Por Aurélio Valporto, no Jornal GGN
John Kenneth Galbraith, em sua obra “O Novo Estado Industrial”, de 1967, descreveu como o poder nas grandes corporações estava migrando dos detentores do capital para os diretores e gerentes, estes formam o que ele chamou de tecnoestrutura. Na época ele próprio não tinha uma opinião acerca das consequências, se isso era positivo ou negativo para a economia. Com a pulverização do capital das grandes empresas de capital aberto, as empresas sem “dono” definido, as chamadas corporates, se tornaram comuns no século 21. No Brasil, a Embraer se tornou uma delas e a história recente nos mostrou o quanto essa transição do poder na empresa dos detentores do capital para a tal tecnoestrutura pode ser destruidora. Vamos aos fatos nos parágrafos que se seguem.
Em 5 de julho de 2018 a Embraer divulgou ao mercado que o seu Conselho de Administração havia deliberado favoravelmente à assinatura de um “Memorando de Entendimento” com a Boeing, por meio do qual as respectivas partes estabeleceram premissas básicas para uma potencial combinação de negócios. Foram divulgadas partes do citado memorando. Ainda que partes vitais tenham sido deliberadamente ocultadas do mercado investidor, ao tomar conhecimento dos termos extremamente negativos para o futuro da empresa, os acionistas da Embraer iniciaram uma venda em massa de ações, isso provocou vários leilões durante o pregão do dia 5. Diante deste movimento, o mercado de ações da empresa, demonstrando a total desaprovação pelos termos do negócio divulgados, encerrou o pregão do dia com queda de quase 15%.
A decepção com o conteúdo do anúncio se deve a diversos motivos, o principal é que a Embraer vinha anunciando que realizaria uma “joint venture” com a Boeing, no entanto, o anúncio deixou claro que a tal “joint venture” era uma falácia, o que estava sendo entabulado era a venda para a Boeing da divisão de aviação comercial da Embraer, junto com todo seu corpo técnico, além de outras divisões fundamentais, como a que fabrica trens de pouso, que a Boeing jamais fabricou. Qualquer acionista que conhecesse minimamente a empresa saberia que 80% dos lucros da Embraer provêm da sua divisão comercial, e também que não existe corpo técnico de aviação militar e de aviação civil, o corpo técnico, a engenharia, é uma só. De forma coloquial: a Boeing estaria levando todo o “filé”, o que restaria como Embraer seria o “osso”.
Mas não foi só isso. Com a divulgação do MTA (master transaction agreement) um calhamaço ainda bastante incompleto, ficou claro que muita coisa estava sendo escondida, entre outros motivos porque alguns apêndices listados no seu índice simplesmente não estavam no documento, e também porque não era possível saber exatamente o que estava sendo vendido porque, inacreditavelmente, certos “ativos contribuídos” eram considerados sigilosos. O que implica em dizer que os acionistas sequer sabiam a extensão do que estavam entregando. Mas foi o suficiente para deixar claro que o Fato Relevante divulgado ao mercado foi bastante incompleto e procurou induzir o investidor ao erro, por esse motivo o diretor de RI, Nelson Salgado, foi processado perla CVM.
Apesar de incompleto, o MTA deixou também claro que a operação era uma fraude monstruosa contra os investidores e, principalmente até, contra a economia nacional, não só por atentar contra a higidez do mercado de capitais brasileiro, como veremos, mas também porque representava, na prática, a destruição do mais valioso ativo tecnológico e industrial do país.
Como na verdade o que estava sendo feito era uma cisão, que teria que se sujeitar aos ditames da lei das S/A (lei 6.404/76) a administração, justamente para driblar a lei, chamava de “Joint Venture Aviação Comercial”. Era uma cisão e, por isso, o valor da parcela cindida teria, de acordo com a lei, ser avaliado por empresa especializada e independente, mas o valor da venda para a Boeing da parcela cindida foi definido, sem qualquer avaliação, e mesmo sem sequer qualquer exposição técnica, em US$ 4,2 bilhões, pelas próprias empresas. Não bastando isso, o MTA exigia, quase que em nota de rodapé, para ninguém ler, que a parcela vendida à Boeing fosse entregue com US$ 1,5 bilhão em caixa. Isso significa que o preço real era de US$ 2,7 bilhões. Ademais, para “comprar” apoio dos especuladores que estavam comprando ações da Embraer a essas alturas na “bacia das almas” a empresa anunciou dividendos extraordinários de US$ 1,6 bilhão, o que equivalia a cerca de US$ 2 por ação. Restaria US$ 1,1 bilhão no caixa do que restaria da Embraer, mas havia ainda a previsão de pagar cerca de US$ 1 bilhão de imposto de renda. Se subtrairmos daí as despesas referentes à cisão, na prática não sobraria nada, porque a própria Embraer havia divulgado que nos 3 primeiros trimestres de 2019 as “despesas com custo de separação” (sic) já somavam R$ 253,5 milhões.
Não podemos aqui deixar de citar que o artigo 53 do estatuto social da Embraer obrigava a uma oferta pública de aquisição das ações caso algum acionista adquirisse 35% ou mais ações do seu capital. O próprio artigo prevê os métodos de precificação da oferta a ser feita a todos os acionistas e, mesmo na mais barata das hipóteses, baseada na carteira de pedidos, as indicações são de que a oferta não sairia por menos de US$ 16 bilhões. Desnecessário dizer que como se tratava de uma falaciosa “joint venture”, a empresa alegou que não cabia a OPA prevista no referido artigo.
Acho que não podemos deixar passar em branco o relatório sigiloso do Comando da Aeronáutica, que acabou vazando e em resumo previa que se o negócio fosse concretizado o que restaria da Embraer não teria capacidade tecnológica e, resumidamente, seria o fim da empresa (embora não utilizassem essas palavras).
Enfim, se fôssemos descrever em detalhes toda a sordidez da fraude, esse artigo se tornaria um livro, mas o exposto já é suficiente para o leitor ter uma ideia do que estava sendo perpetrado contra os acionistas e o verdadeiro crime contra a economia nacional.
Posto este cenário, destaca-se como fundamental contra esta atuação de agentes públicos e de diversos membros da direção da empresa, a ABRADIN, a Associação Brasileira de Investidores. Ainda em 2018 a ABRADIN impetrou uma interpelação judicial para alertar a Embraer e a União das flagrantes ilegalidades que seriam cometidas caso a negociação seguisse adiante conforme fora anunciado. Por que a importância de alertar a União? Porque esta detém a chamada “Golden Share”, significando que, por se tratar de uma empresa estratégica, a união precisaria aprovar a negociação, se ela não desse o aval, nada seria feito. Este pedido estava parado no governo Temer há meses, e não se manifestou, nem uma única palavra se tornou pública sobre esse assunto durante este governo.
Pois bem, a interpelação não obteve resposta. Bolsonaro havia sido eleito e, nos primeiros dias de seu governo a ABRADIN recebeu de um influente jornalista de Brasília a seguinte mensagem: “recebi a informação que a Boeing desceu em Brasília distribuindo dinheiro pesado para membros do governo”. Eram apenas rumores, mas, verdade ou mentira, rumores são sempre reveladores. Afora os rumores, havia outros indícios preocupantes, um dos membros mais proeminentes do conselho da Embraer, que estava trabalhando ativamente pela concretização do negócio (e que desde privatizada, na década de 90, vinha sendo membro da administração da empresa) era ninguém menos que Sérgio Eraldo de Sales Pinto, o eterno sócio do recém empossado ministro Paulo Guedes. Se Sérgio Eraldo estava no conselho, aprovando a fraude, era de se supor que o novo ministro estivesse junto. Embora fosse uma operação complexa com o condão de destruir o parque industrial e tecnológico aeronáutico brasileiro, que demoraria meses de estudo para se ter uma ideia da operação e suas consequências, com apenas 10 dias de governo o presidente Bolsonaro disse, publicamente, que o governo não usaria a “Golden Share” para se opor ao negócio. Ou seja, Bolsonaro estava dizendo que concordava com a negociata. A suspeita, apenas suspeita, era a de que tinha sido influenciado por seu ministro da fazenda.
A presidência da ABRADIN solicitou então uma audiência com o então Vice-Presidente da República, general Hamilton Mourão. Esta foi agendada para o dia 19 de fevereiro de 2019. A Embraer havia também agendado a AGE para a votação do negócio para o dia 26 de fevereiro. No dia 18 de fevereiro a ABRADIN entrou com notícia crime junto ao MPF contra todos os membros do conselho da Embraer, fato que teve grande repercussão.
Chegado o dia 19 de fevereiro de 2019, estiveram presentes na audiência com o General Mourão, o presidente da ABRADIN, Aurélio Valporto, a assessora jurídica, Dra. Izabela Braga e o assessor técnico, o PhD do Ita e ex engenheiro da Embraer, Cel. Wagner Rocha. A reunião começou com o Vice-Presidente informando que era a favor da privatização. Isto já indicou que o governo sequer tinha tomado pé do negócio e o Presidente da República já tinha dado o seu aval. Afinal, a Embraer fora privatizada em 1994, o que estávamos tratado ali era de uma fraude contra o país e contra os investidores. Em cerca de meia hora conseguimos resumir o tamanho da fraude que estava acontecendo e o General Mourão, atônito com o que escutava, disse: “Valporto, se o que você me diz é verdade, só tenho estrume aqui no governo tratando desse assunto”. Ao que ele ouviu como resposta: “eu sei, é exatamente por isso que estamos aqui general, e está tudo documentado aqui no MTA. Por exemplo, aqui informa que o que sobrar da Embraer ficará proibida para sempre de projetar e produzir aviões de mais de 50 lugares e que a Boeing poderá usar qualquer propriedade industrial da empresa brasileira ainda que a Embraer não concorde, informa também que linha de produção do KC-390, financiada pelo PAC, será transferida para os Estados Unidos”. Ao que ele interpela: “não vai não”. E recebe como resposta: “vai sim general, está escrito aqui”. Em seguida é passada para ele a parte onde está escrito que a linha do KC será transferida para os EUA. Ele então abaixa a cabeça, lê com atenção, levanta vagarosamente e exclama: “É, o corno é o último a saber!”. Se vira para o ajudante de ordens, Cel. Moraes, e pede para chamar imediatamente o Ministro da Defesa. Enquanto havia a conversa com o Ministro, esperamos do lado de fora. Acabando a reunião entre os dois, o Cel. Moraes se dirige ao presidente da ABRADIN e pede para ser feito um resumo de duas páginas da fraude, porque o Vice-Presidente iria tratar do assunto no dia seguinte com o Presidente Bolsonaro. E assim foi feito.
No dia, seguinte, 20 de fevereiro, a ABRADIN impetrou uma Ação Civil Pública denunciando a fraude ao judiciário brasileiro e pedindo a suspensão do negócio. Este movimento teve grande repercussão na mídia nacional e internacional, saindo em jornais europeus e norte-americanos, entre eles o New York Times. Agora a fraude havia se tornado, definitivamente, um escândalo internacional.
Chegado o dia 26 de fevereiro, dia da assembleia, ela foi primeiramente suspensa liminarmente por uma ação do sindicato dos trabalhadores, mas mesmo assim nos dirigimos para o local, na sede da Embraer, em São José dos Campos. A liminar foi cassada e a assembleia teve início, como o presidente da república já estava ciente da monstruosa fraude esperávamos o bloqueio pela “Golden Share”. Para a nossa surpresa, o presidente Bolsonaro não a utilizou para impedir a negociata, pior, como o estatuto coloca severas restrições a votos de acionistas estrangeiros, a venda fraudulenta foi aprovada, em última instância, essencialmente pelos votos do BNDES e da PREVI, se estes acionistas, que na verdade são comandados pelo governo, votassem contra, não deveria ser aprovado. O presidente da ABRADIN bradou durante a assembleia uma frase que viria a ser repetida pelos jornais: “isso que vocês estão fazendo aqui é um teatro para dar contornos legais a uma fraude”.
Perdemos a batalha, mas não a guerra, era uma questão de honra para a ABRADIN, denunciar a fraude e os indícios de corrupção. Lembrem-se, rumores, verdade ou mentira são sempre reveladores.
O próximo passo foi a ABRADIN procurar um partido político para que este entrasse no Supremo Tribunal Federal com uma ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) uma vez que a negociata descumpria esses preceitos e atentava contra a soberania nacional. Como o ex-Governador do Ceará, Ciro Gomes, também vinha se manifestando contra, o presidente da ABRADIN marcou uma reunião com ele no centro do Rio de Janeiro, na sede do PDT. Desta reunião restou acertado que o PDT entraria com a ADPF, uma vez que o partido tinha legitimidade para propor, mas a Associação não. E assim foi feito, com grande repercussão novamente na mídia e muito bem acolhida pelo Supremo. Mas, sabemos que a justiça pode ser lenta e esses julgamentos podem demorar, quando fosse julgado o negócio poderia estar concretizado e ser impossível de se desfazer.
Por este motivo, em seguida a ABRADIN procurou o regulador brasileiro, o CADE, e apresentou nova denúncia de fraude e prejuízos à livre concorrência. Mas é notório que, no fundo, é subordinado ao Ministério da Fazenda, que era comandado por Paulo Guedes que historicamente é sócio do Sérgio Eraldo. A denúncia ao CADE fez barulho na imprensa, mas logo colocaram em sigilo e o regulador, inacreditavelmente, ou, conhecendo o Brasil, previsivelmente aprovou a negociata.
A essa altura, no final de 2019, havia um regulador em todo o mundo que estava ainda estudando a compra da Embraer pela Boeing, era a Comissão Europeia, e sabíamos que a aprovação desse regulador era essencial. Afinal, se não houvesse aprovação da Comissão Europeia, aviões com a marca da Boeing não poderiam ser vendidos no continente, o que é impensável para o fabricante estadunidense. O prazo para interessados se manifestarem já havia expirado, mesmo assim a ABRADIN, através da sua assessoria jurídica, traduziu para o Inglês milhares de páginas em dezenas de documentos e os enviou para a Comissão Europeia. Eram basicamente os mesmos que já havíamos utilizado no Brasil na Ação Civil Pública e denúncia ao CADE, além da ADPF proposta no STF. Em seguida a Comissão respondeu que embora o prazo tivesse expirado, dada a relevância do que estava sendo enviado, com explicações documentadas, ela estava recebendo o material da ABRADIN e nos pediu para enviarmos mais, caso tivéssemos, e ressaltou que eles liam em português, não precisava traduzir! Enviamos novas remessas, todas muito bem acolhidas, estudadas, e discutidas com o jurídico da ABRADIN.
Novamente a denúncia de fraude feita à Comissão Europeia se espalhou por todo o planeta, os principais jornais do mundo, de Tóquio a New York, passando por Londres, Bruxelas Paris, Pequim, etc. estavam falando do envolvimento da Boeing em uma fraude com a Embraer. A Reuters dava ênfase de que a compra na verdade era uma “killer acuisition”, ou seja, uma compra para eliminar a concorrência potencial da Embraer. Era um escândalo. Como se não bastasse os aviões 737 MAX da Boeing estavam caindo e matando todos a bordo porque a empresa havia fraudado os procedimentos de certificação e vendeu aviões com falhas mortais de projeto.
A partir da representação da ABRADIN junto à Comissão Europeia, esta postergou, inicialmente de fevereiro de 2020 para abril do mesmo ano, uma decisão. Mas, como a Boeing e a Embraer simplesmente pararam de responder aos novos questionamentos da comissão, foi postergado novamente para agosto de 2020 um resultado da análise. Aparentemente percebendo que não haveria aprovação do regulador europeu, dada sua postura depois da entrada da representação da ABRADIN, a Boeing anunciou, ainda em abril de 2020, que estava desistindo do negócio.
A Embraer abriu em uma câmara internacional um procedimento arbitral contra a Boeing pelos prejuízos causados pela desistência da compra. Em contato anônimo com a ABRADIN uma fonte ligada à arbitragem nos informou que a Boeing alega em sua defesa que era responsabilidade da Embraer conseguir a aprovação dos reguladores, mas que não conseguiu a aprovação da Comissão Europeia.
É por isso que hoje a Embraer segue sendo a terceira maior fabricante de aviões do planeta e vende cada vez mais. Agentes públicos do antigo governo e a diretoria da Embraer alegavam que a Empresa teria que ser vendida, uma vez que a Bombardier havia sido vendida para a Airbus e a Embraer não teria condições de competir. Quem conhece o segmento sabia que era apenas uma falácia para justificar a fraude e o assalto à economia nacional. O tempo se encarregou de mostrar isso, infelizmente se encarregou também de fazer com que a população esquecesse os fraudadores.
*Aurélio Valporto – Economista e presidente da ABRADIN