1 de outubro de 2021 9:05 por Da Redação
Quantos leitores brasileiros conhecerão o célebre poema angolano Monangamba? Devido à sua força e beleza extraordinárias, começo por transcrevê-lo na íntegra:
Monangamba
Naquela roça grande não tem chuva
É o suor do meu rosto que rega as plantaçõesNaquela roça grande tem café maduro
E aquele vermelho-cereja
São gotas do meu sangue feitas seivaO café vai ser torrado,
Pisado, torturado,
Vai ficar negro,
Negro da cor do contratadoNegro da cor do contratado
Perguntem às aves que cantam,
Aos regatos de alegre serpentear
E ao vento forte do sertão:Quem se levanta cedo?
Quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
A tipoia ou o cacho de dendém?Quem capina e em paga recebe desdém,
Fuba podre, peixe podre,
Panos ruins, cinquenta angolares,
Porrada se refilaresQuem?
Quem faz o milho crescer
E os laranjais florescer?Quem?
Quem dá dinheiro para o patrão comprar
Máquinas, carros, senhoras
E cabeças de pretos para os motores?Quem faz o branco prosperar,
Ter barriga grande, ter dinheiro?Quem?
E as aves que cantam,
Os regatos de alegre serpentear
E o vento forte do sertão
Responderão:Monangambééé!…
Ah, deixem-me ao menos subir às palmeiras,
Deixem-me beber maruvo, maruvo
E esquecer diluído
Nas minhas bebedeiras!…Monangabééé…
O autor deste poema é António Jacinto, uma das mais notáveis figuras do Movimento Vamos Descobrir Angola, criado após a Segunda Guerra e que contribuiu decisivamente para a fundação da literatura angolana moderna. Esta última foi claramente marcada pelo realismo social português, pelo romance nordestino brasileiro, pela poesia de Jorge de Lima, Manuel Bandeira e Fernando Couto e, como se observa sem qualquer dúvida no poema acima transcrito, pela negritude e alguns das suas principais figuras, como Langston Hughes e Guillén.
Os impulsionadores do Movimento Vamos Descobrir Angola foram também responsáveis pelo surgimento do nacionalismo angolano moderno, em particular à criação do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), o qual seria responsável, no início dos anos 60, pela eclosão da luta armada de libertação nacional, a qual “atualizou” a velha tradição de resistência dos povos angolanos à presença colonial portuguesa. António Jacinto foi também um deles. Por isso, esteve preso durante 14 anos pela Pide (a polícia secreta do colonial-fascismo português) no famigerado campo de concentração de Tarrafal, em Cabo Verde. Quando foi solto, conseguiu fugir de Portugal e foi juntar-se à guerrilha conduzida pelo MPLA a partir da República do Congo e da Zâmbia.
O caso de António Jacinto e da sua poética obriga-nos necessariamente a rediscutir o vulgarizado conceito de “literatura negra” e “arte negra” em geral. É que, como sabem hoje aqueles que conhecem de perto a literatura angolana, mas talvez não os restantes leitores, António Jacinto era branco. Imagine-se, pois, a surpresa dos participantes de uma conferência literária pan-africanista realizada nos anos 60 do século passado, quanto Jacinto estava preso, que o autor de Monangamba não era… negro. A verdade, entretanto, é que ele não é o único caso, nem em Angola, nem em África, onde há outros países em que autores não-negros são responsáveis por algumas das mais belas criações “negras”.
Seja como for, admito que, no caso da diáspora negra, o problema se ponha de maneira diferente. Por isso, não tenho, nesse caso, nenhuma dificuldade em entender a pertinência e eventualmente a utilidade de recorrer à fórmula “literatura negra” para classificar e enquadrar a produção de autores negros. A discriminação histórica de que são vítimas as populações negras diaspóricas, muitas vezes em países que eles próprios ajudaram a construir, como sucede nas américas, tem ainda hoje como consequência a sua marginalização social, por várias razões, da natureza eurocêntrica do cânone hegemónico à dificuldade de acesso à instrução e educação pelos grupos em questão, bem como aos preconceitos ideológicos das diferentes instâncias culturais (academia, editoras, etc.) e da grande mídia. Como a referida discriminação tem um fundo racial estrutural, reivindicar a existência de uma literatura “negra” faz parte, portanto, de um necessário movimento identitário, que visa resgatar a legitimidade de tudo aquilo que é “negro”. Ou seja, “black is beautiful”, seja em que campo ou vertente for.
Repito: entendo isso. Mas, de que estaremos nós a falar, de facto, quando falamos em “literatura negra”? De literatura de temática “negra”? Ou de literatura produzida por autores negros? Em regra, a utilização dessa designação aponta para uma realidade aparentemente simples, mas equívoca: “literatura negra” seria a literatura escrita por autores negros sobre temáticas negras. Tal entendimento, contudo, é duplamente restritivo: primeiro, parece indicar que apenas autores negros podem escrever sobre temas e assuntos relacionados com as comunidades negras; segundo, como que interdita esses mesmos autores negros de abordarem outro tipo de tópicos ou questões. Felizmente, a história da literatura demonstra que os verdadeiros escritores estão acima dessa tacanha compartimentalização. É por isso que eu prefiro a expressão “literatura de autoria negra”, em vez de de “literatura negra”.
Embora, compreensivelmente, a tendência de qualquer escritor seja escrever sobre a realidade que melhor conhece, a verdade é que a literatura de autoria negra pode ser qualquer coisa, tal como, aliás, toda a literatura, sejam os seus autores brancos, negros, asiáticos, indígenas ou quaisquer outros. Não acredito em “lugar de fala” na literatura. Para mim, a arte é o lugar da empatia por excelência. Os artistas radicais e que, por isso, se tornaram imortais, sempre foram aqueles que souberam captar e expressar a nossa “humanidade compartilhada”, para usar a expressão da nigeriana Bernardine Evaristo. “Impor na criação uma cor de pele é segregação” — afirmou o escritor congolês publicado no Brasil Alain Mabanckou.
Aqui chegado, lembro: o que está em jogo, na verdade, quando se torna necessário recorrer a certas fórmulas, categorias ou slogans, é a visibilidade. Vivendo nós sob o capitalismo, acrescento: é o acesso ao mercado. Assim, todas as lutas, a começar pelas retóricas, são legítimas e vitais para permitir a visibilidade e o acesso ao mercado dos autores até aqui discriminados, por diferentes razões (raciais, sexuais, políticas, de classe e outras). O segredo para o sucesso de tais lutas, entretanto, implica que não nos deixemos enredar pelas nossas próprias narrativas. Mais do que táticas, precisamos de estratégias.
JOÃO MELO
Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.
* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.
Fonte: Jornal Rascunho