segunda-feira 25 de novembro de 2024

Ações na justiça buscam retaliar jornalistas que reportaram abusos em audiência sobre caso de estupro

Em ações, profissionais de imprensa citados são qualificados como: “franco atiradores travestidos de jornalistas”

23 de dezembro de 2020 1:42 por Da Redação

Do portal Repórteres sem Fronteiras

A jornalista Schirlei Alves e os veículos de imprensa The Intercept Brasil e ND+ são alvos de dois processos em curso na justiça catarinense pelas reportagens publicadas sobre o julgamento do caso Mariana Ferrer, que ganhou ampla repercussão nacional no começo de novembro de 2020. Em ambas as ações judiciais, os profissionais de imprensa citados são qualificados como: “franco atiradores travestidos de jornalistas”. A Repórteres sem Fronteiras (RSF) denuncia uma flagrante retaliação ao trabalho jornalístico, que ameaça a liberdade de imprensa.

No dia 2 de novembro de 2020, o The Intercept Brasil publicou uma reportagem assinada pela jornalista Schirlei Alves que trouxe à tona abusos no julgamento do caso da influencer Mariana Ferrer. O julgamento terminou com a absolvição do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estupro com base em uma investigação da polícia civil de Santa Catarina. Tais abusos já haviam sido revelados em reportagem publicada pela mesma jornalista semanas antes no site notícias ND+ e ganharam ampla repercussão nacional pela virulência da postura do advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho contra Mariana durante uma das audiências de instrução.

O promotor Thiago Carriço de Oliveira e o juiz Rudson Marcos, que atuaram no caso, moveram, cada um, um processo contra a jornalista Schirlei Alves e os veículos de imprensa The Intercept Brasil e o ND+, nos quais pedem a retirada das reportagens do ar com antecipação de tutela e indenizações exorbitantes por danos morais de R$ 300 mil e R$ 450 mil, respectivamente. Tanto Marcos quanto Oliveira argumentam que a forma em que a notícia foi veiculada não reflete a realidade e que teria causado danos à reputação e à honra. Após a repercussão, as corregedorias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) abriram processos para apurar a conduta de ambos no caso.

Acusação

Na ação, a advogada que representa o juiz Rudson Marcos (a mesma que representa o promotor Thiago Carriço na outra ação) afirma que os veículos teriam criado uma notícia falsa propositalmente, com o objetivo de desmoralizar o poder judiciário. “O que se pode ver com ataques desta natureza promovidos e impulsionados por estes veículos são, na verdade, ataques direcionados ao judiciário, com a clara finalidade de desmoralizar a instituição”, colocou a advogada. Ao longo da ação, movida pelo juiz Rudson Marcos, o termo “fake news” aparece 60 vezes. O processo qualifica ainda os repórteres do The Intercept Brasil como “franco atiradores travestidos de jornalistas”.

Na última sexta-feira, 11 de dezembro de 2020, a juíza Cleni Serly Rauen Vieira, da 3ª Vara Cível de Florianópolis, ordenou em decisão liminar que as reportagens fossem retificadas para esclarecer que o promotor Thiago Carriço de Oliveira não usou a expressão “estupro culposo”. As reportagens, segundo a decisão, também devem apontar que o membro do Ministério Público fez intervenções durante o interrogatório de Mariana. Se a ordem não for cumprida, o The Intercept Brasil terá que pagar multa diária de R$ 1 mil, e Schirlei, de R$ 200.

“Não cabe ao poder judiciário corrigir a imprensa, impondo judicialmente edições de textos jornalísticos. Essa decisão, ainda que liminar, cria um precedente perigoso para a liberdade de imprensa”, declarou Emmanuel Colombié, diretor regional para a RSF na América Latina. “Os processos movidos nesse caso constituem uma flagrante retaliação aos jornalistas e veículos de imprensa envolvidos. Ao documentar e revelar informações sobre os bastidores de um caso emblemático do calvário atravessado por mulheres que sobrevivem a violências sexuais e que denunciam essas violências no Brasil, a jornalista e os veículos acusados nos processos mobilizam um tema de grande interesse público, cumprindo com a sua missão de informar a sociedade.”

Intimidação

Processos judiciais como estes têm sido ferramentas recorrentes para intimidar jornalistas e meios de comunicação no Brasil. Em 2016, por exemplo, dezenas de magistrados do estado do Paraná entraram com ações individuais contra jornalistas e profissionais do Jornal Gazeta do Povo logo após a publicação de uma reportagem sobre os altos salários do judiciário no estado. Vale ressaltar que pelo cargo que ocupam, autoridades públicas estão sujeitas a um maior escrutínio da sociedade e da imprensa.

O Brasil se encontra na 107a posição, entre 180 países, no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2020 elaborado pela Repórteres sem Fronteiras.

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