quinta-feira 28 de novembro de 2024

Projeto do governo para taxar produtos que fazem mal à saúde enfrenta lobby no Congresso

Proposta de taxação do governo Lula é baseada na ideia de justiça tributária, já que cigarro, bebidas alcoólicas ou refrigerantes, por exemplo, causam doenças e repercutem diretamente no sistema de saúde. Conselho Nacional de Saúde defende imposto seletivo

Por Redação RBA

O Ministério da Fazenda deve enviar ao Congresso Nacional as propostas do governo para regulamentação da Reforma Tributária sobre o consumo até o início da próxima semana. Os textos terão detalhes sobre o funcionamento da taxação de produtos que fazem mal à saúde, como alimentos ultraprocessados e com excesso de substâncias potencialmente danosas ao corpo humano, agrotóxicos, cigarro e bebidas alcoólicas.

A expectativa inicial era que a proposta fosse apresentada ao parlamento na segunda-feira (15). No entanto, a percepção de que a tramitação será uma batalha e de que as negociações trarão polêmica exigiu mais tempo. A ideia também é aguardar o retorno do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, dos Estados Unidos. Até esta sexta-feira (19), ele participa de reuniões do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e da segunda reunião da Trilha Financeira do G20.

Segundo declarações do ministro, na semana passada, os projetos de leis complementares já estão fechados, em processo de tramitação na Casa Civil. “São procedimentos, não são meros protocolos, vão chegar ao presidente da República, que vai assinar a mensagem. Temos o compromisso de que, na semana que vem, ela chega no Congresso”, afirmou Haddad.

Lobby no Congresso

A emenda constitucional (EC) da Reforma Tributária foi aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional no fim do ano passado, mas a regulamentação ficou para este ano. De acordo com o texto, a taxação vai abranger “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”.

“A criação do imposto seletivo já foi um grande ganho, porque ali está escrito, justamente, produtos que são nocivos à saúde e ao meio ambiente. A partir do momento que a Constituição está alterada, qual é o próximo passo? Estão sendo discutidas leis complementares no sentido de regulamentar, por exemplo, que produtos são esses que fazem mal à saúde, como vamos tributar, qual é a base de cálculo, para onde vai esse recurso? Estamos em fase de detalhamento, que é tão importante quanto a anterior”, ressalta Marília Sobral Albiero, coordenadora de inovação e estratégia e do projeto da alimentação saudável da ACT Promoção da Saúde, em entrevista ao Brasil de Fato.

Ainda de acordo com o texto da emenda, foi estipulado um prazo de até 180 dias após a promulgação para o envio da regulamentação proposta pelo governo. Esse período termina em 20 de junho, mas Haddad afirmou que o Executivo fará um esforço para limpar a pauta econômica no Congresso Nacional até maio, antes das eleições municipais. No entanto, o tema deve encontrar debate acirrado e obstáculos no legislativo.

Isso porque, enquanto o governo produzia os textos, parlamentares apresentaram propostas de regulamentação paralelas. Em muitos casos, com forte influência da indústria. Um exemplo é o projeto que inclui na desoneração da cesta básica produtos ultraprocessados, como achocolatados, biscoitos e salgadinhos.

O lobby no Congresso também foi reforçado pelas produtoras de cerveja, que defendem diferentes níveis de taxação de acordo com a graduação alcoólica de cada bebida. No caso dos cigarros, um dos argumentos é o de que o aumento do preço do produto pode incentivar o mercado ilegal.

“A reforma uniu pela primeira vez todos os setores. Nós éramos acostumados a trabalhar com uma determinada pauta e já havia uma coalizão específica de setores a serem regulados. Com a reforma estão todos em pressão, reunindo um grupo de interesse com pleitos incabíveis”, alerta Marília Sobral Albiero.

Recomendação do CNS

Em março, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou uma recomendação formal direcionada ao governo federal e ao Congresso sobre o tema. Uma das orientações é de que a Cesta Básica Nacional de Alimentos seja composta “apenas por alimentos in natura, minimamente processados e alguns processados selecionados, excluindo produtos alimentícios ultraprocessados”.

O CNS também pede que seja garantido “que o imposto seletivo não varie conforme o teor alcoólico das bebidas alcoólicas, tendo em vista que esta medida reduziria significativamente o impacto sobre a cerveja, responsável por 90% do consumo de álcool no país”.

“São problemas complexos, temos que nos apropriar das áreas técnicas para colocar o suporte. O Ministério da Saúde já se posicionou também em relação a tabaco, álcool e ultraprocessados. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome já se posicionou também dizendo que os ultraprocessados, em hipótese alguma, podem compor a cesta básica. O CNS é mais uma ação de especialistas e composições. Não é pela questão técnica que haverá dúvidas”, aponta Albiero.

Leia a entrevista completa a seguir:

Recentemente, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou uma recomendação para a tributação do tabaco, álcool, produtos ultraprocessados e agrotóxicos no rol do imposto seletivo na Reforma Tributária. Qual é o peso dessas orientações para a tramitação da regulamentação da Reforma?

A Reforma Tributária do Brasil que estamos analisando agora é a reforma do consumo, a de renda virá em uma próxima etapa que também é muito importante. Dentro dessa tramitação da reforma sobre o consumo, que veio justamente no sentido de simplificar 5 impostos – PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS – criou-se um novo imposto que seria o IVA e foi criado o imposto seletivo, porque existe um reconhecimento que todos os produtos não podem ter a mesma alíquota. Existe uma diferenciação pelo seu grau e pelo seu impacto para a saúde e o meio ambiente.

Então, de certa forma, a primeira etapa da reforma tributária foi a mudança da Constituição. Como o arcabouço tributário era elencado à nossa Constituição, o primeiro passo teria que ser mudar a Constituição. Foi o que aconteceu ano passado, aprovado em dezembro,.

A criação do imposto seletivo já foi um grande ganho, porque ali está escrito, justamente, produtos que são nocivos à saúde e ao meio ambiente. A partir do momento que a Constituição está alterada, qual é o próximo passo? Estão sendo discutidas leis complementares no sentido de regulamentar, por exemplo, que produtos são esses que fazem mal à saúde, como vamos tributar, qual é a base de cálculo, para onde vai esse recurso? Estamos em fase de detalhamento, que é tão importante quanto a anterior.

Tabaco e álcool são duas categorias de produtos que sempre aparecem com muita força na discussão. O tabaco, vai ter outras questões, porque hoje o tabaco já tem uma carga tributária. Então, toda a atuação do setor regulado é fazer com que a carga diminua e isso não pode acontecer. O álcool, por incrível que pareça, apesar de já ter um senso comum na fala de muitos parlamentares de que ele vai entrar, vemos também uma atuação muito forte do setor regulado, inclusive de reduzir alíquota.

Temos a questão dos alimentos ultraprocessados e agrotóxicos também. Há uma fronteira nova sendo feita. Há muito reconhecimento internacional quanto às bebidas açucaradas e adoçadas. Mais de 60 países têm um imposto específico para tributar essa categoria. Mas os ultraprocessados ainda são um crescente à medida que as evidências estão ganhando envergadura.

Os setores que vão ser regulados sempre questionam quem vai dizer o que faz mal para a saúde e o meio ambiente. Aí entra a importância da regulamentação. Temos o CNS com suas recomendações. O Executivo e o Legislativo têm que dar resposta. Ele (CNS)classifica através de evidências, qualifica o debate não fica no achismo. Tem muita gente que se aproveita dessa zona mais cinzenta sobre dizer o que faz mal à saúde, mas tem muita gente que não sabe mesmo. Então, não podemos deixar para o legislativo definir o que faz mal à saúde.

São problemas complexos, temos que nos apropriar das áreas técnicas para colocar o suporte. O Ministério da Saúde já se posicionou também em relação a tabaco, álcool e ultraprocessados. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome já se posicionou também dizendo que os ultraprocessados, em hipótese alguma, podem compor a cesta básica. O CNS é mais uma ação de especialistas e composições. Não é pela questão técnica que haverá dúvidas.

Foi muito interessante o CNS fez a recomendação e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) também fez, praticamente na mesma época, focando mais nos alimentos e nos agrotóxicos. O Consea também é um órgão de apoio ao executivo nas questões de segurança alimentar e nutricional. Então você tem, além da sociedade civil e dos ministérios, os conselhos se posicionando. É uma força para tirar questões muito técnicas só para os parlamentares.

Quais são os desafios da sociedade civil e dos movimentos populares nessa regulamentação?

A reforma uniu pela primeira vez todos os setores. Nós éramos acostumados a trabalhar com uma determinada pauta e já havia uma coalizão específica de setores a serem regulados. Com a reforma são todos em uma pressão, reunindo um grupo de interesse com pleitos assim incabíveis. Recentemente, vimos uma lista da Associação Brasileira de Supermercados tentando colocar nesse pleito de alíquota reduzida – em que se paga praticamente metade de uma alíquota de referência que todo mundo vai pagar – não só a cerveja, mas o vinho, o espumante. É uma loucura, o argumento vai no sentido de que precisamos impulsionar o setor local.

Há uma questão muito importante, que é a alíquota de referência. A cada desoneração concedida, essa alíquota de referência sobe. Ou seja, qualquer outro produto que não está lá previsto para ser isento ou desonerado vai cair em uma alíquota maior. Então vemos vários setores pleiteando a redução para seu benefício próprio. Só que isso vai ter impacto na vida do consumidor. Por isso não faz sentido colocar a cerveja, o vinho, o champanhe, o refrigerante em uma alíquota reduzida.

Muitos dos produtos que são alvo de pleito para redução de alíquota levam o selo de advertência [de substâncias nocivas]. Um exemplo é o biscoito. No supermercado está [identificado]como alto em açúcar. Produtos voltados para o público infantil com esse disfarce de que são para alimentação e o Guia Alimentar para a população de menores fala que não.

Isso casa com outra questão. Falamos muito da alimentação, porque o setor alimentício se juntou com o agronegócio e eles são os setores mais fortes nessa história. Eles pegam uma camada mais perversa, que confunde. Muitas pessoas, não só a população, mas parlamentares e pessoas da área técnica, têm caído. É o argumento de que tributar os ultraprocessados vai fazer a comida ficar mais cara e aumentar a insegurança alimentar.

É uma loucura, porque é como se você falasse para a população que o ultraprocessado é a única opção de alimentação. E não é. Estamos fazendo, pela primeira vez, uma cesta básica com redução de alíquota para alimentos de qualidade, com acesso mais fácil para a população. A população não ficará em dúvida se vai comprar a salsicha ou o frango, se estamos desonerando o frango. Geralmente, esses produtos in natura e minimamente processados são muito mais intensivos em mão de obra. Isso é muito importante. Você pode estimular mais a cultura e a diversidade regional. Por que desonerar um refrigerante ou reduzir a alíquota dele se eu não posso fazer isso com suco de fruta local, que realmente precisa de um sistema e é mais intensivo em mão de obra.

Temos trabalhado com os dados da pesquisa de orçamento familiar que mostram que a população de baixa renda ainda tem uma alimentação muito focada nos alimentos in natura e minimamente processados. Temos que afastar esse risco cada vez mais. Sem uma reforma importante e estruturante como essa, você pode facilitar cada vez mais os ultraprocessados ficarem mais baratos. Esse é o pleito que está sendo pedido [pelo setor privado]. Não podemos deixar, temos que fazer esses dois elementos combinados, desonerar o saudável e onerar, o que não é saudável.

Vemos muitos pleitos usando a defesa do direito de escolha, de que ninguém vai passar fome, falando sobre proteção de empregos e que haverá uma desindustrialização. Mas não é isso. São caminhos que o país escolhe para uma economia saudável, solidária e de baixo carbono. Existe solução para isso.

Quais são as expectativas de conclusão da tramitação e para que os efeitos da reforma cheguem à população?

Estamos vivendo uma semana decisiva. A EC foi aprovada em dezembro e, nesses meses, o Executivo criou 19 grupos de trabalho para os vários aspectos da reforma tributária e para criar as leis complementares da regulamentação. O caminho oficial agora é o executivo apresentar para o Congresso esses textos para entrar em votação.

Existe uma expectativa porque estamos em ano eleitoral. O governo teria até 180 dias para apresentar esses projetos, mas por causa das eleições, eles estão sendo antecipados. Era para serem entregues nesta semana, mas foram postergados. Temos muita expectativa sobre como será a tramitação, como vai ser criado o fluxo de votação.

É importante dizer que, no Congresso, também foram criados 19 grupos paralelos para colocar pleitos. Por exemplo, a Frente Parlamentar da Agricultura apresentou um projeto de lei para a regulamentação da alimentação. Ele tem um nível de isenção de alimentos inacreditável, sem lastro econômico. Esses grupos de trabalho criaram várias propostas de leis alternativas. Mas os documentos oficiais, as propostas oficiais vão ser apresentados pelo governo.

Também temos muitas expectativas sobre o que vai entrar no imposto seletivo e como vai ser feita essa sua base de cálculo. Temos trabalhado muito, dando muitas evidências científicas e até econômicas para subsidiar o debate. Me parece que a ideia é votar tudo isso até junho, porque o segundo semestre é eleitoral. Só que seria uma primeira etapa a votação dessas leis complementares. Depois entraremos nos anos de transição, quando os impostos atuais vão saindo e vão entrando outros. Isso tudo, se o cronograma der certo.

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