por Katya Braghini, do Outras Palavras
A privatização do ensino público já está dada no estado de São Paulo. Há uma pergunta no ar: como toda a gente que já foi estudante e dependente do ensino público não está revoltada nas ruas para defender um patrimônio que um dia foi seu? Para defender um legado que, sendo público, está dilapidado às novas gerações? Como é possível que as ruas não estejam repletas de gente ofendida pela perda de um legado público? Perdemos a dimensão do significado disso? Renato Feder com os seus brados “Vamos privatizar tudo!” tem sido, esteticamente, a cena mais aceitável. Mas isto é uma conversa mais abrangente.
Na semana passada o Consórcio Novas Escolas Oeste-SP venceu o lote do leilão da Parceira Pública Privada de Novas Escolas (PPP) realizado na bolsa de valores de São Paulo. O valor oferecido foi bilionário: R$ R$ 11.989.753,71. O grupo que ganhou o repasse foi a Engeform. Esta empresa é sócia da Consolare, grupo que administra sete cemitérios na capital paulista e que tem sido alvo de muitas críticas dentre os cidadãos porque, além do aumento abusivo dos serviços funerários, tem sido apontada como péssima prestadora de serviço. Há quem diga “privatiza que melhora!”. Esta cantilena mentirosa vai nos levar ao pior: fornecimento de eletricidade inseguro, água sem saneamento, escola guardada por consórcios privados etc. Estados nacionais e cidades já reverteram processos de privatização completos; precisamente porque uma empresa não está estrutural nem ideologicamente pensada, muito menos materialmente articulada para prestar um bom serviço público. Empresas são a concretização entre pessoas e tecnologias unidas para buscar o lucro. Entendam! Quem busca lucro não sabe nem quer saber de prestar contas ao mundo público, não tem responsabilidade para com ele.
Além disso, se uma empresa lida mal com famílias que perderam seus entes queridos, de maneira usurária e desrespeitosa, estaria preocupada com seres vivos dentro de escolas? Honestamente, isso é um ato falho gigantesco: a escola é o lugar onde a civilização procura erigir um cidadão, lúcido, ético. Quem lida mal com a dor do outro no momento da morte tem competência para educar crianças? Como é possível que isso dê certo como gerência de escolas? Uma empresa mal cuida de cemitérios. É para matar o ensino público.
Segundo o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, as concessões colaboram com os diretores de escola porque os desobriga de cuidar da manutenção predial, porque quem passará a cuidar dessa infraestrutura será o setor privado. Isso é uma mentira! Um diretor é um oficial do Estado para observar e zelar da escola que ele dirige como um todo, mas a manutenção da escola é problema do Estado, que tem responsabilidade para com a coisa pública, estruturada. Portanto, este governo, quer apenas se desresponsabilizar de seu trabalho e retirar da escola o seu caráter estatal de modo a, juridicamente, passar a administração de escolas às empresas. Mais do que isso, quer fazer a transposição de dinheiro público às mãos do setor privado.
O secretário de Educação de São Paulo, Renato Feder, disse que transferir as escolas para este tipo de parceria é proporcionar “escola de qualidade educacional e aprendizagem”. Disse ainda durante o leilão que “construímos a parte pedagógica e agora temos a área privada nos ajudando na manutenção, na parte predial, na alimentação, nos laboratórios”. Isso não está correto. Porque não houve melhoria na parte pedagógica. O que está acontecendo na rede estadual de ensino é uma grande abertura de ranqueamento pelo uso de uma tecnologia chamada “Super Business Inteligence – Super BI”, institucionalizada pelo próprio Renato Feder, como serviço de vigilância da rede de ensino, à maneira como foi estruturado no estado do Paraná, quando ele foi o secretário da pasta naquele estado. Trata-se de uma tecnologia de ranqueamento de escolas, criando zonas de segregação, ditas “melhores” e “piores”, a partir de critérios obtusos de cumprimento de tarefas que, registradas na máquina, criam escalas de rendimento. Ela parece administrar a escola, mas, ao modelo da “teoria da escolha pública” de James Buchanan, existe para gerar interferência do mundo privado em processos públicos, indicando as escolas ranqueadas de modo a dar percepção territorial do que é vantajoso à venda nos leilões. Escolas são separadas entre “melhores e piores” para fomentar a presença privada no bem público. Isto é, estamos falando de uma máquina que faz a gerência de um processo que não está pensando em educação, está pensando em gerenciamento de vantagens econômicas.
Este governo diz que pensando em dar mais tempo aos professores e diretores para o trabalho com o ensino, dispensam-nos de “questões administrativas”. Isso é verdade. Pois as questões administrativas se tornaram o cerne do processo, já que no quesito “educação”, a rede estadual pública está desestabilizada por ter que trabalhar sob a gerência do Super BI. Os malefícios estão correndo por toda a rede, verdadeiramente adoecendo os docentes e os diretores de escolas. O Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado (Apeoesp) sabe disto. Podia inaugurar um “doentrômetro” na porta de sua sede, para mostrar à sociedade o compadecimento, a tristeza, a medicalização dos trabalhadores da escola diante de suas perdas. As perdas curriculares dos professores de história, de geografia, por exemplo, que por uma resolução de Renato Feder, perderam parte dos seus salários, do seu trabalho. Falamos de seres humanos, com famílias, com contas a pagar.
A Super BI é tida como “de ponta” para maximizar a coleta, análise e utilização de dados empresariais. Ela faz integração de dados, tem sensores IoT que visam coletar informações do ambiente para o fomento, neste caso, em primeiro lugar, de mecanismos de controle. A palavra que mais repetem nos documentos é que este tipo de administração “otimiza” os processos gerenciais. Mas, o que significa essa palavra no mundo empresarial? O que está sendo forçadamente transportado ao mundo escolar sem a menor crítica? Isto significa o ajustamento de processos para alcançar “eficiência” e “eficácia”. Como? Com a implementação de tecnologias agregadas, à força, às práticas escolares para gerar “produtividade”. Para quê? Para fazer análise de dados e buscar “competitividade”. Dados de quem? Fornecidos pelos próprios alunos, professores, diretores para que esta tal “tecnologia de ponta” continue a produzir materiais pré-moldados por Big Techs, para, ao final, alimentar a sua própria reprodução. Digamos que esta tecnologia é o equivalente ao tear mecânico de Cartwright que, dizendo-se revolucionária, escravizou trabalhadores por exploração extrema. Isto é, não houve melhoria pedagógica; o que houve foi a abdução do trabalho docente, discente, diretivo para alimentar dados de uma máquina. Esta que, aliás, fomenta uma nova forma de mais-valia, o uso irrestrito de dados produzidos na e pela escola, para gerar o capital de todos os agentes privados envolvidos.
Portanto, a frase do governador dizendo que objetivo é “unicamente liberar professores e diretores de tarefas burocráticas, permitindo maior dedicação às questões pedagógicas” é ofensiva. Pois vamos lembrar duas coisas para além do já dito. Primeiro que, segundo o Censo da Educação Básica (2023), 57% dos professores da rede estadual de São Paulo não são concursados. O grau de precariedade dos contratos é grande, mas, mais do que isso, a instabilidade de seus empregos determina o grau de mobilização que é possível neste grupo. Sendo contratado, passa a ter medo de manifestos. Segundo, no caso do estado do Paraná, professores que não seguem a cartilha das concessionárias, são simplesmente despedidos, precisamente porque não são concursados. As concessionárias assumem a escola e despedem os professores. O que tem de público nisto? A promessa de não interferência na parte pedagógica da escola cai por terra.
Finalmente temos que nos perguntar: empresas entram em leilão na bolsa de valores de São Paulo para “colaborar” com o bem público? E quando eles vendem e compram escolas, estamos falando de quê? De um espaço abstrato, como são as finanças que vão e vêm? Sim, é isso mesmo o que está acontecendo. A escola, na cabeça desse grupo, é uma mercadoria do capitalismo financeiro: um ativo que pode ser negociado, especulado. Eles não estão mentindo quando tratam a escola como uma moeda em trânsito. Mas não se enganem: uma escola só existe porque há alunos e professores, gente que ama, que sente, que se alimenta, somos imprecisos, utópicos, sonhadores. O Super BI nunca captará isso nos seus processos. Despreza o seu melhor lado. Economicistas não estão preocupados e ocupados com a humanidade, mas por dinheiro. Mas, nós sabemos que, quando se leiloa uma escola, o que está sendo vendido é gente. Somos nós.