quinta-feira 26 de dezembro de 2024

Perguntas para um novo mundo

O que virá se a agenda neoliberal do FMI implodir? O Banco do Brics será uma saída? A geopolítica multipolar gerará democracias reais? Quais alternativas ao colapso do dólar? Pela primeira vez, as respostas não virão apenas do Ocidente
Reprodução

Por Almir Felitte, do blog Outras Palavras

A turbulência política vivida pelo mundo de hoje já está longe de ser uma novidade. De golpes na América Latina à Primavera Árabe, da ascensão fascista na Europa à Guerra na Ucrânia, a crise do capitalismo liberal, desde 2008, parece ter desencadeado uma movimentação na geopolítica global como não se via há tempos.

Diante deste cenário, em parte por falta de visão, em parte por interesses privados, a mídia hegemônica tem se perdido em uma tentativa desastrosa de reeditar um discurso que remete à Guerra Fria. Para esta, todos os conflitos não passam de uma disputa entre duas grandes potências, China e EUA, pela hegemonia do capitalismo global.

Recusam-se a analisar de forma mais profunda os significados e as raízes dos atuais conflitos. Ao contrário da segunda metade do século XX, quando, de fato, dois grandes blocos com espectros ideológicos, sobretudo econômicos, bem definidos se opunham, hoje, o antagonismo político que se desenha envolve uma certa pluralidade.

Para chegar as questões que este artigo deseja, primeiro, precisamos quebrar um grande mito. Mesmo com todos os discursos de livre mercado, desde que o capitalismo conectou o mundo (violentamente na forma de colonização), ele nunca foi um sistema realmente multilateral. Na verdade, local ou globalmente, o capitalismo sempre se organizou em binômios: metrópole e colônia; casa-grande e senzala; proprietários e trabalhadores. Sempre uma relação de poder que emanou de um centro às periferias.

Essa bipolarização tipicamente capitalista não se refletiu apenas em aspectos econômicos, impactando, inclusive, as nossas próprias noções de Estado e democracia.

Berço da democracia liberal na Europa com sua Revolução no século 18, tão logo passou a perder boa parte de suas colônias na América, a França já confabulava pela “Partilha” do território africano enquanto ocupava parte da Ásia ao longo do século 19. A democracia liberal francesa foi o centro violento de poder para inúmeras colônias até a década de 1970.

Outro berço icônico do liberalismo, os já independentes EUA conviveram por 89 anos com a escravidão negra, no que Mbembe chama de “democracia de escravos”. Depois ainda viveriam outros 99 anos coexistindo com as leis de segregação racial. Ao resto da América, os EUA reservaram a Doutrina Monroe e a política do Big Stick, um intervencionismo imperialista que também não tardaria a cruzar oceanos.

Os exemplos francês e norte-americano são apenas uma amostra de como, de fato, o capitalismo global se organizou ao redor do mundo, não só no campo econômico, como também no político. Bipolarizado por essência, numa relação desigual entre centro e periferia. E eis que chegamos ao grande ponto deste artigo.

Os conflitos que se espalham pelo mundo hoje não são um mero choque de potências em disputa pela hegemonia global. Estão em jogo visões distintas de como países devem coexistir. Uma visão que se fecha em si mesma, e outra que se abre a uma vasta gama de possibilidades. Não é um conflito entre Ocidente e Oriente. Não é um conflito entre capitalistas e comunistas. É um conflito entre os que defendem a manutenção deste capitalismo bipolarizado que irradia do centro à periferia e outro grupo, formado por um conjunto de países bem diversos entre si, que deseja a multilateralidade.

Diante desta constatação de que o grande conflito global da atualidade se dá entre a manutenção da bipolarização e a construção de um mundo multilateral, algumas perguntas (talvez ainda sem resposta) podem nos ajudar a entender os novos tempos que se avizinham.

Quais os efeitos do enfraquecimento de órgãos centrais do capitalismo para a soberania dos países do chamado Sul global? Em palavras exemplificativas, o que aconteceria com um país periférico em crise que, ao invés de recorrer a submissão da agenda liberal do FMI, tivesse alternativas como o Banco do Brics? Caso a desdolarização continue a avançar, que peso continuarão a ter as sanções norte-americanas para países que rezem fora de sua cartilha? O que aconteceria se o lastro de confiabilidade de países não ficasse mais sujeito apenas ao Banco Mundial e a agências de risco de Wall Street? Como ficaria a autodeterminação dos povos por todo o mundo sem a ameaça da Otan?

Para além destes questionamentos que, à primeira vista, convergem para um pensamento mais econômico, podemos fazer alguns apontamentos ainda mais profundos. Não só o capitalismo, mas a própria democracia liberal também sempre sobreviveu deste sistema que irradia de um centro para suas periferias. Como Mbembe nos ensina, as democracias modernas sempre dependeram de “violências distantes”, de um estado de exceção permanente que ele chama de “face noturna da democracia”.

Violências que, da distância do colonialismo e do imperialismo, já explodem no centro das próprias autoproclamadas democracias nestes tempos de crise. Do Black Lives Matter norte-americano à Paris em chamas contra a violência policial, os problemas do Estado democrático de direito se desnudam no centro do capitalismo como sempre se desnudaram nas periferias do mundo. Enfim, com todos os seus problemas, a democracia em sua forma liberal, igualmente bipolarizada, tem sido colocada em xeque.

Neste ponto, poderia a multilateralidade representar novas formas de organização política e social para o mundo? A derrocada da democracia liberal em um mundo multilateral representaria a radicalização de conceitos verdadeiramente democráticos e populares ou o império de autocracias? De todo modo, pela primeira vez na história do capitalismo, parece que todas estas respostas não serão mais dadas apenas pelo Ocidente.

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