19 de dezembro de 2022 4:57 por Da Redação
Implementada há dez anos, a Lei de Cotas mudou o futuro de muitos brasileiros ao garantir vagas do ensino superior público para alunos negros, indígenas, de baixa renda e com deficiência. Francisco Cavalcante, de 23 anos, é uma dessas pessoas que tiveram a vida transformada. Natural de Jaguaribara, cidade do interior do Ceará com pouco mais de 11 mil habitantes, ex-aluno de escola pública, filho de uma mãe solo e caçula de seis irmãos, ele se tornará no fim deste ano a primeira pessoa a concluir o ensino superior em toda a árvore genealógica da família. Recentemente, ele foi selecionado para uma bolsa como um dos cinquenta embaixadores da Cúpula do One Young World, com jovens líderes de todo o globo, e participou das conferências do projeto em Manchester, no Reino Unido.
Em depoimento a Lianne Ceará
Nasci num contexto de vulnerabilidade em todos os níveis: social, econômico, educacional e racial. No interior do Ceará, em uma região afetada pela seca. Durante toda a minha vida, fui aluno de escola pública. Sou o mais novo de seis irmãos, e fomos todos criados por uma mãe solo, nossa Maria Almeida. Para nos sustentar, já fez de tudo um pouco – varreu as calçadas da cidade, foi lavadeira de roupas no rio, merendeira escolar… Na minha casa, ninguém estudou, ninguém terminou o ensino médio nem o fundamental. Nem meus avós, nem meus bisavós e nem ninguém da minha árvore genealógica, pelo menos não que eu saiba. O esperado era que eu seguisse essa mesma lógica.
Quando eu tinha 3 anos, fomos obrigados a deixar a cidade, Jaguaribara, por causa da construção de um açude, o Castanhão. A antiga sede da cidade foi demolida para receber a barragem. Fomos realocados em uma nova sede. Minha mãe, que trabalhava como lavadeira de roupas no rio, acabou perdendo o sustento, já que o rio tinha ficado muito longe e ela não conseguia mais ir a pé. Passamos a morar no Habitar Brasil, um conjunto habitacional construído na nova cidade para pessoas que não tinham imóvel próprio antes da mudança. Cresci ali, brincando nas ruas o dia todo. E era o dia todo mesmo, eu não era um bom aluno, não ia à escola quase nunca, reprovei na segunda série do ensino fundamental, não me sentia nem um pouco atraído pela escola, sabe? Nem o Bolsa Família fez com que eu frequentasse – pela minhas faltas na escola, nosso benefício chegou a ser cortado. Sem presença escolar, sem Bolsa Família. E assim aconteceu.
Durante a quinta série do ensino fundamental, meus irmãos cuidavam de mim para que minha mãe pudesse ir trabalhar. Eles frequentavam o Projeto Aprender, Brincar e Crescer (Projeto ABC), mantido pela prefeitura. Eu participava das aulas e os professores começaram a gostar de mim, porque eu me interessava muito. Fazia teatro, danças, karatê e capoeira, só não jogava futebol. E ainda tinha a melhor parte: a merenda. Meu prato preferido era a macarronada. Um dia, o projeto passou a exigir frequência na escola regular. Foi o ABC que me pôs de volta na escola – e recuperou o nosso benefício social também.
Comecei a gostar das feiras de ciências, porque vi que podia trazer minha realidade para a escola: comecei a pesquisar e apresentar aspectos da minha cidade, do Habitar Brasil, de casos de assassinato pelo tráfico de drogas que eu via acontecer com meus colegas. Comecei a perceber que isso acontecia muito pela falta de oportunidades. O que me diferencia desses meus colegas não é que eu seja melhor ou tenha mais méritos, mas sim que eu tive acesso a caminhos e oportunidades que eles foram impedidos de trilhar. Se eu não tivesse ido à escola, talvez o meu destino fosse o mesmo.
Com as feiras de ciências, comecei a ganhar vários prêmios regionais e estaduais, e acabei alcançando dois marcos na trajetória da minha família: terminar o ensino fundamental e alcançar o posto de melhor aluno, com mais de vinte prêmios em olimpíadas e feiras de ciências. Vários problemas estavam acontecendo na cidade nessa época, como o corte de iluminação pública e coleta de resíduos por falta de pagamento. Fundei, de forma muito iniciante, uma plataforma de comunicação comunitária, o Jaguaribara em Foco – fiz um blog, redes sociais e todo dia postava notícias da cidade lá. Depois, por falta de incentivo, apoio e com tantas tarefas obrigatórias surgindo, tive que paralisar o portal.
No ensino médio, fiz inscrição em um curso técnico integrado, para terminar o ensino médio num instituto federal. Em 2016, tive que me mudar para uma cidade vizinha, Jaguaribe, e lá cursava eletromecânica e estava sempre em companhia com mais dez amigos, também de Jaguaribara. Durante dois anos do curso, vi um a um desistir. Todos vinham da mesma realidade que eu, as condições financeiras eram difíceis e, mesmo sendo uma cidade pequena, tínhamos que pagar aluguel, alimentação – para quem tem pouco, qualquer coisa faz falta. Dos dez, só eu e mais um conseguimos concluir o curso técnico. Contei com ajuda de familiares e terceiros, mas consegui. Nesse período, resolvi pesquisar o impacto do Bolsa Família na educação de jovens. Com essa pesquisa, ganhei um prêmio estadual e outros municipais.
Depois de dois anos fazendo o Enem como treineiro, fiz valendo em 2017 e, após terminar o ensino médio e técnico, fui aguardar o resultado em Jaguaribara. Eu sempre ia bem na redação, mas como tinha feito o curso técnico, esperava melhorar em química, física e matemática – e foi o que aconteceu. No Sisu, através da Lei de Cotas, passei para a minha primeira opção de curso, direito, e resolvi escolher o campus da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em Mossoró, a 178 km de Jaguaribara – minha cidade não tem nenhuma instituição de ensino superior. Como Mossoró era uma cidade mais próxima e também no interior, seria mais barato que Fortaleza, a capital. Até então, eu nunca tinha saído do Ceará. E lá fui eu, em 2018, romper mais um paradigma da minha família: ser o primeiro a ter acesso ao ensino superior. Desde então, já publiquei artigos em âmbito local, estadual e nacional, ganhei bolsas de iniciação científica e permanência estudantil, sempre buscava estar fazendo algo, fosse uma pesquisa, um estágio.
Navegando no Instagram em 2018 vi um anúncio para participar de um evento na Universidade de Harvard, o Brazil Conference at Harvard & MIT, em Boston. Em janeiro de 2019, me ligaram e falaram que eu havia sido selecionado para ser embaixador do evento com tudo pago e que em abril estaria embarcando para Boston. Lembro que comecei a chorar ainda na ligação. Fui contar pra minha mãe e ela chorou junto, mas acho que nunca entendeu a dimensão disso tudo. Eu, que nunca tinha sequer andado de avião, peguei o meu primeiro para ir a Recife resolver o visto americano.
Em Boston, eu, Francisco, ou melhor, Chico, como sou conhecido, estive em meio a personalidades como ministros do STF, Fernando Henrique Cardoso, Ciro Gomes e Djamila Ribeiro. De paletó, gravata e sapato social, eu me lembrei de minha mãe, mais uma das inúmeras Marias do Brasil. Na minha vez, contei sobre minha família, sobre minha cidade, sobre minha infância e falei que o ABC, projeto que a devo minha formação pessoal e educacional, estava desativado. Conheci inúmeras pessoas e me envolvi em iniciativas para jovens líderes do Brasil. Foram tantas mensagens que meu celular, um aparelho não muito bom na época, parou de funcionar durante a viagem. Só falei com minha mãe quando cheguei em Jaguaribara. Do jeito dela, ela demonstrou o orgulho que sentiu de mim. Com pouco tempo, recebi a notícia de que minha voz tinha ecoado na cidade, e a prefeitura ia reativar o ABC.
Em 2020, reativei e reformulei o projeto do Jaguaribara em Foco junto com mais alguns amigos e abrimos um processo seletivo para voluntariado de jovens comunicadores locais. Estávamos com receio que as inscrições não obtivessem um número bom de candidatos, mas contamos com quase quarenta inscritos e vinte foram selecionados, todos de Jaguaribara. Lá, estamos acostumados a ouvir que os jovens não têm interesse ou que falta esforço, mas esse episódio me fez reafirmar que, na verdade, faltam oportunidades.
Na universidade, passei a entender meu lugar de cotista. Realizo trabalhos e pesquisas sobre ações afirmativas. Na faculdade, me deparei com uma quantidade muito pequena de pessoas negras no curso de direito, historicamente um curso elitista. Desenvolvi um projeto de pesquisa identificando os cotistas da faculdade de direito da Uern e se esse sistema estava realmente beneficiando esse público da forma a que se propunha. Durante três anos mantive bolsas de pesquisa com esse projeto, concluindo que, sim, a Lei de Cotas tem essa efetividade normativa, papel social e garante a inclusão de estudantes no curso de maneira equitativa. Também já estudei como evitar fraudes nessa lei, e agora, no TCC, estou estudando o modelo regulatório das cotas.
Tenho 23 anos. Só consegui o que consegui graças a projetos sociais e à Lei de Cotas. Este ano embarquei para a minha terceira viagem internacional, para o Reino Unido, como um dos cinquenta embaixadores pela Comissão Europeia do One Young World Summit, direcionado para jovens líderes de todo o globo. Lá, presenciei, inclusive, um fato histórico: a morte da rainha Elizabeth II. A programação do último dia do evento foi suspensa, e as ruas de Manchester esvaziaram.
Um dia antes de embarcar para o Reino Unido, estava na minha casa com minha mãe, minha irmã e meu sobrinho, escutamos barulhos que pensamos ser de tiros e fomos até a calçada para averiguar. Ao passarmos pelo portão, um homem em fuga o invadiu e, logo depois, outro com uma arma também. Só lembro de correr para o meu quarto, me enfiar debaixo da minha cama e escutar minha mãe gritando da calçada: “Na minha casa não, pelo amor de Deus!” Não sabemos o que houve, mas o fato é que nada aconteceu sob nosso teto. Passei um dia inteiro chorando e pensando em desistir de ir ao evento, mas quero buscar mudança para minha realidade.
Quero que outros Chicos também possam fazê-lo. Quem diria que o Chico, menino das ruas de Jaguaribara, filho de Maria Lavadeira, num contexto de vulnerabilidade em muitos níveis, teria sequer acesso ao ensino superior? Eu estou aqui hoje para que outros Chicos filhos de Marias tenham acesso à educação e possam ocupar espaços para mudar a realidade violenta e desigual que o Brasil vive.
Fonte: Revista Piauí