Por Dalila Calisto, Camila Fróis e Fernanda de Oliveira Portes, do Brasil de Fato
Desde que os bandeirantes se depararam com as primeiras pepitas de ouro enquanto atravessavam a Serra da Mantiqueira para assassinar indígenas e extrair recursos naturais para a colônia, teve início uma saga de degradação das paisagens brasileiras e exploração de seus povos, que, há cinco séculos, é renovada em novas temporadas, em diferentes territórios pelo país. A cada trama relacionada à mineração, seja legal ou ilegal, os personagens são os mesmos e o desenlace ainda é muito parecido com o do período colonial: expropriação de riquezas e violação de direitos de comunidades tradicionais por parte de conglomerados internacionais.
Um dos principais rastros deixados pela atividade está relacionado à qualidade da água nas áreas mineradas, por conta de diferentes fatores. A contaminação dos recursos hídricos pode ocorrer de três maneiras na mineração: por meio do alto consumo de água para beneficiamento do minério; por meio do rebaixamento do lençol freático durante a etapa de extração do minério, diminuindo o fluxo de água dos rios e impactando também a recarga dos aquíferos; e por meio de rejeitos com concentração de substâncias tóxicas que são levadas até os recursos hídricos pelo escoamento superficial das águas, através de rompimentos ou transbordamento de barragens.
Esse último é o caso dos clássicos episódios das bacias do Rio Doce e do Paraopeba, em Minas Gerais, cenário de rompimentos de barragens que contaminaram centenas de quilômetros de rios, matas e solos, configurando os maiores crimes ambientais do país.
A devastação da Amazônia não é diferente do que já foi experimentado em Minas. Desde o último século, a busca pelo ouro assolou diversos territórios da região, como a Serra Pelada, que ficou eternizada pela destruição ambiental e social, registrada pelas lentes do fotógrafo Sebastião Salgado.
Os mais afetados no caso da Amazônia são os indígenas. Além dos povos Yanomami, que recentemente ganharam as capas de jornais pelos cenários de completa devastação promovido pelo garimpo ilegal em suas terras, todos os indígenas do povo Munduruku, no Rio Tapajós, que participaram de um estudo da Fiocruz e do WWF Brasil estão afetados pela presença do mercúrio nos rios. Seis a cada dez dos participantes, apresentaram níveis acima do limite máximo de segurança estabelecido por agências de saúde.
Mas não apenas a mineração ilegal atinge a região. Em 2018, a contaminação de rios em Barcarena (PA), por rejeitos tóxicos da multinacional norueguesa Norsk Hydro, afetou 40 mil pessoas e resultou em uma ação internacional na Corte Europeia de Direitos Humanos.
Os casos de contaminação da água estão entre os mais graves danos causados para os territórios explorados, tendo em vista que as águas dos rios fazem parte de toda a rotina das comunidades ribeirinhas: é utilizada para o consumo, preparo de alimentos, pesca e banho. Em muitos casos, os peixes dos rios, sua principal fonte de proteína, também são contaminados.
Por isso, a água é considerada um indicador da qualidade de vida de uma população, especialmente no caso de territórios rurais. Ela é um ativo essencial também para o território, para o espaço de convivência, para as questões socioambientais, culturais e econômicas.
Nesse contexto, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) tem atuado em Bacias de todo o país para apoiar comunidades atingidas – não só pelo rompimento, mas também pela operação de barragens e de empreendimentos que comprometem direitos básicos da população, como o acesso ininterrupto à água potável, à informação, à participação e a um padrão digno de vida.
Confira a história de cinco bacias brasileiras contaminadas pela mineração.
1 – Bacia do Rio Paraopeba – Congonhas (MG)
No mês de março de 2023, moradores do histórico município de Congonhas (MG) receberam água com lama diretamente nas torneiras da sua casa por conta de uma operação das mineradoras Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e Ferro+. O tráfego de caminhões de minério das empresas causou dois rompimentos de uma adutora de água que abastece o bairro. Ao todo, os moradores ficaram 20 dias sem acesso à água potável. Segundo relatos, após o ocorrido, a CSN disponibilizou apenas 300 galões de água para abastecer o bairro onde moram cerca de 3 mil pessoas.
O bairro Pires fica na entrada do município e sofre há mais de dez anos com problemas de abastecimento e contaminação da água desde que a CSN causou o assoreamento de duas nascentes que abastecem a região: Boi na Brasa e João Batista, que estão inseridas na sub-bacia do Rio Maranhão, tributário da margem direita do Rio Paraopeba. O assoreamento ocorreu durante as obras de construção de uma estrada para o trânsito de caminhões pesados da companhia entre a Mina do Engenho e a BR 040.
O ambientalista Sandoval de Souza explica que os bairros Pires e Barnabé são abastecidos com água bruta, ou seja, água captada no manancial, no seu estado bruto, sem receber qualquer processo de tratamento. Por isso, na época do assoreamento, a população ficou 120 dias com água barrenta e inadequada para beber saindo das torneiras. Foram três anos sem acesso à água limpa. Durante esse tempo, o Ministério Público exigia que a CSN distribuísse galões de água para os moradores.
Mesmo depois de regularizada a situação, são recorrentes os casos de contaminação da água por conta dos deslizamentos de terras nas nascentes que abastecem a região. Segundo Sandoval, não é possível dizer que tipo de contaminantes a terra que suja a água pode ter. “Podem ser contaminantes orgânicos, químicos, coliformes fecais, mas não sabemos, porque a Copasa [Companhia de Saneamento de Minas Gerais] não divulgou análises dessas águas após casos de deslizamentos e turbidez”, explica o ativista, que atualmente é membro do Conselho de Desenvolvimento e Planejamento Municipal (Codeplan).
“As nascentes que abastecem essas áreas estão dentro da propriedade da Vale, onde eles realizam sondagens. A lama que sai da sondagem vai direto para a nascente. Como não há tratamento, chega barrenta para nós”, diz Geraldo Tarcísio Magalhães, morador de Barnabé, bairro afetado pela mineração, no caso da Vale.
Além da contaminação, Sandoval explica que existe também uma disputa pela água no município. “A CSN recebeu, em 2021, uma ampliação de sua outorga de água subterrânea (sem contar a de captação superficial) de 3.130 m³/h no pico da exploração, 24 horas por dia. O número corresponde a aproximadamente 6,5 vezes a água utilizada pela população de Congonhas”, afirma o ativista.
O aumento de extração de água do lençol tende a causar redução da água superficial captada pela Copasa. Por isso, Sandoval conta que, eventualmente, a CSN precisa bombear água pra Copasa, para não comprometer o abastecimento da cidade. Ou seja, hoje, o município depende de uma cessão de água da empresa. Por conta disso, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMF) tem um inquérito aguardando perícia sobre a operação de bombeamento de água de lençol freático que oferece riscos para o abastecimento e a saúde pública no município.
A deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT-MG) também enviou um ofício parlamentar de requerimento de informações à Copasa solicitando a produção de estudos “hidrogeológicos” e ambientais sobre a interferência de mineradoras (como a CSN, Gerdau e Vale) na quantidade e qualidade da água dos mananciais de Congonhas.
Sandoval, que atuou por 30 anos em usinas de beneficiamento de minério, ressalta que criar procedimentos seguros para a atividade é essencial, tendo em vista o aumento da escala da mineração na região. “Os planos de expansão são absurdos. Querem triplicar a área de exploração”, conclui.
2 – Bacia do Rio Doce – vários municípios de Minas Gerais e Espírito Santo
Desde 2015, quando o rompimento da Barragem do Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, a 35 quilômetros do centro de Mariana (MG), causou o vazamento de milhões de toneladas de lama tóxica no Rio Doce, os moradores de pelo menos 40 municípios de Minas Gerais sofrem com efeitos da contaminação do território. No episódio, os rejeitos da mineradora se espalharam por mais de 650 quilômetros, desde sua fonte até o oceano Atlântico. A responsabilidade é diretamente atribuída à mineradora Samarco, controlada pela Vale e BHP Billiton, e às falhas de regulação do governo brasileiro.
Hoje, a calamidade é considerada o pior desastre ambiental do Brasil. Apesar da empresa Vale ter apresentado um estudo que nega a presença de metais pesados na Bacia, um grupo de pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) publicou, em 2019, uma análise feita no solo, água e leite de vaca nos municípios atingidos pela lama do rompimento da barragem que mostra resultados extremamente preocupantes.
O resultado do Laboratório de Educação Ambiental, Arquitetura, Urbanismo, Engenharias e Pesquisa para a Sustentabilidade (LEA-AUEPAS) mostra níveis acima do permitido de chumbo no leite de vaca; arsênio, cromo e mercúrio no solo; e arsênio, chumbo, ferro, manganês, mercúrio e níquel na água. O arsênio, por exemplo, está 32 mil vezes mais alto na água e dezessete vezes mais alto no solo do que o permitido.
Esse quadro pode explicar uma realidade de doenças relatadas por moradores em toda a Bacia. A pesquisa foi encomendada pelo MAB, juntamente com as organizações Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais e Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS).
O estudo classificou as localidades como “Local de Perigo Categoria A: Perigo urgente para a Saúde Pública”. Isso significa, de acordo com o relatório, “que existe um perigo para a saúde das populações expostas aos contaminantes definidos através da ingestão, inalação ou absorção dérmica das partículas de solo superficial e/ou da poeira domiciliar contaminadas”.
Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com o Greenpeace, revelou também que, além do Rio Doce, as águas subterrâneas da região estão contaminadas com altos níveis de metais pesados. Os pequenos agricultores, que, após o rompimento, recorreram a poços artesianos para irrigar suas plantações e ter água para beber, foram os mais prejudicados nesse caso.
3 – Bacia do Rio Paraopeba – Brumadinho (MG)
Em julho de 2021, a Fiocruz e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) divulgaram uma das etapas de um estudo que avalia as condições de vida, saúde e trabalho da população de Brumadinho após o rompimento da barragem da mineradora Vale no Córrego do Feijão, ocorrido em janeiro de 2019. A pesquisa apontou a exposição dos moradores a metais pesados como arsênio, encontrado na urina, e manganês e chumbo, encontrados no sangue, em adultos, crianças e adolescentes que vivem na cidade.
De acordo com o pesquisador da Fiocruz Sérgio Peixoto, de maneira geral, os sintomas da alta concentração de metais têm impacto nas funções hepática, renal e também no sistema nervoso central, podendo afetar questões neurológicas. Por isso, a recomendação é que haja um acompanhamento clínico regular dos moradores.
No quesito saúde mental, o estudo apontou que a taxa de incidência de depressão em adultos é o dobro da média da população brasileira: 22,5% relataram diagnóstico de depressão, enquanto a média nacional é 10,2%, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019.
Hoje, por orientação da própria Vale, quem mora a até 100 metros de distância do Rio Paraopeba não pode comer nenhum alimento cultivado no solo, nem entrar em contato com a água do rio e, por isso, precisa receber água da empresa. Pesquisadores, porém, alegam que a contaminação ultrapassa os 100 metros da margem do Paraopeba.
José* e Lúcia* vivem a menos de 500 metros do Rio Paraopeba, mas desde 2019, precisam se deslocar para tentar conseguir água para sobreviver. “Se eu tiver água para beber, para cozinhar, para regar minhas plantas, eu estou satisfeito”, afirma José, na sua pequena comunidade chamada Fazendinhas Baú, localizada em Pompéu. Segundo ele, mais de uma vez, ele já precisou implorar por água para os motoristas das empresas terceirizadas que a Vale contrata para distribuir galões nas redondezas.
A empresa afirma que só têm direito de receber água para beber e para dessedentação animal – água para mitigar a sede dos animais criados – aquelas pessoas abastecidas por poços comunitários localizados a menos de 100 metros da margem do rio.
4 – Bacia do Rio Tromaí – Aurizona (MA)
Em Aurizona, distrito do município de Godofredo Viana, rodeado por manguezais, floresta e fontes de água antes potáveis na Amazônia Maranhense, quatro mil pessoas vivem sob o drama da contaminação dos seus rios e solos há mais de dois anos por conta de uma tragédia ambiental que passou desapercebida pela grande mídia. No dia 25 de março de 2021, uma barragem da mineradora canadense Equinox Gold se rompeu, provocando terror na comunidade que ficou isolada durante três dias.
No momento do rompimento, a lama atingiu o reservatório e a subestação de tratamento de água da localidade, que foi interditada, interrompendo o fornecimento de água da população por dias. Mesmo quando a água voltou a sair nas torneiras das casas, ela saía barrenta e mal-cheirosa nos meses seguintes.
Ao todo, o volume de detritos degradou cerca de 30 mil metros quadrados de vegetação nativa, inclusive uma área da reserva ambiental Arapiranga Tromaí, e atingiu o rio Tromaí e as lagoas de Juiz de Fora e Lago do Cachimbo, que também serviam para o abastecimento de água potável, recreação e pesca pela comunidade.
Famílias perderam seus móveis, porque a lama entrou em suas casas enquanto dormiam e, também, tiveram seu sustento comprometido, quando o rejeito da mineração atingiu não só os rios onde pescavam diferentes espécies de peixes, mas também o mar, onde se capturava caranguejo. Pescadores perderam ainda seus barcos ou motores.
O rompimento é só um dos impactos causados pelo imenso complexo minerário de exploração de ouro comandado pela empresa canadense. Um de seus proprietários, o empresário Ross Beat, é conhecido no Canadá por seguir exemplarmente padrões ambientais. No Maranhão, porém, a empresa é famosa pelos rastros de destruição e violência que deixa onde atua, incluindo a presença constante de uma poeira tóxica na região que causa diversas doenças entre os moradores, rachaduras das casas por conta das explosões realizadas nas minas do entorno e outras violações.
“Antes nós tínhamos nossa terra. Morávamos no alto, numa área maior. Eles chegaram e roubaram. Depois foi a nossa moradia: casas se rachando. Depois o nosso ouro, o nosso emprego, mas tínhamos água em abundância em Aurizona. Água aqui sempre teve, água boa, de qualidade. Agora até a nossa água eles tiraram, a nossa estrada, agora só falta nos tirarem daqui”, afirma Jonias Pinheiro, um dos moradores de Aurizona atingido pelo rompimento.
Em março de 2022, um ano após o episódio que passou despercebido na grande mídia, um estudo apontou a contaminação do solo e da água superficial e subterrânea do distrito com metais com potencial tóxico como mercúrio, arsênio, níquel e chumbo 100 mil vezes acima do máximo permitido. As análises foram encomendadas pelo MAB para um coletivo de cientistas que é coordenado pelo Laboratório de Educação Ambiental e Pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e reúne ainda pesquisadores da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade de Campinas (Unicamp) e da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Uemasul).
A proposta do estudo é subsidiar a reparação dos direitos básicos dos atingidos do distrito, pois o fornecimento de água potável não foi restabelecido de forma permanente nas torneiras dos mais de quatro mil moradores de Aurizona até hoje.
“Os metais encontrados no distrito são extremamente tóxicos e podem causar vários problemas imediatos à saúde, como infecções cutâneas, coceiras e algumas outras doenças de pele (já relatadas pelos moradores), além de problemas neurológicos e respiratórios com a exposição crônica. Então, existe uma gama grande de enfermidades provocadas pelo contato com essa água. E a concentração desses metais está muito mais alta que o nível permitido. É pouco provável a eliminação deste contaminantes por tratamento de água convencional”, ressalta o professor Ulisses Nascimento, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo.
Diante do caso, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação civil pública contra a mineradora e contra o governo do Maranhão por conta da falha de fiscalização. A ação requer que a Mineradora Aurizona seja obrigada a reparar os danos ambientais causados, realize obras para evitar novos desastres e a pague multa e indenizações às famílias atingidas. Além disso, o MPF reivindica que o Estado realize fiscalizações periódicas para verificar a segurança das estruturas.
5 – Bacia do Rio Pará – Barcarena (PA)
Em 2018, a contaminação da água em Barcarena, no Pará, afetou 40 mil pessoas depois do despejo de rejeitos tóxicos da refinaria da Norsk Hydro, no rio Murucupi. À época, a força das chuvas fez com que comunidades no entorno da mineradora fossem inundadas por águas avermelhadas.
Mesmo após a empresa negar o rompimento, acionado pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual, o Instituto Evandro Chagas (IEC) coletou amostras de água para testes e comprovou dias depois que as águas haviam sido contaminadas pelo vazamento de barragens da Hydro, que atua no beneficiamento de alumínio. A perícia constatou ainda a existência de um duto clandestino que conduzia resíduos poluentes para cursos d’água na região. A substância que transbordou de um dos canais de contenção da mineradora também contaminou matas, igarapés e as nascentes do rio.
Em 2021, foi ajuizada na Corte Europeia uma ação internacional contra a Norsk Hydro pedindo reparos às famílias afetadas pela produção de alumínio no Pará. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), criada na época na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), comprovou não só o vazamento, como a origem dele: um estresse da planta da empresa que não suportou o aumento da escala de produção e causou rompimento das estruturas e o despejo de material não tratado na bacia do rio Pará.