Por Arthur Guimarães, da piauí
Agentes da Polícia Federal estiveram, em 1º de junho do ano passado, numa casa modesta na Ceilândia, uma das regiões mais pobres do entorno de Brasília. Ao revistarem um carro estacionado junto ao imóvel, encontraram uma agenda repleta de informações contábeis, com nomes, datas e valores que somavam centenas de milhares de reais. Seu dono era o mesmo do veículo: Wanderson de Jesus, motorista do principal assessor de Arthur Lira (PP-AL), Luciano Cavalcante. Os dois, motorista e assessor, estavam sendo investigados por um desvio de milhões de reais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O esquema, segundo a polícia, consistia na venda superfaturada de kits de robótica para escolas públicas de Alagoas.
A agenda continha anotações com o nome de Arthur Lira e cifras ao lado. A investigação, como noticiou a piauí, levantou a suspeita de que despesas do deputado estavam sendo custeadas com dinheiro desviado. Agora, um outro documento que ainda não havia sido divulgado reforça essa hipótese. Trata-se de uma nota fiscal da loja Ricardo Almeida, uma das principais marcas da alfaiataria nacional. Nela, constam nome e sobrenome de Arthur Lira, o valor (8.190 reais) e a data (23 de janeiro de 2023). As informações batem exatamente com uma das anotações feitas na agenda. Lá está escrito, no dia 23 de janeiro de 2023: “terno Arthur”, “cartão Luciano 3x”, e o valor: “R$ 8.190”.
O esquema, segundo a Polícia Federal, funcionava assim: o FNDE, órgão vinculado ao Ministério da Educação, destinava verbas a pequenos municípios alagoanos para a compra de kits de robótica. Os municípios, por sua vez, compravam kits superfaturados da Megalic, empresa pertencente a um aliado da família Lira. O dinheiro excedente que a Megalic faturava era repassado para empresas de fachada administradas por Pedro Magno, empresário de Brasília. A polícia flagrou Magno fazendo vários saques fracionados de dinheiro vivo em agências bancárias, e parte das cédulas sacadas por ele foram encontradas, mais tarde, na casa de Wanderson. Além disso, uma planilha apreendida com Magno registrava ao menos um pagamento de valor e data idênticos aos que foram anotados por Wanderson. Por esses motivos, a PF logo suspeitou que a agenda era, na verdade, um livro-caixa do esquema criminoso. E lá estavam as anotações sobre Lira.
Tanto a nota fiscal quanto a anotação feita por Wanderson estão no relatório que a Polícia Federal produziu em junho de 2023, detalhando o esquema. Parte de seu conteúdo foi noticiado pela imprensa, parte continuou inédita. A Folha, por exemplo, revelou uma lista encontrada com Luciano Cavalcante na qual constava a destinação de 4,5 mil reais para “revisão Hilux”, anotada ao lado do nome “Arthur”. A informação levantou suspeita, já que em 2022 a campanha de Lira havia usado uma picape Hilux, da Toyota. A piauí mostrou que, na agenda de Wanderson foi registrado um valor de 3,6 mil com “Hotel Emiliano = Arthur”. Quando vai a São Paulo, o presidente da Câmara costuma se hospedar no Hotel Emiliano, nos Jardins. A data daquela anotação – 17 de abril de 2023 – coincidia com o dia exato em que Lira havia embarcado num avião da FAB rumo a São Paulo.
Todos esses exemplos apontavam num sentido: o mesmo cofre que recebia dinheiro do esquema criminoso bancava despesas de Lira. Mas não havia, até agora, um comprovante de pagamento que confirmasse o que estava na agenda. A nota fiscal do terno é o primeiro. Indica que ao menos um dos valores anotados beneficiou, de fato, o deputado federal.
No ano passado, quando se deparou com o nome de Arthur Lira, a PF de Alagoas encaminhou o inquérito para Brasília, já que deputados têm direito a foro privilegiado. O caso foi para o Supremo Tribunal Federal. Em setembro, o ministro Gilmar Mendes arquivou o inquérito e, em seguida, mandou destruir as provas obtidas. Fez isso acatando a tese dos advogados de defesa, segundo a qual a investigação mirava, desde o começo, o presidente da Câmara, e por isso não poderia sequer ter começado na primeira instância (o ministro argumentou que a investigação teve início graças a reportagens da Folha de S.Paulo que citavam Lira e que, portanto, a necessidade do foro privilegiado sempre esteve clara). Os agentes da Polícia Federal negam que Lira fosse o alvo inicial do inquérito, mas ficou por isso mesmo: arquivada no Supremo, a investigação não foi para frente desde então.
A apuração, enquanto esteve em curso, revelou que Wanderson ajudava Luciano a gerenciar as despesas do presidente da Câmara. A PF suspeitou que o dinheiro usado por eles era oriundo, ao menos em parte, dos kits de robótica. Em 31 de maio do ano passado, Pedro Magno foi flagrado entrando num carro de propriedade de Wanderson (não foi possível identificar quem estava no volante), carregando uma bolsa azul. A polícia suspeita que, dentro dela, estavam maços de dinheiro. Isso porque, minutos antes do encontro, Magno havia sacado 45 mil reais em uma agência bancária na Asa Norte, em Brasília.
No dia seguinte, os policiais encontraram 150 mil reais em dinheiro vivo na casa de Wanderson, na Ceilândia. Eles compararam a numeração dessas cédulas com a das que haviam sido sacadas por Magno. Deu match: “das notas, 390 eram de R$ 100 e onze eram de R$ 50, totalizando R$ 39.550 que saíram do cofre da agência para as mãos de Pedro [Magno] e foram encontrados na posse de Wanderson [Jesus]”, informa o relatório da PF.
Magno, que foi preso temporariamente em junho do ano passado junto com sua mulher, Juliana Cristina, confessou à polícia ter atuado como operador financeiro de Luciano Cavalcante, braço direito de Arthur Lira, pagando despesas variadas. Quando o pagamento era em espécie, explicou o empresário, quem cuidava da intermediação era Wanderson. Em entrevista ao jornal O Globo, no ano passado, Wanderson confirmou que fazia pagamentos em espécie a diferentes pessoas, sob ordens de Luciano Cavalcante. O dinheiro que a polícia encontrou em sua casa, segundo ele, pertencia ao assessor de Lira.
Com pompa, a grife Ricardo Almeida inaugurou sua filial de Brasília em outubro de 2021. Segundo a empresa, trata-se de sua primeira “loja-conceito”. Ocupa uma casa de dois andares no Lago Sul, bairro mais luxuoso da capital, situado a poucos minutos da Praça dos Três Poderes. Um andar vende peças casuais; o outro, roupas sociais e sapatos. Há um bar à disposição dos clientes, que, caso queiram, podem se aconselhar com consultores de estilo e customização. Sofás de couro preto ocupam o salão, onde, conforme diz uma propaganda, valorizam-se “a precisão, a sofisticação e o cuidado com a arte de criar”.
A Ricardo Almeida conquistou a predileção de muitos políticos. Foi a ela que o marqueteiro Duda Mendonça recorreu, há mais de vinte anos, para repaginar o visual de Lula. Queria dar a ele um ar de seriedade e elegância. Uma reportagem da Folha de S.Paulo conta que em dezembro de 2002, a poucos dias de tomar posse como presidente da República pela primeira vez, o petista viajou a Brasília carregando consigo três paletós da alfaiataria.
O terno (na verdade, um costume, pois ternos são compostos também de colete, além de paletó e calça) adquirido em nome de Arthur Lira, na cor azul liso, faz parte de uma coleção fabricada em lã fria especial, com tecido térmico inteligente que não irrita a pele e se adapta tanto a ambientes frios quanto quentes. O dorso é forrado com estampas Paisley, design clássico usado comumente em gravatas e estofos. O deputado comprou o conjunto duas semanas depois da intentona golpista de 8 de janeiro e nove dias antes da eleição para a presidência da Câmara, que ele venceu com folga, abrindo caminho para seu segundo mandato.
A nota fiscal foi emitida pela Scarface Ind. e Com. de Confecções Ltda, empresa que administra a loja da Ricardo Almeida. O CPF usado na compra foi o de Wanderson de Jesus, o motorista. O endereço do comprador, que aparece na nota porque está registrado na Secretaria de Fazenda do Distrito Federal, é a casa onde ele mora, na Ceilândia. No campo “consumidor”, no entanto, o atendente digitou “Arthur Lira”. O documento continua válido até hoje e pode ser encontrado no site da Secretaria de Fazenda do Distrito Federal.
Depois de quase um ano engavetada, a investigação sobre os kits de robótica de Alagoas voltou ao noticiário na semana passada. O ministro Flávio Dino, do Supremo, encaminhou à Procuradoria-Geral da República uma lista de 21 processos que envolvem possíveis irregularidades na execução de emendas de relator (conhecidas no Congresso como RP 9). Entre eles, está o caso dos kits de robótica superfaturados. O despacho de Dino pode justificar a reabertura do inquérito, se assim decidir o procurador-geral, Paulo Gonet.
A piauí pediu esclarecimentos a Arthur Lira sobre a nota fiscal e a suspeita de que ele teve despesas custeadas com o dinheiro do esquema investigado pela PF. A assessoria do presidente da Câmara afirmou que ele não vai comentar o assunto. Wanderson de Jesus e Luciano Cavalcante também foram procurados pela piauí e não quiseram se manifestar.