6 de março de 2023 10:24 por Da Redação
Por Eric Nepomuceno
Página 12 , Argentina
Em meio às tensões vividas no Brasil, e diante da expectativa de como Lula da Silva será capaz de reconstruir meu pobre país após o legado deixado pelo ultradireitista Jair Bolsonaro, o pior e mais abjeto presidente de nossa história, às vezes deixo de lado, ainda que por breves momentos, o que acontece nas outras regiões de nossa América.
Ao virar os olhos ao nosso redor, percebo que há muitas razões para a esperança, mas também para as preocupações.
E confirmo mais uma vez que faz sangrar a minha alma o que se passa na pequena e bela Nicarágua, vítima quotidiana de uma traição com pouco precedente nestas nossas terras muitas vezes traídas.
Um breve passeio pelas últimas façanhas de Daniel Ortega (foto) mostra iniciativas que fariam heróis do horror como os generais Augusto Pinochet e Jorge Rafael Videla se afogarem em ondas de pura inveja.
Devemos reconhecer tanto Ortega quanto sua esposa, Rosario Murillo, uma sutileza que os outros dois não tinham.
Não houve na Nicarágua, pelo menos até agora, milhares de assassinatos, sequestros, estupros, “desaparecimentos” e torturas como na Argentina de Videla e seus capangas e no Chile de Pinochet.
Mas, neste momento, 94 nicaraguenses foram expulsos do país no início. E há alguns dias, mais 222.
Com detalhes sutis: todos os seus bens na Nicarágua foram apreendidos, de imóveis a móveis, de contas bancárias a pensões de aposentadoria. É como se deixassem de existir e não tivessem herdeiros.
Nova crueldade
Há, entre as vítimas da nova crueldade do casal amaldiçoado, pessoas que conheço e pelo menos um bom amigo, o escritor Sergio Ramírez, que já estava exilado.
Com ele temos divergências sobre um punhado robusto de questões, mas nada, absolutamente nada, que nos distancie. E atrevo-me a dizer que imagino – mal imagino – o que significará para Sérgio e a sua companheira Tulita perder a casa e, mais ainda, os livros, as pinturas, o registo de uma parte substancial da sua memória, de toda a sua vida.
Lembro-me de Gioconda Belli. Vi-a pela primeira vez em Madrid, em 1979, num congresso do Partido Socialista Operário Espanhol, o PSOE de Felipe González. Ela era uma bela jovem em seu uniforme sandinista, e nos surpreendeu com a mistura de doçura suave no olhar e a contundência de suas palavras em defesa da Revolução que acabara de triunfar.
Por enquanto, quando ela foi expurgada de sua terra natal e perdeu sua nacionalidade, ela respondeu com sua melhor arma, a poesia. Em um versículo, ele diz tudo: “Quanto mais Nicarágua eles tiram de mim, mais Nicarágua eu tenho”.
Também entre os exilados estão figuras históricas – e heroicas – da saga que libertou a Nicarágua do jugo dos Somozas, no poder e roubando em todos os lugares desde o primeiro da linhagem, o patriarca Anastácio, que usurpou o país em 1937.
Dom Silvio Baez, por exemplo, saiu, segundo o casal Daniel-Rosário, para ser nicaraguense. E o mesmo aconteceu com outro padre, Edwin Roman, que – amarga ironia – é sobrinho de Augusto César Sandino, o mártir da liberdade que deu seu nome à frente revolucionária que libertou a Nicarágua de décadas de infame usurpação.
Sim, repetir nomes e denunciar o que está acontecendo na Nicarágua nunca será mera reiteração. Fico espantado e indignado ao ler e reler nomes como Luis Carrión e Moisés Hassan, Víctor Hugo Tinoco e Dora Téllez, entre as vítimas da barbárie que os privou da nacionalidade e de tudo o mais, exceto o que mais falta a Daniel e Rosário: dignidade, integridade.
Um dos punidos, o bispo Rolando Alvarez, recusou-se a embarcar para os Estados Unidos com os outros. Resultado: condenado a 26 anos de prisão, foi levado para a Prisão Modelo, conhecida como “El Infiernito”.
Lembro-me de ler nas páginas do jornal mexicano La Jornada um texto de Carlos Martínez García, no qual ele menciona algo escrito pelo professor José Emilio Pacheco: “Já somos tudo contra o qual lutamos aos 20 anos de idade”.
Daniel Ortega começou a lutar contra a ditadura de Somoza bem antes de seu 20º aniversário. Portanto, sua traição é mais profunda e imunda.
Vítimas
Entre suas vítimas está uma eterna garota com quem estive no máximo algumas vezes na vida, uma heroína chamada Dora María Téllez.
Em entrevista à sempre acurada Blanche Petrich, publicada no dia 17 de fevereiro também em La Jornada, Dora María vai direto ao alvo: diz que o ‘Orteguismo’ era um parasita plantado na Frente Sandinista, e que acabou por devorá-lo.
A verdade é que Daniel Ortega, outrora um dos heróis da libertação de seu país do jugo dos Somozas, agora poderia ser chamado de Daniel Somoza, e é tão repulsivo quanto seus antecessores na repugnante dinastia.
E sua esposa é a cúmplice voraz nessa fuga para a mais imunda das marés de puro excremento que os encobrirá para sempre.