Por Júlia Moa, do site Projeto Colabora
No início de agosto, um novo levante do fogo assolou o Pantanal sul-mato-grossense. Como previam os especialistas, o intenso período de estiagem, aliado aos 2.112 focos de calor registrados até o dia 10/08/2024, é motivo de séria atenção, afinal, o bioma está cada vez mais quente e seco. Em apenas seis dias, a média de queimadas de agosto inteiro foi superada, e milhares de árvores viraram cinzas, animais foram carbonizados e pastos naturais se transformaram em um gigante tapete preto. A chegada das chuvas auxiliou no combate às chamas, contudo há busca por focos subterrâneos, tornando o esforço hercúleo dos bombeiros e brigadistas na missão de controlar os incêndios.
São mais de 1,3 milhão de hectares queimados, área equivalente a 8 cidades de São Paulo, na maior planície alagada do planeta.
Se a biodiversidade pantaneira clama por socorro, imagine os moradores das comunidades tradicionais pantaneiras. Muitos brasileiros desconhecem que existe vida humana dentro da imensa natureza: homens, mulheres, crianças e idosos, centenas de descendentes de povos originários, quilombolas, bolivianos e paraguaios. Gente do Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS). De acordo com dados da ONG Ecoa, aproximadamente 500 famílias de pescadores e ribeirinhos vivem na região.
Dessa vez, assim como na catástrofe de 2020, que também foi causada por incêndios, o fogo chegou aos territórios, colocando novamente em risco a vida dos nativos. Há anos, a população pantaneira vive com a incerteza a respeito do futuro, já que os incêndios em curso terão consequências ambientais e sociais profundas.
“Hoje, debaixo da árvore, eu chorei vendo o incêndio. Quando eu tinha uns 10 anos, meu finado avô disse: ‘Você vai ver, o mundo vai acabar em fogo. O próprio homem irá destruir a nossa terra.’ E, com muita tristeza e dor no coração, é o que estou vendo”, recorda Zilda dos Santos em um vídeo produzido pelo Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração do Núcleo de Estudos do Fogo em Áreas Úmidas (PELD/NEFAU) da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). A paranaense está radicada há 25 anos na comunidade ribeirinha e Área de Proteção Ambiental (APA) Baía Negra, a primeira Unidade de Conservação (UC) de uso sustentável no Pantanal.
Ao todo, 26 famílias moram no povoado e se depararam com dias de muito medo ao presenciarem o fogo alto e a fumaça que adentraram as imediações.
A situação que provoca mal-estar e estresse emocional em Dona Zilda não começou agora. Ela relata que, no fatídico desastre de 2020, estava junto a Júlia González, importante líder comunitária falecida em 2022, e por pouco não sofreu um infarto. Na ocasião, ambas estavam cozinhando para os bombeiros, quando Zilda sentiu um aperto no peito e dificuldade para respirar. Com o rápido atendimento das enfermeiras presentes nas proximidades, seu quadro foi estabilizado. No entanto, os dias seguintes foram marcados por poucas horas de sono, cansaço e ansiedade, pois o barulho dos estalos do fogo consumindo a vegetação e se aproximando da residência —cujo teto era feito de palha— mantinha ela e os filhos em estado de alerta. Essas memórias visuais e auditivas traumáticas, ainda presentes em sua mente, retornaram com os incêndios desta temporada de agosto, que duraram cerca de uma semana.
“Sou pescadora, porém não me sustento com o peixe, que se tornou tão escasso desde que as baías pararam de encher há dois anos. Faço doces para vender na cidade e aumentar minha renda. É uma batalha diária, e se voltar a pegar fogo, temos consciência de que será de grande dimensão”, enfatiza. Ela acrescenta que, no primeiro bimestre de 2024, sua filha de 15 anos teve uma rotina entre casa e consultório médico devido a complicações respiratórias desencadeadas pela densa fumaça. “Acordei diversas vezes na madrugada com meus filhos apavorados, sentindo o calor do fogo e receosos de serem queimados. Sei o que é viver isso na pele e não desejo para ninguém; a culpa dessa devastação é do ser humano”, pontua.
Munida de um forte senso de que o território —que ela não abandona de jeito nenhum— precisa ser um bom lar para todos os seres vivos, inclusive seu amigo, o João de Barro “do brejo”, que a visita todas as manhãs com um som semelhante a uma gargalhada, a pescadora permanece atenta às bitucas de cigarro eventualmente jogadas no chão. Mesmo com as recorrentes problemáticas do fogo, a Brigada Comunitária local tem encontrado velas acesas nas estradas que atravessam a APA em seus 6 mil hectares. Além disso, a área possui assentamentos rurais e famílias envolvidas em ações conservacionistas.
Vale lembrar que este ano, segundo o BDQueimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 95% das ignições (início do fogo) ocorreram em especial nas margens de rios, beiras de estradas e em algumas fazendas. A minoria surgiu em parques estaduais de preservação e terras indígenas. Ou seja, não é um evento natural ocasionados por relâmpagos ou combustão espontânea; esse tipo de fogo representa aproximadamente 5% dos incêndios florestais no Pantanal. Trata-se de crime ambiental, uma violação das leis em virtude do impacto devastador sobre a biodiversidade e os ecossistemas.
Não se pode acreditar em uma resiliência enquanto o Pantanal não se recuperou totalmente dos incêndios de 2020 e enfrenta a pior estiagem dos últimos 70 anos. Estudos indicam que a diversidade das espécies de mamíferos e a abundância de animais caíram pela metade, em média, nos locais mais atingidos.
Rio acima, na remota Serra do Amolar, moradores da Barra do São Lourenço, alguns deles descendentes diretos de indígenas guató, encaram angústia semelhante. A presidente da Associação de Artesãs Renascer, Leonida Aires, conhecida por todos como Dona Eliane, gravou um vídeo pedindo ajuda para a sua comunidade de 23 famílias, devido aos prejuízos motivados pelos incêndios, que vieram predominantemente da Bolívia. “Foi desesperador; havia muita fumaça, calor, sentia dor nos olhos, sensação de estar gripada e falta de ar. As comunidades tradicionais pantaneiras estão precisando de apoio urgente. Se hoje está difícil trabalhar, como será no pós-fogo?”, questiona Eliane, insegura quanto ao futuro.
Eles necessitam de máscaras, soros e remédios para as crianças com problemas respiratórios e pedem apoio de todos que possam contribuir. Doações em PIX, de qualquer valor, são bem-vindas.
Mudanças sociais e a atuação feminina no Pantanal
Com as dúvidas pairando no ar, o turismo de base comunitária (TBC), atividade comum na Barra do São Lourenço, está ameaçado. A geógrafa e professora da UFMS, Mara Aline Ribeiro, observa em suas pesquisas e conversas com as mulheres pantaneiras uma preocupação crescente no que se refere às condições que elas defrontam para permanecer na região, mesmo possuindo suas residências, algumas em palafitas. A redução do turismo diminui a circulação de dinheiro, aumentando a vulnerabilidade das famílias ribeirinhas, que, na maioria das vezes, têm as mulheres como principais provedoras. São essas mulheres que trabalham nas pousadas, ranchos de pesca e na rede hoteleira do Pantanal, sendo responsáveis pela manutenção da comunidade e da vivência comunitária.
Nos últimos 30 anos de envolvimento e aprendizado no Pantanal, Mara Aline nota que a alteração mais significativa foi a redução drástica no volume de água, perceptível na rotina das/os pantaneiras/os e pesquisadoras/es que visitam a região periodicamente. Ela ressalta que, apesar das queimadas estarem em evidência nos últimos quatro anos, o Pantanal enfrenta esse obstáculo há muito tempo. Embora o olhar do poder público e da mídia seja recente, quem conhece a dinâmica local percebe uma diminuição na regularidade dos ciclos de cheias e vazantes, que são essenciais para a manutenção da fauna e flora das pessoas do Pantanal.
“Enquanto vocês estão lendo esta entrevista, o Pantanal está pegando fogo. Ele continua pegando fogo. E se eu falar com vocês daqui a um mês ou um ano, o Pantanal ainda estará em chamas”, adverte a docente.
Quanto às possíveis mudanças sociais, a professora afirma que o processo já iniciou, na forma de reorganização territorial. As pessoas estão migrando para cidades vizinhas, como Miranda, Aquidauana e Corumbá, em busca de emprego, o que está alterando a estrutura familiar do povo pantaneiro. “Essas mulheres não têm com quem deixar as crianças ou as pessoas idosas, e precisam sair das comunidades para trabalhar e alimentar suas famílias. Esse movimento tende a aumentar; muitas já se deslocam de uma comunidade para outra em busca de melhores condições salariais. Durante a piracema, quando a pesca é suspensa no Pantanal, várias mulheres vão para as cidades trabalhar, prevalentemente em serviços domésticos”, explica Mara Aline.
A pesquisadora discorre que a manutenção do Pantanal depende quase exclusivamente das pessoas que vivem e produzem na região, homens e mulheres que conhecem a dinâmica local. Essas pessoas estão distribuídas em comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, e hoje, mantêm o produto pantaneiro no mercado internacional, seja através do turismo, pesca ou pecuária. “Parafraseando um peão: ‘o Pantanal é para o pantaneiro’, e eu complemento que é, principalmente, para a mulher pantaneira que está presente em todas as atividades econômicas desenvolvidas na região, produzindo e reproduzindo saberes e práticas culturais. Elas estão à frente das brigadas apagando o fogo, cuidando do gado, pilotando os barcos para os turistas, além de cuidar das crianças e dos idosos. São as responsáveis pela manutenção do produto pantaneiro no mercado internacional”, defende Ribeiro.
Ameaças e possíveis soluções
A importância da permanência dos moradores nesse grande corredor biocultural e ambiental, conectando o Cerrado com a Amazônia, também é defendida pela articulação Agro é Fogo, que produz dossiês acerca dos direitos de seus povos e comunidades. Os documentos destacam o papel crucial das comunidades tradicionais e dos povos originários como verdadeiros guardiões da biodiversidade, da água e da vida que se reproduz nesse ambiente. Com o conhecimento ancestral do território onde vivem, preservam seus modos de vida ao longo de muitas gerações, permitindo a conservação e a multiplicação das espécies, além do manejo sustentável ao longo dos anos.
No que diz respeito às ameaças e prejuízos enfrentados por essa população, Isolete Wichinieski, agente da Comissão Pastoral da Terra, aponta que algumas comunidades ainda não têm garantido seu território, que é considerado sagrado, o que pode restringir seu acesso a políticas públicas. Os incêndios agravam as consequências que esses povos já lidam em razão da degradação ambiental e às mudanças climáticas, como rios assoreados, águas barrentas, escassez de água potável, desaparecimento de peixes e iscas (fontes de sobrevivência), questões graves de saúde, fome e ausência de políticas básicas.
Somam-se a isso as dificuldades de transporte e locomoção por conta do isolamento, com o barco sendo o único meio disponível, e a falta de estrutura para combater incêndios, que é alarmante. Os incêndios florestais também expuseram as precárias condições de assistência médico-hospitalar, com a ausência de atendimento médico regular e a falta de suporte psicológico, incluindo para casos de depressão. Em situações extremas, os ribeirinhos são forçados a enfrentar jornadas de mais de 8 horas de barco para buscar atendimento nas cidades.
Diante da intensificação dos conflitos envolvendo as comunidades ribeirinhas, Wichinieski estima ser imperativo que haja processos de reconhecimento e demarcação dos territórios. Essa é uma responsabilidade exclusiva do Estado, que deve garantir a viabilização, sustentação e valorização do uso dos territórios pelos ribeirinhos.
“A implementação de políticas públicas, mesmo quando encorajada por boas intenções institucionais, frequentemente resulta em imediatismos inconsequentes devido ao planejamento, logística e atuação em iniciativas sazonais de prestação de serviços de cidadania. Serviços de apoio jurídico, o Programa Povo das Águas, atendimentos eventuais e campanhas, por exemplo, deveriam ser realizados com mais regularidade e, acima de tudo, a partir de uma escuta, diálogo e planejamento conjunto com a comunidade ribeirinha afetada”, revela Isolete.
É prioritário garantir o acesso às políticas públicas específicas para as comunidades tradicionais pantaneiras que enfrentam invisibilidade. ONGs, universidades, a equipe do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) e as brigadas comunitárias tentam incansavelmente contornar esses entraves.
“Estamos cobrando do Governo Federal um plano de ação para os povos tradicionais impactados pelo fogo. Em junho de 2024, tivemos uma reunião interministerial no MS para debater o assunto e identificar, inicialmente, os mais atingidos. Temos relação direta com 11 comunidades – entre Cerrado e Pantanal – e contatamos outras para acompanhar as consequências vividas, transformando os relatos em um documento. Assim que o plano assistencial e o de atenção à saúde forem implementados, em resposta à crise hídrica e aos incêndios, as comunidades mais críticas serão atendidas”, garante André Luiz Siqueira, diretor da Ecoa, ao mencionar uma certa lentidão por parte da administração estadual no andamento das ações imediatas.
Boas Novas
Em nota, o governo de Mato Grosso do Sul informou que continua monitorando e combatendo o fogo no Pantanal. O cronograma para visitar a população ribeirinha começará no dia 25 de agosto, com planos para tornar essa iniciativa permanente. Serão distribuídas cestas básicas e água potável, e haverá atendimento médico às famílias afetadas. A missão contará com a participação de pediatras, cardiologistas, geriatras, pneumologistas, infectologistas e enfermeiros, e se estenderá até novembro nas regiões do Taquari, Alto e Baixo Pantanal.
Abordada, a prefeitura de Corumbá declarou que o Programa Social Povo das Águas ofereceu atendimentos de saúde, assistência, educação e distribuição de alimentos. Entre os dias 13 e 19 de agosto, atendeu as famílias residentes na região do Alto Pantanal; a ação foi coordenada pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania.
PIX PARA CONTRIBUIÇÃO:
CNPJ 23.168.572/000180 (Associação de Mulheres Artesãs da Comunidade Tradicional da Barra do São Lourenço) – descrever que se trata de ajuda para a comunidade.