O ponto de partida de qualquer análise da chamada “guerra da Ucrânia” é a irrecusável evidência de que a antiga república soviética foi invadida pela potência vizinha e quase irmã e permanece há mais de um ano sob cerco militar. Sua integridade, de país reconhecido como soberano pela comunidade internacional, é ameaçada por anexações anunciadas ou efetivadas pelas tropas do Kremlin, que não pode ser apresentado como herdeiro da utopia socialista frustrada no solo russo, embora deva m ser reconhecidos seus esforços na resistência ao imperialismo. Não se conhecem dados confiáveis sobre o número de vítimas de ambos os lados da fronteira, e ainda é cedo para o inventário da destruição no território ucraniano.
Como em todo conflito, a grande dificuldade é encontrar o caminho de volta para casa. O que se se anunciou como uma Blitzkrieg não tem, hoje, prazo para acabar, e todas as possibilidades de desfecho devem estar abertas. No plano estritamente militar, dizem os observadores que o conflito caminha para um beco sem saída, enquanto fracassa a busca de alternativa pela via da negociação, para a qual a diplomacia presidencial brasileira intenta colaborar, para o incômodo da imprensa nativa. Ao velho complexo de vira-lata, de que falava Nelson Rodrigues, soma-se a dependência ideológica que fez de nossas chamadas elites canais reprodutores dos interesses da grande potência do Norte e adjacências.
Esta guerra é tudo isso, mas não é apenas isso, pois é principalmente o vestibular de um trânsito de eras (e eis a questão central), o que é percebido pela diplomacia brasileira restaurada. Vivemos o perigoso desdobramento da disputa da hegemonia planetária exercida pelos EUA, em franco embate com a emergência chinesa como potência econômica e militar em pleno desenvolvimento capitalista, pondo em questão o sonho americano da unipolaridade que lhe caíra no colo com o suicídio da URSS anunciado no apagar das luzes de 1991. A guerra comercial e tecnológica contra Beijing, aprofundada a partir de Trump, teve sua natureza alterada ao se expressar em conflito armado, ainda quando, como é o caso presente, os principais contendores estejam aparentemente fora da arena, pois ainda lutam por intermédio de terceiros. Uma vez mais, lembrando Clausewitz, a guerra (clássica) é mera continuação da política, no caso concreto uma trágica necessidade determinada pelo fracasso político da guerra diplomática, comercial e tecnológica liderada pelos EUA na até aqui frustrada expectativa de conter o novo “eixo do mal”: a frente eurasiana levada à China, à Rússia e ao Irã pelas contingências históricas. O conflito em curso, em sua modalidade militar, consiste numa guerra terceirizada, que pode ser apenas um “freio de arrumação”, um teste de forças antes da perspectiva de um embate maior, que o andar da carruagem pode fazer inevitável. Mas igualmente pode ser seu prelúdio, e neste caso a imaginação do epílogo fica fácil.
O jogo, como sempre, aliás, é muito mais profundo do que sugere sua aparência, e não pode ser compreendido pela análise maniqueísta, binária, ditada pela grande imprensa brasileira, sem autonomia intelectual ou política. O conflito, que nada tem de ideológico, é mais que uma disputa de mercado, por significar a disputa pela hegemonia planetária (econômica, militar e ideológica) em que se engalfinham os impérios, como quem caminha por caminhos tortuosos que, por força do processo histórico, não podem ser evitados.
A substituição da guerra tout court pela via negociada (que no momento parece só interessar à Rússia e à Ucrânia) enfrenta obstáculos, a começar pelos poderosos interesses da indústria bélica, o complexo militar-industrial ao qual se referiu Dwight Eisenhower no famoso discurso de transmissão da presidência dos EUA, em 1961. O expansionismo da OTAN (braço armado dos EUA na Europa) a caminho das fronteiras russas e a resposta russa, ensejam o armamentismo mundial, de especial na Europa e no Japão, e vem fortalecer a indústria bélica estadunidense, a grande beneficiária. É momento de grandes negócios. Quando o emprego de armas nucleares passa a integrar o discurso das potências, a guerra convencional surge como um alívio.
O leitmotiv da continuidade da guerra (e o cimento das alianças que se vêm estabelecendo à sua margem), portanto, não é a defesa da integridade ucraniana, dificilmente recuperável.
Que pretendem os EUA fazendo a guerra por intermédio de prepostos? A estratégia ostensiva do Pentágono parece ser sustentar nos níveis atuais (guerra comercial e conflito armado convencional por intermédio da Otan e aliados). Essa estratégia, que fala ao curto prazo, resguardaria os EUA de novos desastres militares (Vietnã e Afeganistão), ademais de reduzir os riscos de uma guerra nuclear, indesejada, mas jamais de todo descartada, e para a qual todos se preparam. Na operação presente um dos frutos já colhidos é a fragiliza ção do aliado atômico de seu contendor.
Além do efetivo comando da OTAN, a invasão da Ucrânia ensejou o fortalecimento da liderança dos EUA sobre uma Europa que já acalentou sonhos autonomistas. Hoje, continente- protetorado, não pode mais alimentar a expectativa de projeto estratégico próprio.
De outra parte, a estratégia chinesa claramente persegue o adiamento do conflito direto entre as potências, confiada na continuidade de seu desenvolvimento acelerado (o PIB do primeiro trimestre de 2023 cresceu 4,5%). Qualquer que seja o sumário da guerra, a China será vencedora, sem haver necessitado terçar armas.
Além da paz, a história anuncia dois derrotados, a Ucrânia por tudo o que é óbvio, e a Rússia, que até aqui não logrou realizar o objetivo que na retórica do Kremlin havia imposto a invasão: assegurar sua defesa ameaçada pelo cerco das tropas da OTAN. Neste sentido, o que vemos é a continuidade do expansionismo da aliança militar, e portanto dos interesses geopolíticos de Washington. A organização militar (com bases de lançamento de artefatos nucleares na Bélgica, Alemanha, Itália, Holanda e Turquia), sai fortalecida com a adesão de países antes neutros, como Suécia e Finlândia, enquanto vários de seus membros já anunciaram a decisão de aumentar os orçamentos militares, como é o caso da Alemanha. No Pacífico, em nome da confrontação com a China, o Japão anuncia sua adesão ao armamentismo.
Qualquer que seja o fim que a história tenha reservado para o conflito, a Rússia emergirá dele como devedora e tributária de uma China extremamente poderosa, tanto na esfera econômica, quanto na esfera política, quanto na esfera militar (fortalecida com o acervo nuclear da aliada), quanto, por todas essas razões, no plano da geopolítica mundial. Segunda potência do planeta, aguardará sem ansiedade o anunciado fim do largo ciclo de hegemonia dos EUA. Viveremos, então, o intermezzo de um tempo multipolar. Serão os tempos da emergência da Eurásia.
A história presente abre espaço para a retomada de nosso papel como sujeito ativo e altivo nas relações internacionais, a um tempo consciente de seu peso e de suas limitações, livre de condicionamentos maniqueístas. Lula já deu inumeráveis demonstrações da consciência de seu papel – uma indeclinável contingência histórica – como presidente do Brasil e líder regional, acertadamente rejeitando o maniqueísmo no qual a grande imprensa e os setores mais atrasados da sociedade brasileira pretendem nos encarcerar.
O caminho está aberto, mas o caminhar conhecerá percalços, em face da correlação de forças dominante, avessa a um projeto nacional de soberania e independência. Nossa política de relações com o mundo, para se manter de pé, precisa de contar com o apoio da sociedade, o que requer debate amplo com todas as forças sociais.
Perguntar não ofende – Em qual Oásis os dirigentes do PDT e do PSB devem repousar? No apoio ao governo, ou engrossando as fileiras do jagunço do atraso?