Por Lauro Veiga Filho, do Jornal GGN
O pacote de “ajuste fiscal” anunciado pela equipe econômica na semana que passou foi recebido acidamente por setores do mercado financeiro, o que inclui agentes de investimento, consultores, analistas e comentaristas, assim como por certo tipo de jornalismo retrógrado que graça na imprensa corporativa, numa versão até transigente. Ingênuos ou levianos, irresponsáveis ou diabolicamente conspiradores, os porta-vozes do mercado financeiro e seus seguidores na autodenominada “grande imprensa” apressaram-se a decretar o final dos tempos, com falência do Estado por excesso de dívidas e “gastança” generalizada, assim como escalada obrigatória dos juros para conter as pressões inflacionárias inevitavelmente decorrentes da disparada do dólar.
Trata-se de já conhecida e manjada “profecia autorrealizável”, com o objetivo nefasto de desestabilizar a economia e obrigar a equipe econômica a engolir a seco a agenda da “esquadrilha austericida”. Diante da frustração de seus planos, centrados no desmonte do Estado e na geração de negócios muito especiais para poucos, o mercado acionou uma de suas armas preferidas, a saber, a desabrida manipulação do mercado do dólar, como forma de criar pressões domésticas sobre os preços e sacramentar a necessidade de uma reação do Banco Central (BC), invariavelmente centrada na elevação da taxa básica de juros.
A especulação, realizada a partir de transações no mercado futuro, tem corrido solta desde meados de outubro no mercado do dólar, com a desvalorização daí decorrente da moeda brasileira, em movimentos que não guardam a menor relação com o mundo real – mas afetam diretamente os preços de bens negociados pelo País lá fora, assim como matérias-primas, insumos e produtos finais importados, gerando inflação aqui dentro.
Em setembro, por exemplo, o fluxo do câmbio contratado por operadores do setor financeiro, exportadores e importadores de bens e mercadorias mostrou a saída de US$ 3,983 bilhões, já descontados os dólares que entraram no País em igual período. Mas a cotação do dólar em relação ao real, nos dados do BC, registrou baixa de 3,68%, caindo de R$ 5,66 no final de agosto para R$ 5,45 no encerramento do mês seguinte. Ao longo de outubro, os sinais mudaram. Em termos líquidos, já descontadas as saídas de dólares, o Brasil registrou a entrada de quase US$ 2,790 bilhões. Ainda assim, o “preço” do dólar subiu 6,06%, para R$ 5,78.
E sobram dólares
Até 22 de novembro, dado mais recente do BC, em torno de US$ 1,440 bilhão haviam saído do País, nada comparável com o que havia ocorrido em setembro, por exemplo, quando o dólar chegou mesmo a cair como já registrado. Até ali, a moeda norte-americana havia anotado variação de 0,59% frente ao final de outubro, atingindo R$ 5,81, mas saltou para R$ 6,05 na sexta-feira, dia 29, na média das transações apuradas pelo BC, fechando ontem em torno de R$ 6,06, em alta de 4,32% em dez dias. Desde o final de setembro, a cotação do dólar acumulou elevação de 11,29% – embora o País tenha registrado a entrada líquida de praticamente US$ 1,350 bilhão (considerando o dado mais recente do BC, relativo a 22 de novembro). Claramente, a disparada ocorre a despeito de “sobrarem” dólares aqui dentro, especialmente quando se considera o tamanho das reservas internacionais, próximas de US$ 362,199 bilhões ao final de novembro.
Ah, dirão os críticos mais azedos, as reservas vêm caindo, o que poderia dar alguma credibilidade aos movimentos meramente especulativos no mercado do dólar. Como em toda manobra articulada por especuladores, há um fundinho de verdade ali. De fato, as reservas haviam sofrido redução de 3,24% entre 27 de setembro, quando bateram em US$ 372,123 bilhões, e 18 de novembro deste ano, caindo para US$ 360,049 bilhões – uma “perda” de US$ 12,074 bilhões. Nos 11 dias seguintes, no entanto, até 29 de novembro, houve um “ganho” de US$ 2,954 bilhões (variação de 0,82%), o que elevou as reservas para US$ 363,003 bilhões. Comparada com os níveis observados na mesma data do ano passado, quando o País havia registrado US$ 349,064 bilhões em suas reservas internacionais, houve um aumento de 4,0%, significando um acréscimo de US$ 13,939 bilhões.
A crise fantasiosa
Em outra vertente, uma parte central nas críticas endereçadas ao governo e à proposta de “ajuste” fiscal, na verdade, não se sustenta. Críticos e analistas têm fomentado uma visão propositadamente distorcida em relação ao desempenho recente das contas no setor público, buscando fabricar um clima de descontrole e “crise fiscal” inexistente ou fantasiosa.
Segundo aquelas versões, a dívida bruta do setor público cresceu e tenderia a manter-se em elevação ao longo dos próximos anos porque o governo tem se recusado a cortar despesas, gerando déficits e frustrando sua equipe econômica. Por consequência dessa suposta “gastança”, a inflação tem subido, o que deveria obrigar o BC a aumentar ainda mais os juros, arrochando famílias e empresas, derrubando investimentos e paralisando a atividade econômica.
Aqui também a verdade ocupa um espaço mínimo. A política de juros, na verdade, tem sido o grande fator de desequilíbrio fiscal, fazendo a dívida crescer de forma mais acelerada. Os dados estão disponíveis no site do BC a quem se dispuser a consultá-los. Entre outubro de 2022 e o mesmo mês deste ano, a dívida bruta do governo geral, incluindo todas as instâncias do setor público, cresceu 23,76% em termos nominais, subindo de R$ 7,298 trilhões para R$ 9,032 trilhões em valores aproximados. Na comparação com o PIB, a dívida avançou de 73,71% para 78,64% (quer dizer, 4,93 pontos a mais, embora alguns críticos venham insistindo que a dívida já teria aumentado em 12 pontos percentuais em “menos de um ano”).
Naquela comparação, houve um incremento de R$ 1,734 trilhão no endividamento do governo geral, embora no mesmo período o governo tenha “recomprado” em torno de R$ 12,943 bilhões em títulos de sua dívida negociados no mercado. O que pesou mais então? O pagamento de R$ 1,677 trilhão em juros ao longo daqueles 24 meses, significando 96,74% do aumento sofrido pelo saldo da dívida pública bruta. Num exercício que ajuda a desacreditar a ofensiva da “esquadrilha austericida”, o corte de um terço dos juros, algo como R$ 553,541 bilhões (perto de 4,82% do PIB estimado pelo BC para os 12 meses terminados em outubro deste ano), teria limitado o tamanho da dívida em R$ 8,478 trilhões, perto de 73,82% do PIB – quer dizer, praticamente a mesma relação observada em 2022. Sem a necessidade de mexer em políticas sociais.
Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.