Por Priscila Lobregatte, do portal Vermelho
Guiado pela lógica do lucro e desprovido de senso ético, o ecossistema das redes sociais oferece, cada vez mais, atividades que podem ser viciantes e perigosas, especialmente para crianças e adolescentes. Nesse universo, os jogos de azar on line, intuitivos e cheios de estímulos sensoriais, atraem os pequenos internautas que, alvo dos algoritmos e fascinados pelos “tigrinhos” da vida, acabam mergulhando num mundo cheio de riscos para seu desenvolvimento.
As ofertas variam e vão desde os jogos em formato de campeonato —em que adversários se enfrentam em busca de um prêmio em dinheiro — até os de apostas esportivas (as Bets), caça-níqueis e cassinos on line — entre os quais está o famoso “Jogo do Tigrinho”. Embora sejam de tipos diferentes, todos envolvem o estímulo contínuo, como forma de manter o público fiel, independentemente da idade.
Para piorar, “influenciadores-mirins” têm sido usados, pelos próprios pais ou com sua anuência, para anunciar os jogos, contribuindo para normalizar e banalizar o seu uso.
Tais atividades não envolvem apenas crianças e adolescentes, claro, mas neste público, dado o estágio de formação psicológica e emocional, a dependência pode se estabelecer mais rapidamente e com efeitos mais nocivos ao seu desenvolvimento.
“Os jogos de aposta, que são cada vez mais comuns entre as crianças e os adolescentes, operam pela adição (dependência). Porque não é só o fator do jogo em si que os envolve, mas também a questão da aposta”, explica, ao Portal Vermelho, Indianara Sehaparini, doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que se dedica principalmente a estudos sobre os impactos do uso de jogos eletrônicos e das redes sociais sobre o público infantil.
Ela acrescenta que esse público, por não ter todo o sistema neuronal já amadurecido, acaba sendo uma “presa” mais fácil desse tipo de atividade.
“Eles são mais sensíveis aos efeitos do sistema dopaminérgico, que é o sistema de recompensa ligado à dopamina. Então, se ele ganha, continua jogando. E se perde, também continua apostando para tentar ganhar. Isso faz com que, muitas vezes, o vício se desenvolva. Esses jogos de aposta são feitos especificamente para que se tenha, sim, uma alta incidência de vício”. Para ela, “é como se fossem jogos predatórios”.
Acesso facilitado
Considerando o fato de que a internet está cada vez mais acessível a diferentes e amplos públicos, o problema do uso excessivo dos jogos acende um sinal de alerta, que pede atenção, sobretudo dos responsáveis e das escolas, mas também da sociedade e do Estado.
Segundo o estudo TIC Kids Online Brasil 2022, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), naquele ano, a maioria da população entre 9 e 17 anos, 92%, era usuária de internet no país, o que corresponde a cerca de 24,4 milhões de pessoas nessa faixa etária.
O telefone celular segue sendo o principal dispositivo de acesso à rede por crianças e adolescentes e foi o único usado por 82% da população das classes D e E, 49% da classe C e 21% das classes A e B.
“A pesquisa mostra tendência crescente de uso da internet já na primeira infância. Esse fenômeno reforça a necessidade de dados robustos acerca das oportunidades e dos riscos online vivenciados por crianças e adolescentes, que orientem políticas e ações voltadas à garantia dos seus direitos e proteção”, disse Alexandre Barbosa, gerente do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), ligado ao CGI.br, durante o lançamento do estudo.
“A conectividade excessiva e a falta de análise sobre os possíveis efeitos de conteúdos específicos produzidos para o público infantil e adolescente pode colocá-los em risco de violação de direitos, superexposição e hiperconsumo”, aponta, ao Portal Vermelho, Marina de Pol Poniwas, conselheira do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e presidenta do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (Conanda).
No começo de junho, o Conanda emitiu resolução instituindo um grupo temático para desenvolver, no âmbito do governo federal, a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente no Ambiente Digital, cuja finalidade é formular e propor estratégias para a “erradicação de todos os tipos de violência, abuso e exploração no ambiente digital de crianças e adolescentes, promoção do uso equilibrado e positivo de equipamentos digitais, manutenção e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, inclusão digital, cultura de proteção de dados, educação midiática e difusão de informação sobre direitos e o uso seguro da internet para crianças e adolescentes, familiares, cuidadores e integrantes do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente”. A expectativa é que tal política seja publicada até dezembro deste ano.
Por outro lado, no âmbito legislativo, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou, no dia 19, projeto que autoriza jogos de azar. Pela proposta, somente maiores de 18 anos poderão jogar e haverá proibição, por exemplo, para jogadores que se declararem ludopatas (pessoas diagnosticadas com compulsão por jogos de azar) ou forem interditados judicialmente.
Jogos como o do Tigrinho, um dos mais populares nas redes, podem ser abarcados pela legislação, caso a mesma seja aprovada. No entanto, isso dependeria de regulamentação e enquadramento, a cargo do Ministério da Fazenda.
Supervisão e diálogo familiar
Além da legislação e de ações governamentais, também é fundamental que educadores e, sobretudo, familiares e responsáveis — e a sociedade como um todo —, estejam atentos aos hábitos das crianças e adolescentes na internet, a fim de evitar tanto o uso exagerado da tela e das redes quanto o acesso a aplicativos e sites inadequados para este público.
“Acredito que a gente precisa ter um entendimento coletivo sobre essa questão, envolvendo o governo, as esferas educacional e familiar, e desenvolvendo um pensamento crítico tanto sobre o uso das redes sociais quanto dos jogos”, salienta Indianara.
A psicóloga argumenta que “cada vez mais cedo, as crianças têm entrado em contato com os celulares e tablets com acesso à internet. E muitas vezes, os pais ou responsáveis acabam não supervisionando diretamente ou às vezes eles nem sabem sobre a necessidade de um controle parental”.
Vale destacar que, diante da impossibilidade de esperar o desenvolvimento infantil para o uso das telas diante do cenário de amplo acesso em todo o mundo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu parâmetros mínimos a serem observados: crianças de zero a dois anos não devem ter qualquer exposição; as de dois a seis anos, podem por até uma hora por dia. De seis aos dez anos, duas horas diárias e acima dos 11 anos, até 3 horas por dia.
A psicóloga Indianara defende que, para o melhor desenvolvimento infantil, “as crianças precisam continuar brincando com outras coisas, mais físicas, e precisam fazer atividades lúdicas que também estejam fora da tela. A gente precisa pensar sobre como cuidar desse cenário para evitar que o vício e outros problemas se desenvolvam”.
Ao mesmo tempo, destaca, é preciso ponderar a forma de lidar com a questão, apostando sobretudo no diálogo e no cuidado, para não cair no discurso proibicionista e punitivista, que pode acabar gerando mais problemas intrafamiliares e para as próprias crianças. “Isso é uma coisa que a gente cuida muito para não culpabilizar os pais ou os cuidadores por causa do uso do celular”, completa.
De maneira geral, o uso excessivo da internet e de jogos, sejam ou não de azar, envolve também outras questões relativas à saúde. Marina, do CFP, ressalta que os efeitos “podem ser extremamente nocivos para a saúde física e mental, assim como para a segurança de crianças e adolescentes”.
Tais efeitos negativos incluem, por exemplo, o sedentarismo, o aumento do risco de obesidade na infância; distúrbios do sono, exposição a conteúdo impróprio para a idade e dependência psicológica desta atividade. “Para além da quantidade de tempo gasta, é fundamental observar o impacto desta atividade no âmbito social (família, escola, convivência), especialmente de crianças e adolescentes”, argumenta.
Ela salienta que “ouso excessivo de videogames e jogos online é um problema crescente de saúde pública, sendo fundamental avançar em processos de regulamentação”.
Marina destaca também a importância do desenvolvimento de campanhas educacionais para pais, educadores e formuladores de políticas. “É fundamental avançar em políticas educativas na tentativa de ajudar os jogadores e suas famílias e colaborar no manejo das condições que levam ao uso problemático dos jogos. Bons programas de prevenção devem ser priorizados porque podem atingir um público mais amplo e resolver o problema em um estágio inicial”.