19 de fevereiro de 2022 11:31 por Da Redação
No ano em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna, onde alguns paradigmas e conceitos canônicos foram questionados e desmistificados, questões provocativas à atualidade serão sempre bem-vindas. Partindo de uma provocação conceitual, poderíamos refletir sobre uma hipotética demanda por coerência, no contexto da música popular contemporânea. Então, o que é ser coerente? O que seria a coerência artística? O que dizer do uso da ideia de coerência, como argumento ou mesmo critério de valor? Eis algumas indagações postas à mesa, ao menos por aqui.
Tais arguições brotam facilmente, mesmo que não careçam de respostas capazes de definirem assertivamente esse ou aquele trabalho. É fato que para haver a percepção de coerência, pressupõe-se a existência de uma ligação a algo pretérito, que haja nexo ou harmonia entre dois ou mais fatos ou ideias e algum tipo de relação harmônica ou conexão. Porém, quem poderá afirmar, categoricamente, que a coerência artística é um fator limitante da obra? Ou que cabe ao artista o fardo da constante inovação, para que tenha uma espécie de alforria e permaneça fora do alcance dos grilhões da estagnação? Na música popular brasileira, por exemplo, as mais bem-sucedidas carreiras estão alicerçadas em bases sólidas da coerência artística, cuja obra nada propõe de novo em forma e conteúdo, bastando-lhes ter tido ou sido uma única vez, e só!
Dialética das Questões
Ser coerente ao cerne e proposta umbilical de sua arte não desmerece o artista, sobretudo, aqueles que só atiram flechas mirando o alvo certo à sua zona de conforto. Levando-se em consideração alguns desses conceitos, o terceiro e mais recente álbum do compositor alagoano Marcos Farias, Estação Utopia, traz perspectivas sob um ponto de vista não hermético, pois apresenta pegadas sugestivas à dialética dessas questões colocadas aqui. Dito isso, o álbum Estação Utopia é uma continuação do segundo, O Tempo é Agora, que, por sua vez, também é uma continuação do álbum de estreia de Marcos Farias, EmCantos, lançado em 2012. Existe, pois, uma coerência entre eles, o que nos leva a crer em prolongamento.
Estação Utopia, em suas 11 faixas, é bastante fiel à proposta musical de Marcos Farias que, não é segredo para ninguém, tem enorme influência da turma de Minas Gerais, do Clube da Esquina, do 14 Bis e dos irmãos Venturini. Tais referências estão presentes na construção dos arranjos, nos falsetes em agudos super afinados e já característicos à individualidade de Marcos Farias. Aliás, ao longo desses três álbuns, fica evidente um atributo bem peculiar à forma de cantar e compor desse artista que, supostamente, ao nascer, já chorou afinado! Por isso, Marcos Farias alonga todas as notas sem medo de ser feliz e, certamente, se dependesse dele não existiria o melodyne. Assim, finais de frases com palavras como ‘há lagoas’, tornam-se – numa tentativa de explicar em grafia – ‘há lagoaaaaaaaaas’, ou Mundaú, em ‘Mundauuuuuuuuuú’. Auditivamente, a faixa 5, Há Mares, Há Lagoas (Marcos Farias) foi toda construída com essa estrutura melódica e é também uma bela homenagem, em citações, a alguns dos ícones da cultura popular alagoana, onde pontua uma sanfona em contrapontos e solo tão singelo quanto belo.
Cartas nas Mangas
Esse é um álbum produzido a seis mãos, já que, apesar de Silvano Queiroz assinar a produção musical de 8 das 11 faixas, Norberto Vinhas assina duas delas: Estação Utopia (Marcos Farias) e Canto da Sereia (Marcos Farias) e Van Silva assina a já citada Há Mares, Há Lagoas. Porém, tudo começa delicadamente arranjado em Jardins e Quintais (Marcos Farias), que abre o álbum em alto estilo e sem deixar cartas nas mangas, pois apresenta logo de cara a convidada especial Wilma Araújo. É uma bela canção contemplativa e, ao que parece, o cobertor da tonalidade ficou curto para ela.
A música que dá título ao álbum, Estação Utopia, é a segunda na sequência do set list e quebra a atmosfera da anterior, trazendo a pegada mais pop da concepção de arranjo e sonoridade propostas por Norberto Vinhas. É daquelas feitas para tocar no rádio, se as emissoras ainda tivessem essa noção do que lhes cabe e não do que apenas lhes rende em jabá. Chamo atenção para a versatilidade do Vinhas, ao rearmonizar Canto da Sereia, numa releitura minimalista de violões e um belíssimo vocalize da Jucélia Gomez, na introdução. Quem conhece o trabalho do Marcos Farias lembrará dessa canção, pois ficou bastante conhecida no álbum EmCantos. Tranquilamente, ouso afirmar: eis uma canção que Flávio Venturini poderia ter feito! Outra releitura é Onde Estará o Meu Amor (Chico César), que virou uma balada pop, regada a guitarras com distorção e à boa ideia de um oboé, com execução de André Tokura, tudo sem maiores anseios do que ser objetivamente direta, funcional e bem resolvida.
E assim seguiremos pelas estações muitíssimo bem elaboradas e definidas pela clareza e lucidez de um artista perene, que tem se revelado maduro a cada novo trabalho, cuja coerência se faz sentir e interessa como refúgio nesses tempos distópicos, onde pedras fundamentais ao nada são lançadas a todo momento, em breves eras de flutuação, antes de submergirem sem bolhas no mar da contemporaneidade, pouco oxigenado e poluído de toscas intenções. Contudo, antes da última e derradeira estação utópica, Marcos Farias sai da moldura e nos agracia com um tema praticamente instrumental, Preta (Marcos Farias), cujo subtítulo é ‘Ode à Tia Marcelina’, pondo luz e foco sobre a frase “bate moleque, quebra perna, quebra braço, tira sangue, mas não tira saber”, atribuída à Tia Marcelina ao ser vitimada pela intolerância, no episódio conhecido como Quebra de Xangô, em fevereiro de 1912. Eis uma questão que as utopias parecem não conseguir alcançá-la e resolvê-la.
Serviço
Estação Utopia, Marcos Farias
Disco físico: à venda em marcosjosesfarias@gmail.com
Preço: R$ 30,00
Plataformas digitais: Spotify, Apple Music, Deezer, YouTube
No +, MÚSICABOAEMSUAVIDA!!!