Por Marcel Leite, do portal Mídia Caeté
Maceió é palco de um dos maiores desastres socioambientais urbanos da história, provocado pela extração desenfreada de sal-gema pela Braskem. Cinco bairros da capital tornaram-se verdadeiras regiões fantasmas, repletas de escombros e lembranças. A situação ainda causa angústia e dor em seus ex-moradores.
Por mais doloroso que seja, falar sobre esse assunto é preciso. Cobrar os responsáveis é essencial para o resgate financeiro, moral e psicológico das vítimas. Iniciativas como o Projeto Ruptura e o A Gente Foi Feliz Aqui procuram manter o tema vivo, como uma forma legítima e contundente de protesto e procura por respeito.
Porém, infelizmente, o abandono e a falta de perspectiva ainda estão bastante presentes nas realidades de ex-moradores e ex-comerciantes das regiões atingidas, que tiveram que deixar seus imóveis e suas memórias para trás.
É o caso da Padaria Belo Horizonte, que ficava no bairro do Pinheiro, e precisou fechar as portas no dia 31 de dezembro de 2021. A tradicional panificação tinha mais de 40 anos, foi passada de pai para filho e era querida e frequentada por toda a vizinhança.
Em uma carta aberta aos seus clientes, a Belo Horizonte comunicou oficialmente o encerramento das atividades, relembrando os laços criados e agradecendo a todos que se solidarizaram com a luta.
“Fizemos o que pudemos e estamos indo até onde aguentamos. Durante esses 40 anos, nós nunca passamos por um período tão duro quanto esse que estamos, uma difícil e dolorosa batalha. Batalha essa que já sabemos o desfecho e nada pudemos fazer, ficamos de mãos atadas em todo o tempo e não por culpa nossa, porém todos sabem o real culpado desse grande desastre. (…) Desde já, queremos agradecer a todos que se solidarizam com a nossa luta e nossa dor. Não temos ânimo até então para começar tudo do zero, afinal estamos desde 1980 nesse cantinho, são muitas histórias e laços criados”, diz trecho da carta postada no Instagram.
A Mídia Caeté conversou com Claudia Pedroza, uma das proprietárias e esposa de Dirceu Buarque – também sócio e que herdou a padaria do seu pai. Claudia conta sobre a sua relação com a Belo Horizonte e com o bairro do Pinheiro.
“Estou nessa história há quase 22 anos, quando assumimos [ao lado de Dirceu]a administração. Muita luta, muito investimento, muito sofrimento, com altos e baixos, mas sempre com a visão de que aquele bairro era um local promissor. De uns anos para cá, até o ocorrido, a tendência do bairro era ter muitos prédios construídos, com valorização. A expectativa era de que essa valorização fosse aumentando com o passar dos anos. De repente, vimos o nosso mundo ruir, pois – em março de 2018 – tivemos o tremor e as coisas foram decaindo”, relata
O sentimentos e as consequências
Presenciar a queda de um dos pilares econômicos e afetivos da sua trajetória não é fácil e pode trazer consequências e sentimentos nocivos. Foi o que aconteceu com Claudia, que sofre até hoje com problemas de saúde em decorrência do trauma vivido.
“Tenho sentimento de indignação, de revolta, de tristeza, de injustiça – nos sentimos extremamente injustiçados. Fomos bombardeados psicologicamente e emocionalmente. Eu não durmo sem tomar um remédio, eu já tinha condições como Síndrome de Pânico e Transtorno de Ansiedade, só que o meu quadro piorou. Nos últimos anos, eu piorei também pela questão financeira, entrei numa rotina que não fazia parte da minha vida. Eu precisei mudar e um novo dia a dia foi imposto a mim”, explica a empresária.
E complementa recordando a completa impotência vivida com a situação:
“Não tivemos saída para o fechamento da padaria. Ainda pegamos alguns empréstimos e foi tudo para dentro da panificação, estávamos pagando para ela funcionar. Acreditávamos que, enquanto ela estivesse funcionando, seria mais rápido de sermos indenizados, mas não foi o que aconteceu. O sentimento é de abandono do poder público e de quem deveria cuidar de nós”.
Claudia Pedroza diz que o resultado desse desastre sem precedentes trouxe um prejuízo financeiro elevado à família, não apenas referente à padaria, mas também em relação à região onde reside, nos arredores do Pinheiro.
“A Belo Horizonte era uma empresa familiar. Estávamos à frente eu, meu esposo e minha filha – Maria Carolina. Nós não morávamos no Pinheiro, moramos em uma área perto. Inclusive, com a ampliação do alcance das zonas de risco, o imóvel onde eu vivo hoje está se desvalorizando gradativamente, seu valor já caiu em aproximadamente 50% – justamente pela proximidade das rachaduras. Nosso patrimônio está valendo a metade do preço que valia antes de tudo isso”, afirma.
Segundo Claudia, os anseios e as perspectivas de futuro da família foram minados pela situação, tanto pelos aspectos econômicos como também pelos emocionais.
“Foram anos de dedicação. Esses últimos tempos desgastaram tanto que ficamos com receio. Abrir uma microempresa neste país é coisa de herói. Então, depois de tudo isso, ficamos desconfiados e desmotivados para voltar pro ramo. Além disso, sem dinheiro não temos como planejar nada. Foi oferecida uma realocação, mas as condições ainda não permitem uma reabertura. Não é assim que funciona. Ainda não sabemos, pensaremos mais quando – e se – recebermos a justa indenização”.
A Braskem, as ‘indenizações’ e a insensibilidade
A Braskem está em território alagoano desde 1976, quando ainda levava o nome de Salgema. Durante mais de quatro décadas, a empresa – que até mudou de nome – extraiu sal-gema do solo, tal atividade só foi oficialmente encerrada no ano de 2019.
Claudia Pedroza atribui o caos que se instaurou à empresa, mas também aponta responsabilidade do setor público que, de acordo com ela, foi conivente com a mineradora ao longo de todos esses anos.
“A Braskem faz o lado dela. É uma empresa poderosa economicamente e politicamente, não é à toa que está, há tanto tempo, minerando com a conivência das autoridades. [Todo o caso] É uma insensibilidade desde o início, até porque ela se vende como uma empresa que faz projetos sociais, como uma empresa que preza pela sustentabilidade. Eu particularmente tenho mais ojeriza e revolta com o poder público, que vem com essa conivência há 40 anos. A Braskem conseguiu costurar um acordo. O grande objetivo dela é lucrar e ela continua lucrando com toda essa tragédia, que ela já sabia que ia acontecer. Uma empresa desse porte não atua sem saber o que faz. Infelizmente, a gente ainda consegue se impressionar com a falta de sensibilidade”, desabafa.
Outra questão que gera indignação na proprietária diz respeito às indenizações oferecidas pela mineradora. Claudia não acredita que sejam justas e cobra uma maior transparência nas negociações, bem como um olhar mais solidário e menos cruel por parte das autoridades.
“Eu ouvi uma fala de representantes do Ministério Público Federal (PPF) dizendo que ninguém é obrigado a fechar o termo de adesão e que podemos judicializar. O problema é afirmar isso quando as vítimas estão em situações precárias, com problemas de saúde sérios. Quando você já está encurralado, você precisa aceitar. Eu queria muito entender qual o parâmetro das propostas. Grande parte das indenizações não são justas”
E prossegue:
“E por mais que sejam ‘justas’, na verdade, nenhuma será completamente. Eu não queria sair dali, eu não queria entregar a minha padaria, eu fui obrigada. Para grande parte das pessoas que moravam ali, as indenizações nunca serão justas. Era um local escolhido pelas pessoas para viver, da maneira que eles escolheram. Tudo isso gera um declínio psicológico e de saúde imensurável”.
Ao longo desse pesadelo, o suporte familiar foi crucial para Claudia. Ela relata que não saberia onde estaria sem esse apoio e lembra que os antigos funcionários também sofrem diretamente com o descaso.
“Se eu não tivesse um suporte de família e financeiro, eu não sei onde estaria, pois eu já teria fechado as portas da padaria anteriormente, devido às dívidas contraídas e ao pagamento aos funcionários, que ainda não receberam porque a Braskem não repassou a indenização e permanece estudando os valores rescisórios. Os funcionários também merecem indenizações, afinal de contas são pessoas que moravam nas regiões atingidas por conta do trabalho. Os trabalhadores foram totalmente esquecidos. Infelizmente, não temos dinheiro para bancar todas as rescisões”, conta.
A luta e o futuro
A Associação dos Empreendedores do Bairro do Pinheiro atua para ajudar a sanar os prejuízos causados pela Braskem na região e tem o “objetivo de criar condições para as empresas sobreviverem, crescerem e buscarem indenizações diante dos graves problemas do bairro”, como diz no perfil do projeto em uma rede social.
Claudia Pedroza também integra o grupo, que encabeça movimentos e protestos, porém ainda com baixa adesão. Ela cobra uma maior participação: “É preciso ir pra rua e exigir os nossos direitos. Precisamos defender os nossos interesses”.
“Quando fizemos as manifestações, especialmente a última, tivemos o apoio de movimentos populares. Gostaria de agradecer a todos. O fato triste é que fomos alvo de críticas e xingamentos das pessoas que passavam e dos próprios moradores, que desmereceram os protestos por ter a presença de grupos, como o Movimento dos Sem Terra (MST). Tentamos fazer um ato em prol de todos e ainda fomos alvos de críticas”, lamenta.
Claudia finaliza enviando uma mensagem para os seus colegas de luta, ressaltando a importância de cuidar da saúde mental e lembrando que a busca pelos direitos deve ser constante.
“Falar pra eles é como falar pra mim mesma. Paciência, façam o melhor que vocês puderem pela mente para não perderem o controle emocional. Cuidem-se ao máximo. Somos hoje pessoas adoecidas. Tivemos que sair das nossas casas e isso nos trouxe problemas psicológicos. Busquem profissionais que vistam a camisa da causa e lutem por seus direitos. Tudo o que queria era resolver essa questão, virar a página e não olhar para trás, porém não nos deixam”.