26 de junho de 2024 11:03 por Geraldo de Majella
Por Helena Bagnoli, do Site Bravo!
Documentário biográfico pode dar muito errado, principalmente quando tenta dar conta de uma vida inteira. Mais arriscado ainda é quando é realizado por alguém ligado afetivamente ao biografado. No caso de Ziraldo, Era uma Vez Um Menino, filme dirigido pela filha do artista, Fabrizia Pinto, o resultado é de outra natureza. É aquela que dá certo, que, além da lente do amor, reúne pesquisa séria, muita lapidação e coloca em perspectiva um personagem rico, fundamental principalmente para a história do jornalismo de resistência do país.
O filme, que estreou na 45a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, começa contando que Ziraldo Alves Pinto nasceu recebendo um nome todo seu — Ziraldo vem da combinação dos nomes de sua mãe, Zizinha, e o de seu pai, Geraldo. A partir daí, acompanha-se toda a sua trajetória, que começa na cidade natal, Caratinga (MG), rumando depois para o Rio de Janeiro.
Realizado em primeira pessoa, o documentário parte de entrevistas concedidas por Ziraldo ao longo da sua vida e é amarrado pela sua vasta produção: fotos das suas obras, sequências afinadas de tabletops, desenhos, discretas imagens dele em família, animações e pequenas aberturas que vão fazendo o prólogo de cada bloco. Às vezes parece um diálogo, quase um fluxo de consciência em que o protagonista se mostra sem hesitar para a câmara, com o seu entusiasmo contagiante.
Não há uma narrativa linear, mas um modo organizado que articula causa e consequência sem ser simplificador. Como as entrevistas datam de momentos variados, às vezes o áudio fica um pouco prejudicado, mas não atrapalha o ritmo. O acervo é extenso e vai construindo a rota desse cronista visual, realocando-o no presente ao mesmo tempo em que o conecta à história. É uma coleção acachapante, e por meio delas vê-se também as mudanças da sua linguagem — como ele se colocou na vanguarda das artes gráficas com seu humor fino e como criou sua marca, hoje facilmente reconhecível.
Assim como a sua criação mais conhecida, o Menino Maluquinho (uma quase entidade que fez parte da infância das crianças dos anos 1980), Ziraldo é muito simpático. O que é um facilitador, pois logo de cara a gente começa a torcer pelo artista menino, quando já sabia que queria ter uma profissão que ainda não tinha nome, mas incluía contar histórias, desenhando o que ele observava. E assim o filme vai fabulando uma escritura ancorada na memória das suas realizações e do seu desejo de renovação.
Ziraldo começou trabalhando em agências de publicidade, mas sempre teve o olho grande nos jornais. Seu primeiro trabalho na área foi na Folha da Manhã, com apenas 22 anos de idade, até sua consagração no Jornal do Brasil. Aliás, uma passagem muito bonita do filme é ele ainda adolescente aprendendo o que era a caricatura e, depois, como ele a utilizou no JB, fazendo história na imprensa brasileira.
Outro momento glorioso e pouco conhecido é o mural gigantesco que fez no célebre Canecão, no Rio de Janeiro, inspirado nos traços de Picasso e Cândido Portinari. Uma “Santa Ceia” regada a cerveja, festas em mesa de bar, pessoas de porre, os Arcos da Lapa, a visita do papa ao Rio de Janeiro — muita história luxuriante feita em um mural de 32 metros, pintado em 1967, em pleno regime militar. A maior realização de Ziraldo como artista plástico está hoje coberta por tijolos e tinta. Sobraram as imagens.
Em família
Ziraldo, Era uma Vez Um Menino não é uma produção que tenta mostrar a complexidade de um protagonista, ao contrário, busca o passado quase que integralmente pelo seu próprio testemunho. E o faz com uma amorosidade que transborda pelas imagens ou pela colagem de músicas escolhidas a dedo pelo seu outro filho, o compositor Antônio Pinto. Ele também reuniu algumas das suas composições, e com elas faz as intervenções que arredondam as cenas e, às vezes, dão o tom necessário para se assistir a tudo como se fosse uma história em quadrinhos, tão caras ao biografado. Um filme homenagem e aqui não há mal nenhum.
Produzido e montado durante a pandemia, o filme foi quase uma ação em família. Além dos dois filhos, participam netos e sobrinhos de Ziraldo, o que aciona uma intimidade necessária numa cinebiografia. E ninguém ali pretende negar essa subjetividade. Nem se nada funcionasse seria ruim, porque Fabrizia Pinto conseguiu recuperar a produção do seu pai e juntá-la à resistência e à irreverência, necessárias de serem revisitadas nos dias de hoje. Ziraldo fez parte do grupo que criou o legendário O Pasquim, em 1969, burlando a linha dura do AI-5, inaugurando um outro jeito de fazer jornalismo e com o intuito explícito de ser uma verdadeira pedra no sapato da ditadura e seus asseclas. E conseguiram. Ao lado de Jaguar e Fortuna, Ziraldo com suas charges mudou o jeito de fazer humor político no Brasil. Rever seus cartuns é revisitar o deboche que sempre foi a política nacional.
Sua vida pessoal aparece em segundo plano e desenhada para inspirar. Quando Ziraldo fala do seu jeito de olhar para as coisas e suas ideias sobre as coisas, ele se parece com os personagens dos seus livros infantis –simples e de bom humor — característica que em um momento ele revela que herdou da sua mãe. “Se a gente não atrapalhar o fluxo da vida, tudo sempre dá certo”, diz.
Em última instância, essa escrita audiovisual encontrada pela direção e pelo roteiro, mesmo sem passar pelo contraditório, conseguiu estabelecer uma ponte delicada entre o conhecido e o desconhecido, dimensionou a estatura desse menino-homem maluquinho e o desdobramento da sua obra no tempo. Uma chance de descobrir uma figura das mais interessantes.