segunda-feira 23 de dezembro de 2024

Míriam Leitão: O general do STM perdido no tempo

O deboche diante de relato tão terrível, quanto o de mulheres grávidas sendo torturadas a ponto de abortarem, é repulsivo
Míriam Leitão | Gabriel Monteiro/Agência O Globo

Em O Globo

Qual é a tendência da notícia que trouxe as falas dos ministros do Superior Tribunal Militar (STM) sobre os casos de tortura? Fardado, em português claudicante, com visão persecutória, o general Luís Carlos Gomes de Mattos, atual presidente do STM, acusou a notícia dada por esta coluna de “tendenciosa”. Segundo ele, “a gente já sabe os motivos do por quê” a informação está sendo divulgada agora. Ora, os motivos: a tortura existiu, os ministros do STM falaram dela abertamente, e agora, graças ao esforço de advogados e historiadores, essas vozes saíram do túnel do tempo. Túnel no qual está perdido ainda o general Gomes de Mattos.

O que me impressiona em algumas reações aos áudios, como a do presidente do STM, e a do vice-presidente da República, é a falta de visão estratégica sobre a imagem das instituições. Falta inteligência institucional. Ao reagir como reagiu, Gomes de Mattos vinculou o tribunal de hoje àquele antigo que fez o papel de tribunal de exceção. Quando diz que a notícia é um ataque ao Exército, Marinha e Aeronáutica, o ministro liga as Forças Armadas de hoje ao que houve de pior na ditadura militar.

O deboche diante de relato tão terrível, quanto o de mulheres grávidas sendo torturadas a ponto de abortarem, é repulsivo. “Não estragou a Páscoa de ninguém”, segundo o general. Esse tipo de manifestação, como a risadinha do general Hamilton Mourão, faz um enorme estrago à imagem das Forças Armadas e do tribunal. Não é a notícia do que houve nos anos 1970 que prejudica as Forças Armadas de agora. É esse tipo de reação que as mostra paradas no tempo.

Aonde estão as vozes da sensatez dentro das Forças Armadas? Se ninguém se levanta contra esses absurdos, a única conclusão possível é que de fato são todos coniventes com a tortura. Desta forma, os militares de hoje viraram guardiões dos criminosos. Seria mais inteligente à corporação fazer um corte com esse passado e lembrar que são outros os valores hoje praticados.

O advogado Técio Lins e Silva lembra que na ditadura de 1930 foi criado um tribunal para julgar os que o regime da época considerava inimigos políticos. Era o Tribunal de Segurança Nacional. Quando o país foi redemocratizado, o órgão foi fechado:
— Ficava ali na Rua Oswaldo Cruz, onde hoje é uma escola pública.

Na ditadura de 64, a tarefa foi entregue à própria Justiça Militar. Já é controverso haver uma justiça corporativa, mas virou aberração quando verdadeiras cortes marciais julgavam civis, alguns deles muito jovens.

Das muitas distorções vividas no Brasil, uma delas foi a Lei da Anistia. Nasceu de um movimento popular, era para os presos e perseguidos políticos, virou a excrescência do perdão aos criminosos que agiram em nome daquele regime.

O general do STM fala que as notícias “varrem de um lado só”. Quem ficou contra a ditadura, por palavras ou atos, foi preso, torturado, julgado pela Justiça Militar, foi exilado, cassado ou morto. De alguns, os militares esconderam o corpo. Ocultação de cadáver, a propósito, é crime continuado. Não prescreve porque não se sabe a partir de que ponto o tempo é contado. Um lado foi varrido, no outro a sujeira continua.

O advogado Técio Lins e Silva lembra que os que pegaram em armas não foram anistiados:

— Revogada a Lei de Segurança Nacional houve uma adequação das penas aplicadas à nova ordem jurídica. O crime de assalto a banco com motivação política era punido com 12 a 30 anos. Revogada a lei, a pena era de 4 a 10 anos. Então, os advogados negociavam no STM essa revisão da pena. Em geral, com o general Augusto Fragoso, que dominava mais os cálculos, era quem fazia a conversão.

A Lei da Anistia virou apenas o governo perdoando os criminosos das Forças Armadas e da polícia política. Uma aberração.

O presidente do STM disse que a notícia foi tendenciosa. Na verdade, a tendência da notícia dos áudios foi informar. Não se conheciam aqueles diálogos. Eles contam muito sobre um tempo passado. Só não fica no passado porque foram atualizados pelos generais que, com deboche, ou visão conspiratória, defendem o crime, que até alguns ministros da época repudiaram.

A única coisa certa que os militares têm a fazer é romper com esse passado tenebroso, admitir que houve tortura, e garantir que isso não representa mais os valores do presente. Só quem conspira contra Forças Armadas hoje são as próprias Forças Armadas.

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