9 de dezembro de 2021 10:36 por Da Redação
Por Rafael Moro Martins, do The Intercept
O EXÉRCITO REALIZOU em 2020 uma simulação em que candidatos a integrar a sua tropa de elite tiveram de combater uma “organização armada clandestina”. No texto que apresenta o exercício, a força explica que o inimigo fictício surgiu “de uma dissidência do Partido dos Operários”, o “PO”, que “recruta e treina militantes do MLT”, o “Movimento de Luta pela Terra”.
Os documentos que descrevem o exercício foram entregues ao Intercept por uma fonte que pediu para não ser identificada por medo de retaliações. A Operação Mantiqueira foi realizada em novembro de 2020 em Piquete, cidade paulista de menos de 15 mil habitantes localizada no Vale do Paraíba e próxima à divisa com Minas Gerais e Rio de Janeiro. A locação não foi escolhida à toa: a cidade é sede de uma das mais antigas unidades da Imbel, a Indústria de Material Bélico do Brasil, uma estatal vinculada ao Exército.
O teor do exercício a que os oficiais do Exército submetem candidatos às suas Forças Especiais deixa claro que, passados quase 40 anos desde a redemocratização, a maior das três Forças Armadas não apenas segue a enxergar movimentos sociais e políticos de esquerda como inimigos – ela também está sendo treinada para combatê-los.
Participaram da Operação Mantiqueira sargentos de carreira e oficiais do Exército que eram alunos do Centro de Instrução de Operações Especiais, o CIOpEsp, localizado em Niterói, cidade da região metropolitana do estado do Rio. Ela foi a última atividade do curso que serve como vestibular para o ingresso nas Forças Especiais. Em 2020, segundo a fonte que entregou os documentos ao Intercept, de uma turma de quase 40 alunos, 17 foram aprovados para trabalhar no Batalhão de Forças Especiais, o BFEsp, sediado em Goiânia.
Eu apresentei os documentos a dois pesquisadores que detêm amplo conhecimento do universo militar e a um alto oficial da reserva – este pediu para não ser identificado, também pelo temor de represálias. Os três os consideraram autênticos.
Também submeti os papéis à assessoria de imprensa do Exército, questionando-a sobre a autenticidade deles e fazendo uma série de perguntas sobre a atividade. Minhas questões chegaram a ser encaminhadas ao Comando Militar do Planalto – a quem o BFEsp é subordinado – antes de voltarem ao Quartel General, em Brasília.
De posse das questões por mais de três semanas, o Exército me disse na sexta-feira, 3 de dezembro, que não as responderia. Em momento algum, porém, a força ou os oficiais da assessoria de imprensa – dois coronéis, um capitão e um tenente – com quem tratei sobre o pedido de informações desmentiram os documentos.
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‘Objetivos políticos’
O texto que apresenta o exercício aos alunos do CIOpEsp começa apresentando o “Exército de Libertação do Povo Brasaniano”, o ELPB, “criado a partir de um projeto de partido político de caráter marxista e com uma organização armada clandestina, nascido de uma dissidência do Partido dos Operários e que recruta e treina militantes do MLT” num país fictício chamado Brasânia. As referências, óbvias, são ao Exército de Libertação Nacional da Colômbia, ao Partido dos Trabalhadores e ao MST. Existe, também, um movimento que luta pela reforma agrária chamado Movimento de Luta pela Terra, fundado na década de 1990 na Bahia.
“As cores do ELPB são defendidas em diversos tipos de protestos pelo país, logo o ELPB não é apenas um grupo criminal, mas um movimento que assume contornos de irregularidade com objetivos políticos”, prossegue o texto assinado pelo major Marcos Luís Firmino, oficial de inteligência do BPFesp – o negrito é do documento original. Busquei pelo nome de Firmino no Portal da Transparência do governo federal, mas não o encontrei. Alguns integrantes das Forças Especiais podem ter os nomes ocultados ali, como ocorre com delegados da Polícia Federal ou agentes da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência.
“Nos últimos anos, o ELPB foi reestruturado, afastado dos grandes centros e interiorizado [para]investir em recrutamento e treinamento em áreas rurais, bem como formar novas alianças”. Aqui é óbvia a emulação da guerrilha do Araguaia, a última célula da resistência armada à ditadura militar, dizimada com requintes de crueldade pelo Exército após o extermínio da guerrilha urbana – retratada em “Marighella“, filme de Wagner Moura.
Do início dos anos 1970, a fantasia paranóica do major Firmino salta de repente às jornadas de 2013. “A primeira frente do EPLB se organizou em 2012, recrutada de diversos grupos de pressão insatisfeitos com a situação do país [e]infiltrando elementos violentos em diversos protestos. Esses grupos infiltrados em protestos causaram grande destruição em propriedades governamentais e privadas, estabelecendo um clima de desordem e ineficiência do aparato de segurança do estado”, afirma o texto.
“Cabe ressaltar que esses grupos têm utilizado canais da Deep Web e de mídias sociais para disseminar vídeos, imagens e outros produtos sobre as ações violentas executadas. Essa prática ficou conhecida como ‘Mídia Samurai’” – aqui a referência é à Mídia Ninja, que documentou os protestos contra reajustes nas tarifas do transporte público em São Paulo e outras capitais e depois se tornou um veículo de mídia popular na esquerda.
Mas não são apenas as mídias de esquerda as citadas no documento: a imprensa como um todo apanha. “Uma ala mais tendenciosa da imprensa vem acompanhando o ELPB de forma velada, com notícias que buscam divulgar o caráter ‘democrático e de liberdade’ que o ELPB ‘defende’”, critica o texto.
Também é difícil não notar a coincidência dos personagens fictícios com figuras reais. Pedro João Cavalero, criador das ELPB, e a deputada estadual Erica Ericsson, “expulsa do PO por portar-se de maneira extremada”, parecem menções óbvias a João Pedro Stédile, do MST, e Erica Malunguinho ou Erika Hilton, respectivamente a primeira mulher transexual eleita para a Assembleia Legislativa de São Paulo e primeira mulher trans eleita vereadora na capital paulista. Ambas são filiadas ao Psol.
Para Juliano Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, a UnB, o uso de termos nos documentos do treinamento não é aleatório. “Dizer que o partido tem caráter marxista é totalmente inútil [para uma ação militar], só serve para doutrinação, para relacionar a esquerda a ameaças. Toda a nomenclatura indica a necessidade de doutrinação”, avaliou ele, que também coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional.
O professor, que já acompanhou diversos exercícios a convite do próprio Exército, avaliou a meu pedido os documentos sobre a simulação realizada em Piquete entregues ao Intercept.
“É nitidamente um documento que faz um exercício de inteligência voltado para [combater]a esquerda, com referências temporais contemporâneas que marcariam hipotéticas ameaças”, fez coro João Roberto Martins Filho, professor titular sênior de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos, a UFSCar, e um dos decanos dos estudos sobre militares no Brasil. Ele também leu os documentos.
‘Completamente ilegal’
O CIOpEsp, em Niterói, e o BFEsp, em Goiânia, são subordinados ao Comando de Operações Especiais, que por sua vez é uma unidade do Comando Militar do Planalto, que abrange o Distrito Federal, Goiás, Tocantins, o Triângulo Mineiro e Brasília.
Via Lei de Acesso à Informação, o Exército me informou que a Base Administrativa do Comando de Operações Especiais, que tem autonomia operacional e CNPJ próprio, administrou um orçamento de R$ 43 milhões em 2020, “destinados à toda vida administrativa e ao preparo e emprego das organizações militares operacionais e de apoio operacional e logístico do COpEsp”.
Segundo o cientista político e historiador José Murilo de Carvalho, as Forças Especiais são de alguma maneira descendentes do aparato montado pelo Exército para perseguir, torturar e assassinar inimigos políticos durante a ditadura, os DOI-Codi – sigla para Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna. A intenção, após o fim dos DOI-Codi, era “manter a capacidade de combate à subversão e à guerrilha”.
São a “elite da tropa”, treinada para operações que exigem agilidade e precisão, como uma incursão a território inimigo. “Por exemplo: há uma ameaça de invasão do território brasileiro. Usam-se as forças especiais para atravessar a fronteira e buscar informações, fazer capturas de inteligência, para municiar o plano de reação”, explicou Cortinhas. “Num plano como esse, as Forças Especiais se infiltrariam nos grupos ou no território inimigo. São tropas extremamente bem treinadas, de preparo físico invejável, alta capacidade cognitiva”, ele me disse.
Para Cortinhas, exercícios só são úteis quando se referem a situações plausíveis, com que os militares podem eventualmente se deparar. Emular organizações de esquerda como inimigos, avaliou, “tem um peso na criação de uma mentalidade conservadora nas Forças Armadas”. “Desde o início da sua educação, os militares são alimentados de forma a verem como ameaças grupos de esquerda que brigam por direitos, como o uso social da terra”, analisou.
O anticomunismo ferrenho é um dos valores fundamentais dos militares brasileiros desde 1935, quando eles combateram e derrotaram levantes em suas tropas lideradas pela Aliança Libertadora Nacional, de Luís Carlos Prestes, que posteriormente batizaram de “intentona comunista”. “A frustrada revolta comunista de novembro de 1935 foi um evento-chave que desencadeou um processo de institucionalização da ideologia anticomunista no interior das Forças Armadas”, escreveu o antropólogo Celso de Castro, outro dos principais pesquisadores da caserna, em “A Invenção do Exército Brasileiro“.
Nos anos seguintes, o imaginário anticomunista se cristalizou: o comunismo era associado com o “mal, representado como uma enfermidade”. “Daí a metáfora, que teria vida longa, de uma ‘infiltração’ comunista, como se fosse uma doença/doutrina ‘exótica’ introduzida no Brasil por agentes estrangeiros ou por traidores da pátria”, diz o livro.
Chamou a atenção dos pesquisadores o descolamento do tema do treinamento com o momento político brasileiro. “Não há nenhuma ameaça à democracia partindo de organizações de esquerda, mas sim das de direita, que têm ameaçado instituições democráticas e sendo investigadas em inquéritos do Supremo Tribunal Federal”, argumentou o professor da UFSCar. Ele se referia, por exemplo, aos protestos organizados em Brasília nos últimos dois anos por partidários de Jair Bolsonaro, como os 300 do Brasil, inclusive convocados pelo próprio presidente, como no último 7 de setembro.
“É uma referência muito clara à situação dos anos 1960 e 70, porque todas essas formas de organização ficaram datadas de lá. Mas a esquerda não teve mais nenhum tipo de organização desse tipo depois”, criticou Martins Filho.
Além disso, ainda que houvesse uma guerrilha política – de esquerda ou direita – atuando no país, combatê-la seria atribuição da Polícia Federal.
“Uma operação como essa, de Forças Especiais, seria completamente ilegal. Não há nenhum respaldo legal ou constitucional [para uma ação como a simulada no exercício]. Ele está desconectado de qualquer respeito ao estado de direito brasileiro”, me disse o professor da UnB. “É presente entre os militares a ideia de que eles são solucionadores de quaisquer problemas [do país], o que gera situações como o que vivemos na atualidade, com militares da ativa e da reserva em todos os ambientes políticos e estratégicos do país”, afirmou.
A ilegalidade para que o professor Cortinhas chamou a atenção é flagrante no próprio documento assinado pelo major Firmino. Em determinado trecho, ele diz que “as autoridades não percebem o ELPB como ameaça à democracia”. Ou seja: até mesmo na simulação, o Exército agiu por conta própria.