sexta-feira 22 de novembro de 2024

Por que procurar refúgio nos livros quando a realidade parece insuportável?

Os leitores vorazes sabem bem que as bibliotecas e as livrarias são uma panaceia eficaz à alma, como já se afirmava na Antiguidade.

13 de junho de 2021 9:32 por Revista Prosa e Arte

 

 

A biblioterapia pode ser um porto seguro, um alívio para nossa alma e um antídoto contra as adversidades
– por Marta Rebón*

Foi abandonado, o mundo já não é maravilhoso. Como em um jet lag permanente, não consegue se conectar com a realidade que o envolve. Freud dizia que as palavras e a magia foram no princípio a mesma coisa. É por isso que continuamos procurando refúgio nos livros quando a vida nos prega uma brincadeira estúpida? Você, passageiro em momentos ruins, abre um romance e em suas páginas encontra algo parecido a um bote salva-vidas, um alívio balsâmico ao desassossego.

 

Os leitores vorazes sabem bem que as bibliotecas e as livrarias são uma panaceia eficaz à alma, como já se afirmava na Antiguidade. A ficção e a poesia, afirma a romancista Jeanette Winterson, são remédios que curam a ruptura que a realidade provoca em nossa imaginação. Como diz a máxima horaciana dulce et utile, nos ensinam prazerosamente. O eco das palavras, seu ritmo, e as imagens com uma grande carga emocional inundam e ativam os recônditos de nossa consciência. Quando lemos um texto literário inteligente e sedutor, o mundo se torna mais habitável.

 

Entre os benefícios de se ler ficção, o primeiro, por mais óbvio que pareça, é chegar a nos conhecer melhor. Proust, a quem hoje poucos negarão sua aptidão à ciência cognitiva, afirmava que cada leitor, quando lê, é o próprio leitor de si mesmo. Acrescentava que a obra do escritor não é mais do que uma espécie de instrumento ótico que este oferece ao outro para permitir-lhe discernir o que, sem esse livro, não seria capaz de ver por si mesmo. Entrar no universo dos romances é viver múltiplas vidas. Com um livro nas mãos se abre diante de nós um terreno para a experimentação de inúmeras circunstâncias. A biblioterapia é possível graças ao choque de identificação que se produz no leitor quando se vê refletido na história. Sentimos empatia por outras pessoas, outras formas de pensar. A leitura, além disso, é uma aventura intelectual trepidante. Para o Nobel de Literatura André Gide, ler um escritor não é só ter uma ideia do que ele diz, mas viajar com ele.

 

Ler nos coloca em um espaço intermediário: ao mesmo tempo em que deixamos em suspenso nosso eu, nos conecta com nossa essência mais íntima, um bem valioso para se manter certo equilíbrio nesses tempos de distração. A leitura, dizia María Zambrano, nos brinda com um silêncio que é um antídoto ao barulho que nos rodeia. Ela nos procura um estado prazeroso semelhante ao da meditação e nos traz os mesmos benefícios que o relaxamento profundo. Ao abrir um livro conquistamos novas perspectivas, pois a ficção divide com a vida sua essência ambígua e multifacetada. Uma vez que só podemos ler um número limitado de títulos, o que procuramos? Obras que reafirmem nossas crenças, ou façam com que essas balancem? Para Kafka era muito claro, só deveríamos nos adentrar nas obras que incomodam: “Um livro precisa ser um machado que abre um buraco no mar gelado de nosso interior”.

 

Resenhas de biblioterapia

 

— Remédios literários, de Ella Berthoud e Susan Elderkin. Um original e divertido livro sobre biblioterapia que fala do poder curativo da palavra escrita.

 

— A leitura como plegária, de Joan-Carles Mèlich (sem edição no Brasil). Uma reflexão sobre a leitura e a escrita em 262 fragmentos filosóficos.

 

 

— Por que ler os clássicos, de Italo Calvino. O escritor nos lembra que os clássicos nunca deixam de surpreender e resistir ao tempo.

 

— Poema, de Rafael Argullol (inédito no Brasil). Um breviário contemporâneo erudito e sensível de reflexões sobre a condição humana e o discorrer do mundo.

 

— Intérprete de males, de Jhumpa Lahiri. A escritora indaga sobre as barreiras que personagens de diferentes culturas devem saltar em sua busca da felicidade.

 

— A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói. Um luminoso romance que na realidade é um poema capaz de nos reconciliar com nossa condição mortal.

 

— Pequeno fracasso, de Gary Shteyngart. Depois de se mudar com sua família a Nova York, o garoto judeu russo Igor se transforma em Gary, um personagem que narra a experiência de viver dividido entre dois países que são inimigos.

 

— Doce Canção, de Leila Slimani. Disseca as circunstâncias de um crime e lança luz sobre as contradições da sociedade atual.

 

* Marta Rebón: Tradutora, crítica literária e fotógrafa. Traduziu ao espanhol e ao catalão obras de Vasily Grossman, Boris Pasternak, Lev Tolstói e Svetlana Alexijevich, pelo que recebeu os prêmios da Fundação Yeltsin e do Instituto Pushkin. Expôs na Rússia, Cuba, Espanha e Equador.

 

Fonte: El País Brasil

 

“O bem de um livro está em ser lido. Um livro é feito de signos que falam de outros signos, os quais por sua vez falam das coisas. Sem um olho que o leia, um livro traz signos que não produzem conceitos, e portanto é mudo. Esta biblioteca talvez tenha nascido para salvar os livros que contém, mas agora vive para sepultá-los. Por isso tornou-se fonte de impiedade.” – Umberto Eco, em “O nome da Rosa”. [tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade]. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.

Foto: leiturinha.com.br/blog/por-que-levar-seu-pequeno-a-biblioteca/
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