É aí, inclusive, que seus livros aumentariam a vendagem e seriam traduzidos para vários idiomas (do polonês ao sueco, do alemão ao japonês).

O objetivo da publicação é alcançado: “Além de revelar destinos individuais, acompanha as peregrinações de economistas, intelectuais, políticos, ativistas, cientistas sociais que foram atores e observadores da história na segunda metade do século 20”. E o público, este logrará deleite e lições com a franqueza do gênero, em decisivo momento da humanidade, o pós-guerra, a distinguir o ideário (afim ou discrepante) tanto de remetentes quanto de destinatários: Antonio Candido, Antonio Callado, Bertrand Russell, Bob Kennedy, Caio Prado Jr., Carlos Lacerda, Carlos Rama, Charles Wagley, Darcy Ribeiro, FHC, Fidel Castro, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Francisco Iglesias, Francisco Julião, Francisco Weffort, Gonzalo Martner, Helio Jaguaribe, Henry Kissinger, Hubert Beuve-Méry, Ignacy Sachs, Jack Lang, Javier Pérez de Cuéllar, Johan Galtung, José Leite Lopes, José Serra, Lina Bo Bardi, Lincoln Gordon, Lúcio Costa, Luigi Spaventa, Lula, Marcio Moreira Alves, Maria da Conceição Tavares, Miguel Arraes, Octavio Ianni, Otto Maria Carpeaux, Plínio de Arruda Sampaio, Raúl Prebisch, Regino Boti, Roberto Campos, Thiago de Mello, Wassily Leontief, e mais alguns.

Em nossa volátil época de mensagens eletrônicas, a correspondência de Celso Furtado, além de constituir fonte já incontornável de nascença e alimentar em nós esperança (nesse instante tão esquisito de agonia), está à espera de biógrafos que façam jus a um notável intelectual.

* Marcos Vasconcelos Filho é ensaísta, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Doutor em Sociologia pela UFS e autor de »José Guilherme Merquior: da estética à política« (2020), entre outros livros.

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