quarta-feira 1 de janeiro de 2025

Num País de desmemoriados, avança manobra para desestabilizar economia

Setores do mercado, com a ajuda de uma imprensa providencialmente “colaborativa”, têm se dedicado a manipular dados da realidade
Ilustración de Aykut-Aydogdu

Por Lauro Veiga Filho, no Jornal GGN

O Brasil atravessou momentos dramáticos na área econômica justamente por não dispor de dólares para fazer frente a despesas e honrar compromissos externos, essenciais ao funcionamento de sua economia, nas décadas de 1980 e 1990. A sucessão de crises cambiais naquele período foi um dos fatores centrais a explicar a inflação crônica, na faixa dos dois dígitos ao mês, com impactos destrutivos sobre as famílias e para as empresas, limitando drasticamente as possibilidades de crescimento. Sempre que a economia conseguia engrenar, a falta de dólares, até mesmo para pagar as importações de petróleo, por exemplo, paralisava o País, numa situação que terminou levando à decretação da moratória da dívida externa no começo dos anos 1980 e novamente em meados da década seguinte.

Como parte da atual ofensiva articulada pela “esquadrilha austericida” e pela grande mídia corporativa, o noticiário econômico, análises e editoriais parecem ressuscitar aqueles tempos, de descontrole inflacionário, desta vez supostamente motivado pela “gastança” dos governos – ainda que sobrem dólares no País, o déficit primário (que não considera as despesas com juros) esteja em baixa e a inflação mantenha-se bem-comportada. Numa clara forçada de mão, a chamada “grande” imprensa, seus articulistas e comentaristas, alinhados a correntes mais nefastas do setor financeiro, têm insistido num cenário de derrocada, com avanço inescapável e descontrolado das taxas de inflação.

Como já anotado aqui, há uma evidente dissonância entre aquele tipo de análise e o mundo real, numa “desancoragem” proposital em relação aos dados oferecidos pela realidade. No caso da inflação, a taxa de 4,87% acumulada em 12 meses até novembro, ligeiramente acima do teto da meta (4,50%), foi recebida com tons alarmantes pelo noticiário fomentado pela “esquadrilha”, com o propósito mesmo de gerar comoção e manipular as decisões de política econômica em benefício de setores já privilegiados.

Num país de memória curta, deve-se recordar que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), havia atingido um pico de 12,13% nos 12 meses finalizados em abril de 2022 para fechar 2023 com elevação de 4,62%. A “escalada” atual, com o índice aproximando-se de 4,87%, corresponde a um acréscimo de 0,25 pontos percentuais – o que motivou uma elevação dos juros básicos em 1,75 pontos entre setembro e dezembro, com o Banco Central (BC) já antecipando mais dois pontos percentuais de alta até março do próximo ano, o que levaria os juros para insustentáveis 14,25% ao ano, algo como 9,3% ao ano em termos reais, descontada a inflação projetada em 4,5% para 2025. O cenário na área dos preços sequer poderia ser comparado ao que se teve no País no começo de 1990, por exemplo, quando a taxa mensal (isso mesmo, mensal) havia escalado para nada menos do que 82,39% em março, acumulando incríveis 437,02% em três meses e 6.390,53% em 12 meses.

Mais claramente, o custo médio dos produtos consumidos pelas famílias havia sido multiplicado praticamente 64 vezes em apenas um ano – como se algo que tivesse custado um real em março de 1989 tivesse seu preço remarcado para R$ 64 apenas um ano mais tarde, com remarcações de preços a cada hora nas prateleiras. Atualmente, com toda certeza, não é este o cenário constatado em seu dia-a-dia pelo consumidor nos supermercados.

Um pouco mais de memória. No mês do lançamento do Plano Real, em junho de 1994, a inflação mensal aferida pelo IPCA havia batido em 47,43%, quer dizer, praticamente 10 vezes mais a taxa inflacionária acumulada em 12 meses até novembro deste ano. No segundo trimestre daquele mesmo ano, a inflação havia acumulado elevação de 202,97% e saltou ainda impressionantes 4.922,60% nos 12 meses finalizados em junho, três décadas atrás.

Falsa sensação de caos

Setores do mercado, com a ajuda de uma imprensa providencialmente “colaborativa”, têm se dedicado a manipular dados da realidade para criar a sensação de caos iminente e, por isso, as manchetes e editoriais escondem a real situação das contas no setor público, que tem desmentido as projeções mais catastróficas, além de reafirmar a despesa com juros como grande fator de desequilíbrio fiscal, agravando ainda mais as distorções na economia.

Em sua projeção mais recente, liberada na semana passada, a Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado e que tem se aproximado mais do pensamento econômico mais conservador, aponta que a despesa primária do governo central, incluindo gastos do Tesouro Nacional, da Previdência e do BC, deverá experimentar neste ano uma variação de 3,47% em valores não atualizados, ou seja, abaixo da taxa inflacionária esperada para este ano, próxima de 4,9%.

Descontado o gasto com juros, a despesa primária naquela área deverá saiu de alguma coisa abaixo de R$ 2,130 trilhões para R$ 2,204 trilhões, num acréscimo de R$ 74,0 bilhões em grandes números. Em comparação com o Produto Interno Bruto (PIB), no entanto, deverá haver uma queda (isso mesmo, queda), com a relação saindo de 19,5% no ano passado para algo mais próximo de 18,7% neste ano. Mais claramente, a tal “gastança” tende a se resumir a um corte de 0,8 pontos sobre o PIB estimado pela IFI para este ano. O dado é a negação da “gastança”, na verdade concentrada em outra área, propositadamente “esquecida” por analistas e grande imprensa.

O déficit primário, ou seja, a diferença entre receitas e despesas, excluídas aquelas de caráter financeiro, a exemplo dos juros, deve literalmente despencar de R$ 230,5 bilhões para R$ 49,3 bilhões na previsão da IFI. Espera-se, portanto, não um “descontrole fiscal”, mas uma redução de R$ 181,2 bilhões no rombo, correspondendo a uma queda nominal de 78,61% na comparação entre os dois exercícios. Seria um dado a ser comemorado, não estivesse a imprensa completamente obliterada por sua campanha para desestabilizar a economia e sua gestão.

A verdadeira “gastança”

Ao contrário do que tentam fazer crer parte do mercado e a imprensa corporativa, as despesas com saúde, educação, aposentados, pensionistas e milhões de famílias de baixa renda não representam ameaça real à estabilidade fiscal. Na verdade, o “choque” de juros iniciado pelo BC e a ser reforçado nos próximos meses, salvo mudanças inesperadas de rumo, tende a agravar o endividamento do setor público.

Os gastos com juros atingiram R$ 773,036 bilhões nos 12 meses encerrados em outubro deste ano, apenas na área do governo central, representando crescimento de 25,79% em relação aos valores acumulados no ano passado, na faixa de R$ 614,548 bilhões – uma alta de R$ 158,488 bilhões, duas vezes maior do que a elevação projetada para as despesas primárias. Como proporção do PIB, o gasto com juros deve subir de 5,66% para 6,73%. A gastança tem nome e endereço, portanto. Para a “esquadrilha austericida”, no entanto, os juros sobem porque não há controle da “gastança”, o que produz déficits e mais dívida. O raciocínio parece desconsiderar a lógica dos dados, que mostram outro cenário, com a dívida sendo puxada pela imposição à economia brasileira dos juros reais mais elevados no planeta.

Os dados divulgados na quinta-feira, 26, pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) anotam um avanço de 9,48% para o saldo da dívida pública mobiliária interna, expressa em títulos emitidos pelo próprio Tesouro, entre dezembro do ano passado e novembro deste ano. O estoque daquela dívida saiu de R$ 6,269 trilhões para R$ 6,863 trilhões, num acréscimo de R$ 594,479 bilhões. Ao longo desse período, no entanto, o Tesouro resgatou, quer dizer, comprou de volta, liquidamente, em torno de R$ 18,675 bilhões.

Teoricamente, tudo o mais constante, como gostam os economistas, o saldo da dívida deveria ter recuado em valor equivalente, já que o governo “pagou” para resgatar uma parcela dos títulos que formam a dívida mobiliária. No entanto, o aumento da dívida esteve concentrado precisamente nos juros apropriados pelo saldo da dívida mobiliária interna, que somaram R$ 613,836 bilhões nos 11 primeiros meses deste ano, o que explica todo o crescimento da dívida, com alguma sobra. O custo médio dessa dívida elevou-se de 10,50% ao ano em novembro do ano passado para 11,64% no mesmo mês deste ano, embora o custo médio da “ dívida nova” emitida pelo Tesouro tenha recuado de 11,68% para 10,86% em igual período.

Front externo

Na área externa, embora tenham sofrido baixa para US$ 339,112 bilhões até o dia 23 deste mês, as reservas internacionais ainda representam praticamente 2,6 vezes mais toda a despesa do País com pagamento de juros e amortizações sobre sua dívida externa, num compromisso estimado para este ano em US$ 131,178 bilhões. Mais claramente, a escalada do dólar deveu-se muito mais a movimentos especulativos no mercado. Há sobra de dólares no Brasil.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

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