10 de novembro de 2024 6:21 por Da Redação
Por Geraldo de Majella*
As caminhadas vão criando laços de camaradagem e amizades, com cumprimentos aos madrugadores que saem de casa com a “chave da praia”. Há os corredores — geralmente mais jovens —, e também a turma dos que contemplam a paisagem, caminhando num ritmo lento e constante.
No amanhecer dos sábados, quem caminha encontra novidades: os últimos farristas, que resistem em parar, bêbados falando alto, cantando desafinados; e, se der sorte, casais namorando entre as árvores. Os garçons, como sentinelas, esperam os clientes tomarem a saideira para pagar a conta e fecharem os botequins.
Os personagens vão surgindo ao longo das quadras: são empregadas domésticas conversando nos bancos, acompanhadas dos cachorros das madames, motoristas esperando os patrões, e vendedores de pastel, refresco e café, todos em plena atividade.
Entre esses personagens que compõem a paisagem da avenida Amélia Rosa, o mais excêntrico é José, que há vários anos vive entre o canteiro central e a marquise do restaurante em frente.
Seus pertences estão organizados em caixas de papelão: uma com roupas, outra com calçados, uma terceira para guardar quentinhas com comida. Ele não descuida dos recipientes de água para se manter hidratado. É, na essência, um perfeccionista.
O varal, armado entre as árvores, de um lado exibe roupas lavadas; do outro, estão os panos que ele usa para limpar os carros estacionados na avenida. José os lava com esmero e mantém a área impecável, não deixando acumular lixo por perto.
José fala sozinho, e eu reduzo os passos para ouvir. Escuto-o reclamando dos fregueses que jogam lixo no chão e do barulho da noite anterior.
Demoro-me alguns poucos minutos conversando com ele, sempre com cuidado para não interromper o que está fazendo. O cumprimento é obrigatório.
— Bom dia, irmão.
— Bom dia, responde em voz alta.
— Como vai, tudo bem?
— Tudo bem, como Deus quer e consente.
A temperatura é assunto recorrente em nossos breves diálogos matinais; não me demoro e sigo a caminhada.
Durante a pandemia de coronavírus, eu caminhava assombrado pela ameaça da morte. Certa vez, encontrei José travando uma batalha campal com outro homem, atirando pedras um no outro.
Diante do conflito, me encostei em uma árvore para me proteger de uma pedrada.
— Você é um doido, filho da puta, bradava José.
— Doido é você, que dorme na rua, retrucava o oponente.
Enquanto cada um procurava mais pedras para continuar a guerra, eu observava tudo, protegido. Até que o antagonista de José bateu em retirada, para sua satisfação.
Aproximei-me e perguntei:
— Meu irmão, quem é esse cara?
— É um doido que quer invadir minha área, respondeu.
Desejei-lhe um bom dia e segui a caminhada, decidindo prudentemente não esticar a conversa.
José é um dos meus “doidos” preferidos, por ser aguerrido na defesa de seu território e organizado na sua vida pessoal.
*É historiador e jornalista
3 Comentários
Creio que uma justa homenagem. José deve ser quem menos possue poder ofensivo para a nata que o rejeita.
Arretado! Uma homenagem justa e necessária aos sofridos moradores de rua, que resistem bravamente às adversidades.”
Arretado! Uma homenagem justa e necessária aos sofridos moradores de rua, que resistem bravamente às adversidades.