19 de março de 2022 12:40 por Redação
Por Murilo Pajolla, do Brasil de Fato
Lábrea (AM) – Em julho de 2019, o delegado da Polícia Federal (PF) Marcelo Xavier se preparava para assumir a presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai). Sua indicação havia sido cogitada em um encontro entre o então ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, e representantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a bancada ruralista.
Aos olhos do governo de Jair Bolsonaro (PL), Xavier era a raposa mais qualificada para tomar conta do galinheiro. Ele tinha o aval do influente latifundiário Luiz Antônio Nabhan Garcia, secretário Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) e inimigo autodeclarado da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas.
Além disso, Xavier havia trabalhado lado a lado com ruralistas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai, cujo relatório final pediu o indiciamento de servidores da Fundação, antropólogos, indígenas e integrantes de ONGs. Sua breve experiência como ouvidor da Funai também o habilitava para o cargo, na visão do governo.
Até então, a Funai era presidida pelo general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Ao saber da brusca mudança de rumos que se avizinhava, ele convocou seus subordinados do alto escalão para uma reunião. “Preparem-se, que eles [ruralistas]vão arrebentar com tudo”, alertou, segundo um participante da reunião relatou ao Brasil de Fato.
Dito e feito: quase três anos depois, o agronegócio se apoderou da Funai, travando quase que completamente a execução da política indigenista brasileira prevista na Constituição Federal. “Abriram a Funai para tudo o que é ruim para os direitos dos indígenas. Ou seja, o lobby da grilagem e do mercado de terras e do agronegócio. Tudo para minimizar e relativizar as leis, portarias e procedimentos que garantiam aos indígenas a proteção de suas terras”, diz Beto Marubo, representante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava), região com maior número de povos em isolamento no planeta.
Omissão da Funai torna povos isolados alvos fáceis de grileiros
Descentralizada no território e em contato permanente com os indígenas, a Funai é o órgão desenhado para garantir o acesso de indígenas a direitos sociais básicos, como saúde, educação e alimentação.
No caso dos povos isolados, aqueles que não mantêm contato regular ou significativo com a sociedade dos colonizadores, a existência do órgão indigenista é uma questão de vida ou morte.
“Os parentes isolados só existem nos dados da Funai. Sem a proteção, qualquer um pode ir lá e matá-los. Na Amazônia, isso é fácil. O grileiro pega um monte de pistoleiro, entra nas terras e some com os índios. E vai dizer: ‘Eles não existem, não estavam aqui’”, alerta Marubo.
Com Bolsonaro no poder, organizações indígenas de todo o país subiram o tom nas críticas e denúncias de violação de direitos. Os grupos isolados, no entanto, não têm como vocalizar suas demandas e se tornaram um alvo fácil dos ruralistas infiltrados na Funai.
Explosão de desmatamento em terra cobiçada por ruralistas
Na terra indígena Piripkura, no Mato Grosso, vivem três indígenas remanescentes do povo Piripkura, e há indícios de mais um grupo sem contato de cerca de 17 pessoas.
Uma portaria de restrição de uso – usada em territórios indígenas não demarcados com presença de grupos isolados – proíbe o avanço de atividades econômicas no território. Desde 2019, porém, o ritmo do desmatamento ilegal sofreu uma explosão, com aumento de 27.000%.
Não é coincidência que Nabhan Garcia, articulador da indicação de Marcelo Xavier à presidência da Funai, tenha interesse direto no estado.
Segundo reportagem do De Olho no Ruralistas, ele já declarou à Justiça Eleitoral ser sócio de uma empresa de extração de madeira no Mato Grosso. Nos anos 1980, o sogro dele, Alcides Parzianello, comprou 67 mil hectares de terras pertencentes ao povo Pareci.
Funai revelou informações sigilosas a ruralista
Outra área que abriga isolados e está na mira dos ruralistas é a terra indígena Ituna Itatá, no Pará.
Quando um relatório de sertanistas da Funai indicou a presença dos grupos na região, Marcelo Xavier compartilhou o teor do documento justamente com um dos maiores adversários da demarcação do território, o senador Zequinha Marinho (PSC-PA). A informação foi revelada pelo colunista Rubens Valente, do Uol.
O encontro ocorreu em novembro do ano passado, fora da agenda oficial de Xavier, e discutiu supostas “impropriedades ou irregularidades, cunho ideológico e imprestabilidade” do relatório produzido pelos servidores, cujo teor é considerado sigiloso, por conter informações que podem comprometer a segurança dos indígenas.
Dois meses depois, quando venceu a portaria de restrição de uso da Ituna Itatá, a Funai anunciou que não iria renová-la, atendendo aos interesses do senador. Xavier só mudou de ideia após a Justiça Federal acolher um pedido do MPF e expedir ordem judicial determinando a renovação da proteção ao território.
“O problema central é terra”
Bolsonarista, Zequinha Araújo foi diretor da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e já se manifestou publicamente a favor do garimpo ilegal no Pará. Ironicamente, foi escolhido para presidir a Comissão Mista de Mudanças Climáticas (CMMC) no Congresso, em uma eleição que foi classificada pela oposição como uma manobra do governo federal para controlar os debates sobre as mudanças climáticas.
“O problema central é terra. Em um país que nunca fez uma reforma agrária de fato, a bancada ruralista vem tomando de assalto as balizas de ação do governo. São pessoas que têm uma perspectiva capitalista absurda do esbulho”, avalia Leonardo Lenin Santos, integrante do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi).
Antes de permitir o acesso de um ruralista ao relatório sigiloso, a Funai já havia cogitado reduzir pela metade a terra indígena Ituna Itatá, conforme reportagem de Rubens Valente. O senador Zequinha Marinho apareceu, de novo, como um articulador da ameaça à vida dos isolados. Foi a partir da atuação dele junto ao general da reserva e ministro Luiz Eduardo Ramos que a iniciativa de redução do território ganhou força.
“Se você quiser destruir um povo indígena, é só acabar com a terra dele. Será só um povo sem nenhuma referência. É um sentimento colonialista [do governo federal]. Ou seja, a Amazônia deve ser invadida para gerar uma economia de commodities”, analisa Beto Marubo, da Unijava.
Funai favorece catequização de indígenas
Outro episódio que escancarou a política anti-isolados da Funai foi a nomeação, em fevereiro de 2020, de um pastor evangélico para assumir a Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados.
O religioso é Ricardo Dias Lopes, membro da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), uma organização criada nos Estados Unidos e que promove a evangelização de indígenas brasileiros desde os anos 1950, com forte atuação no Vale do Javari.
“Um missionário evangélico fundamentalista, como o que assumiu esse cargo, é tão nefasto para os índios quanto um garimpeiro ou um madeireiro. O histórico do indigenismo tem registrado o quanto eles foram ruins para nossa cultura”, critica Marubo.
Na avaliação do OPI, a submissão de indígenas ao cristianismo, e a consequente aniquilação de suas culturas originárias, é uma estratégia de desagregação social que corresponde aos interesses do agronegócio, facilitando a exploração das terras.
“Essa ação percebe o índio como ser inferior que necessita receber a palavra de Cristo. E de fundo libera suas terras para que eles sejam trabalhadores braçais dentro desse modelo econômico”, avalia o indigenista Leonardo Lenin.
O Ministério Público Federal (MPF) reagiu e ajuizou uma ação civil pública pedindo a anulação da nomeação de Ricardo Lopes Dias. Na ação, anexou documentos que revelavam a intenção da MNTB de expandir ações de evangelização em territórios indígenas.
Magno Malta e Damares promoveram ação de missionários
Uma reportagem dos sites Bocado e O Joio e o Trigo revelou que a Funai forçou a entrada de missionário da Jovens com uma Missão (Jocum) para o interior da terra indígena Suruwahá, no sul do Amazonas, habitada pelo povo de recente contato de mesmo nome.
A incursão, realizada no início de 2018, teve a presença de uma indígena Suruwahá, que havia se convertido ao cristianismo após deixar a aldeia.
A missão de evangelização foi relatada aos sites Bocado e O Joio e o Trigo pelo indigenista Daniel Cangussu, servidor de carreira da Funai. Ele disse que foi obrigado pela cúpula do órgão indigenista a conduzir os visitantes aos Suruwahá.
A pressão, disse o servidor, tinha origem no então senador e pastor evangélico Magno Malta. Na época, ele era assessorado por Damares Alves, atual ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos e alvo de investigação do MPF por tráfico e sequestro de crianças indígenas.
Coordenador confirmou isolados, mas não articulou proteção
Após nove meses no cargo, o pastor Ricardo Lopes Dias foi exonerado. No seu lugar, entrou o servidor de carreira Marcelo Torres. Hoje, no entanto, quem comanda a Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) é o coordenador em exercício Geovânio Pantoja Katukina.
Ele elaborou o relatório técnico que confirmou a presença de indígenas isolados na terra indígena Jacareúba/Katawixi, no sul do Amazonas. Mesmo assim, esse é o único território com presença de isolados cuja portaria de restrição de uso não foi renovada, ficando à mercê da atuação de criminosos ambientais.
A contradição revela que o interesse de ruralistas e missionários se sobrepôs à missão institucional da Funai, que é proteger os direitos dos povos indígenas.
“A área de atuação da CGIIRC é muito técnica e precisaria de muito mais gente para fazer um trabalho bem feito. Mas não tenho a menor dúvida que o principal fator é o fator político. Essa é a orientação que está colocada atualmente, que vem se somar a esse quadro de debilidade estrutural que fragiliza há anos a proteção desses povos”.
A avaliação é de Fernando Vianna, presidente da Indigenistas Associados (INA), associação que congrega servidores da Funai.
Segundo ele, a estratégia de atrasar ou não renovar as restrições de uso dos territórios com presença de isolados são reflexo direto da contaminação do órgão indigenista por interesses ruralistas.
“A política da atual gestão para povos isolados é parte de uma política mais ampla, que por um lado consiste em não demarcar terras indígenas e, por outro, em fragilizar a proteção territorial das terras que estariam em processo de demarcação, facilitando o acesso de não indígenas a exploração econômica de recursos naturais desses espaços”, pontuou.
Outro Lado
A reportagem transmitiu as críticas à assessoria de comunicação da Funai e perguntou se há previsão de estabelecer restrição de uso para a terra indígena Jacareúba/Katawixi, no sul do Amazonas. O órgão acusou recebimento das mensagens, mas não se pronunciou.
O Brasil de Fato procurou também o coordenador em exercício da CGIIRC, Geovânio Pantoja Katukina. Ele disse que não poderia responder, em razão da norma interna que proíbe servidores de darem entrevista sem o aval do setor de comunicação da Funai.