terça-feira 24 de dezembro de 2024

Os efeitos do crime ambiental da Braskem na educação de Maceió

Exploração de sal-gema da mineradora afundou bairros e prejudicou mais de 7 mil alunos
Imóveis que foram evacuados devido ao afundamento do solo ocasionado pela exploração de sal-gema | Edilson Omena/Tribuna Independente

Por Géssika Costa e Jean Albuquerque, do JB Ambiental

Quem olha o cenário atual da Escola Municipal Radialista Edécio Lopes, no Pinheiro, bairro da capital alagoana, já não consegue se lembrar do tempo em que aquele espaço era dedicado a construir o futuro. O silêncio agora é o único som no local. Não há mais teto. Mato e entulho dominam o chão. As paredes, antes com cartazes que mostravam as atividades dos estudantes, estão tomadas por infiltrações e pelo lodo. O lugar que por tanto tempo foi referência para o bairro hoje afunda.

O clima de incerteza na Edécio Lopes começou no sábado, 3 de março de 2018, quando um tremor de terra com magnitude 2,5 na escala Richter foi registrado em vários bairros da cidade. Para alguns, parecia o fim do mundo. Paredes racharam, parte do asfalto cedeu e buracos apareceram no piso de dezenas de imóveis. Prédios, casas e estabelecimentos comerciais foram esvaziados, sob orientação da Defesa Civil de Maceió, assim como escolas.

Apenas um ano e dois meses depois, em maio de 2019, o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) apresentou à sociedade um laudo conclusivo revelando a principal causa do surgimento das rachaduras: a atividade de mineração na extração de sal-gema da bilionária Braskem. A retirada do material, um tipo de cloreto de sódio utilizado na fabricação de soda cáustica e do plástico PVC, foi feita de forma inadequada pela Braskem por décadas, desestabilizando as cavernas subterrâneas que já existiam nos bairros e provocando o afundamento do solo. Além do Pinheiro, os bairros Mutange, Bebedouro, Bom Parto e parte do Farol também foram afetados.

Parte de rua e de casa no bairro do Pinheiro após tremor de terra | TNH1/Agência Pública

A Braskem ainda não assumiu oficialmente a culpa. Mas, de maneira contraditória, criou e executa o Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação, o PCF, fruto de um acordo com as autoridades alagoanas e federais. A iniciativa faz a mudança dos afetados pela empresa para outros imóveis e paga indenização por danos materiais e morais, mas é criticada por moradores e comerciantes devido ao baixo valor das indenizações.

A região foi quase totalmente evacuada, tornando-se uma área fantasma na capital. Cerca de 57 mil pessoas foram afetadas, de acordo com o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem. As consequências geradas pelo crime ambiental atingiram ainda outras frentes: ruas e avenidas foram totalmente fechadas; hospital psiquiátrico, desativado; cemitério, interditado e até o campo do CSA (Centro Sportivo Alagoano), time que jogou recentemente a série A do Brasileirão, realocado. Todos esses equipamentos já foram ou serão indenizados pela Braskem, mas há uma área em que os prejuízos são incalculáveis: a educação.

Assim como a Edécio Lopes, ao menos outras 17 unidades de ensino públicas, divididas entre 13 estaduais (11 escolas e 2 centros de formação) e outras 5 do município, com mais de 7 mil alunos no total, foram afetadas com o processo de instabilidade das 35 minas de sal-gema da mineradora. Destes, 3.508 foram realocados para outros prédios e 531 seguem estudando à distância. Outros 3.036 seguem nos mesmos prédios, em áreas de observação pela Defesa Civil.

De uma hora para outra, alunos, pais, professores e técnicos tiveram que conviver com inúmeras incertezas, suspensão das aulas presenciais ainda antes da pandemia de covid-19 e rachaduras por todos os lados. Para os estudantes das oito unidades da “área de criticidade 01”, definida pelo Mapa de Setorização de Danos e de Linhas de Ações Prioritárias da Defesa Civil de Maceió como de monitoramento, há ainda a sensação de medo.

A maioria desses imóveis fica localizada no bairro do Farol, no Centro Educacional de Pesquisa Aplicada (Cepa), maior complexo educacional de Alagoas, inaugurado há 62 anos. O mapa aponta as linhas de ações prioritárias para cada área e de atenção à população afetada, conforme características técnicas e a gravidade/criticidade dos danos observados. Além da “área 01”, há a “área de criticidade 00”, onde estão dez unidades de ensino que precisaram ser desativadas por estarem situadas numa região de maior vulnerabilidade.

Frame do documentário ‘Sal de nossas lágrimas’ | Reprodução

Segundo o coordenador da Defesa Civil de Maceió, Abelardo Nobre, embora a Braskem tenha encerrado a extração de sal-gema na capital alagoana e iniciado o processo de fechamento dos 35 poços de sal, ainda há a possibilidade de sinkhole – escorregamentos de terra que criam enormes crateras, levando para o seu interior tudo o que se encontra no diâmetro do vazio, incluindo ruas, casas e prédios –, não somente onde estavam instaladas as escolas, mas em toda a região afetada.

“É preciso destacar que não descartamos a possibilidade de um evento maior. Não há nenhuma cavidade situada abaixo das escolas, somente próximas”, ressalta Nobre.

Desempregada, a promotora de vendas Deidjan Lins, de 43 anos, tenta ensinar o bê-a-bá a Maria Fernanda, que hoje tem 4 anos, em seu lar. Embora esse tipo de conteúdo pedagógico não seja direcionado para a idade da filha caçula, a mãe conta, aflita, que precisou colar o alfabeto na parede da sala de sua casa para tentar estimular a pequena, após quase dois anos sem atividades pedagógicas. “A gente ensina as vogais, os numerais, as palavrinhas. Para que ela possa juntar e trabalhar a coordenação motora.”

O Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei Luiz Calheiros Júnior), onde Maria Fernanda deveria passar o dia com atividades recreativas e de socialização, precisou ser realocado ainda no período anterior à pandemia do coronavírus por conta dos afundamentos. Apesar de a rede municipal ter retornado às aulas presenciais em fevereiro deste ano, o Cmei seguiu com atividades à distância, o que fez com que a filha de Deidjan fosse afetada duplamente, pela pandemia e pelo maior crime ambiental em área urbana do mundo.

Ela conta que este ano teve que matricular a filha em uma escola de bairro particular para que a pequena não ficasse mais um ano sem estudar. “Ela pedia muito para ir à escola: ‘Mãe, eu quero estudar’, e isso cortava o meu coração, aí a gente colocou ela em uma escolinha de bairro, porque criança nessa idade precisa interagir, eles precisam ter essa troca, de contato entre eles”, diz.

Deidjan diz que durante os últimos dois anos de pandemia recebia da prefeitura apenas um kit da agricultura familiar com leite em pó, um abacaxi, bananas, batata-doce e açúcar.

“Nunca houve aula, sequer uma tarefinha online pra criancinha fazer, nem um parabéns no Dia das Crianças. A minha filha estava matriculada no maternal I. Ano passado, os pais foram convocados para renovar a matrícula. Então, eu fui pra garantir a vaga. Tanto que eu questionei: ‘Mas vocês sabem que ela está passando para o maternal II sem colocar o pé em uma sala de aula, nem saber qual é o nome da professora?’”, relata.

Sofrendo os mesmos efeitos do fechamento das unidades de ensino, alunos da Escola Radialista Edécio Lopes participaram em abril deste ano de uma manifestação batizada de “Aula na Calçada”, realizada na sede da Secretaria Municipal de Educação (Semed). O objetivo era pressionar a prefeitura de Maceió a cumprir os acordos para a realocação do prédio em que estão os alunos dessa unidade e de outras duas escolas: o Cmei Luiz Calheiros Júnior, anteriormente localizado no bairro Pinheiro, e o Cmei Vereador Braga Neto, no Bebedouro, com total de 531 alunos.

Durante o protesto, o Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Alagoas (Sinteal) ouviu os pequenos. Mykaela Josefa, aluna da Escola Edécio Lopes, pediu a volta das aulas presenciais. “Estou me sentindo triste, muito triste, porque eu preciso estar na escola, não gosto de estudar online. É muito chato não conhecer os coleguinhas, as professoras. Eu quero ter aula presencial”, disse em relato aos educadores.

A queixa de Mykaela foi a mesma de Davi Ferreira, também ouvido pelo sindicato. “Muito difícil ter que ficar às vezes perguntando para professora porque a internet está muito lenta. É melhor presencial, que a gente consegue entender melhor.” Já Daniel Augusto cobrou uma solução para o problema: “Que aluguem o prédio para a gente estudar, para a gente ter a educação, ter os coleguinhas”.

“Se estabelecem laços com a comunidade, com os estudantes, com os pais, e isso tem um peso muito grande no aprendizado. Para além da destruição física do ambiente, se destruiu todos esses laços”, diz Consuelo Correia, professora da rede municipal de ensino desde 1988 e presidente do Sinteal. As consequências do crime ambiental atingiram também a histórica sede do sindicato, antes localizada no Mutange, bairro que foi quase que 100% evacuado.

Após meses do protesto, o problema continua. Os alunos continuam recebendo o conteúdo pedagógico via bloco de atividades entregue pelo WhatsApp. Nesse grupo, estão crianças de até 5 anos que, contrariando estudos de especialistas em desenvolvimento cognitivo infantil, precisam fazer uso de telas para ter acesso ao direito à educação.

Enquanto isso, a gestão de João Henrique Caldas, o JHC (PL), prefeito aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que já recebeu o montante de R$ 30 milhões da Braskem pelo prejuízo à educação, proveniente da ação civil pública, ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), informa apenas que o processo de aquisição de um novo prédio para a Escola Edécio Lopes está em andamento e depende de trâmites jurídicos.

Até o momento, apenas a Escola Municipal Padre Brandão Lima e a Escola Municipal Major Bonifácio Calheiros foram reinauguradas com esses recursos. Segundo a Braskem, também foram destinados mais R$ 5 milhões para os custos de realocação temporária e serviço de assessoria na busca de novas escolas. Já as unidades da rede estadual realocadas estão em prédios alugados, e, de acordo com a Secretaria de Estado da Educação (Seduc), todos os gastos estão sendo contabilizados para tratativa final com a Braskem.

Professora da educação básica da rede pública municipal de Maceió e doutoranda em educação pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Nélida Silva explica que o afundamento de solo causado pela mineração da Braskem pode impactar principalmente o aprendizado das crianças da educação infantil. Alagoas tem a maior taxa de analfabetismo do país (17,1%), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2021.

“Primeiro desestrutura toda a primeira instituição de onde esses sujeitos aprendizes veem: as famílias, o lar, o primeiro lugar de segurança, sendo assim, esses aprendizes já chegam à escola com as desigualdades aprofundadas, um primeiro obstáculo a ser superado. E para isso é necessário não só a ação da escola, mas de todas as outras instituições”, argumenta.

Danos emocionais

Nos primeiros minutos da conversa com a reportagem da Pública, a professora Emília Albuquerque, de 57 anos, que por mais de 15 esteve à frente da Escola Municipal Padre Brandão Lima, no Pinheiro, fez, com a voz embargada, um apelo: “Por favor, não me faça chorar mais”. Há três anos, um clima de apreensão e tristeza tomou conta de sua vida.

Em um curto período de tempo, a educadora teve que lidar com a perda repentina de sua casa, situada na área de realocação, e do local de trabalho. Foram mais de três anos longe de um ambiente escolar verdadeiramente acolhedor. Apenas em 6 de abril de 2022, houve a entrega da “nova Padre Brandão Lima”, localizada no Benedito Bentes, parte alta da capital alagoana, distante 14 km da antiga.

Embora considere um marco para uma tentativa de recomeço, o novo espaço em nada se compara ao original. Faltam as histórias, os professores e, principalmente, dezenas de alunos que, com a mudança de endereço, tiveram que transferir a matrícula para outra unidade de ensino.

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