terça-feira 26 de novembro de 2024

Literatura “negra” ou literatura de autoria negra?

O angolano João Melo não acredita em “lugar de fala” na literatura, pois a arte é o lugar da empatia por excelência

1 de outubro de 2021 9:05 por Da Redação

 

 

 

Quantos leitores brasileiros conhecerão o célebre poema angolano Monangamba? Devido à sua força e beleza extraordinárias, começo por transcrevê-lo na íntegra:

Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva
É o suor do meu rosto que rega as plantações

Naquela roça grande tem café maduro
E aquele vermelho-cereja
São gotas do meu sangue feitas seiva

O café vai ser torrado,
Pisado, torturado,
Vai ficar negro,
Negro da cor do contratado

Negro da cor do contratado

Perguntem às aves que cantam,
Aos regatos de alegre serpentear
E ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo?
Quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
A tipoia ou o cacho de dendém?

Quem capina e em paga recebe desdém,
Fuba podre, peixe podre,
Panos ruins, cinquenta angolares,
Porrada se refilares

Quem?

Quem faz o milho crescer
E os laranjais florescer?

Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
Máquinas, carros, senhoras
E cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
Ter barriga grande, ter dinheiro?

Quem?

E as aves que cantam,
Os regatos de alegre serpentear
E o vento forte do sertão
Responderão:

Monangambééé!…

Ah, deixem-me ao menos subir às palmeiras,
Deixem-me beber maruvo, maruvo
E esquecer diluído
Nas minhas bebedeiras!…

Monangabééé…

O autor deste poema é António Jacinto, uma das mais notáveis figuras do Movimento Vamos Descobrir Angola, criado após a Segunda Guerra e que contribuiu decisivamente para a fundação da literatura angolana moderna. Esta última foi claramente marcada pelo realismo social português, pelo romance nordestino brasileiro, pela poesia de Jorge de Lima, Manuel Bandeira e Fernando Couto e, como se observa sem qualquer dúvida no poema acima transcrito, pela negritude e alguns das suas principais figuras, como Langston Hughes e Guillén.

Os impulsionadores do Movimento Vamos Descobrir Angola foram também responsáveis pelo surgimento do nacionalismo angolano moderno, em particular à criação do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), o qual seria responsável, no início dos anos 60, pela eclosão da luta armada de libertação nacional, a qual “atualizou” a velha tradição de resistência dos povos angolanos à presença colonial portuguesa. António Jacinto foi também um deles. Por isso, esteve preso durante 14 anos pela Pide (a polícia secreta do colonial-fascismo português) no famigerado campo de concentração de Tarrafal, em Cabo Verde. Quando foi solto, conseguiu fugir de Portugal e foi juntar-se à guerrilha conduzida pelo MPLA a partir da República do Congo e da Zâmbia.

O caso de António Jacinto e da sua poética obriga-nos necessariamente a rediscutir o vulgarizado conceito de “literatura negra” e “arte negra” em geral. É que, como sabem hoje aqueles que conhecem de perto a literatura angolana, mas talvez não os restantes leitores, António Jacinto era branco. Imagine-se, pois, a surpresa dos participantes de uma conferência literária pan-africanista realizada nos anos 60 do século passado, quanto Jacinto estava preso, que o autor de Monangamba não era… negro. A verdade, entretanto, é que ele não é o único caso, nem em Angola, nem em África, onde há outros países em que autores não-negros são responsáveis por algumas das mais belas criações “negras”.

Seja como for, admito que, no caso da diáspora negra, o problema se ponha de maneira diferente. Por isso, não tenho, nesse caso, nenhuma dificuldade em entender a pertinência e eventualmente a utilidade de recorrer à fórmula “literatura negra” para classificar e enquadrar a produção de autores negros. A discriminação histórica de que são vítimas as populações negras diaspóricas, muitas vezes em países que eles próprios ajudaram a construir, como sucede nas américas, tem ainda hoje como consequência a sua marginalização social, por várias razões, da natureza eurocêntrica do cânone hegemónico à dificuldade de acesso à instrução e educação pelos grupos em questão, bem como aos preconceitos ideológicos das diferentes instâncias culturais (academia, editoras, etc.) e da grande mídia. Como a referida discriminação tem um fundo racial estrutural, reivindicar a existência de uma literatura “negra” faz parte, portanto, de um necessário movimento identitário, que visa resgatar a legitimidade de tudo aquilo que é “negro”. Ou seja, “black is beautiful”, seja em que campo ou vertente for.

Repito: entendo isso. Mas, de que estaremos nós a falar, de facto, quando falamos em “literatura negra”? De literatura de temática “negra”? Ou de literatura produzida por autores negros? Em regra, a utilização dessa designação aponta para uma realidade aparentemente simples, mas equívoca: “literatura negra” seria a literatura escrita por autores negros sobre temáticas negras. Tal entendimento, contudo, é duplamente restritivo: primeiro, parece indicar que apenas autores negros podem escrever sobre temas e assuntos relacionados com as comunidades negras; segundo, como que interdita esses mesmos autores negros de abordarem outro tipo de tópicos ou questões. Felizmente, a história da literatura demonstra que os verdadeiros escritores estão acima dessa tacanha compartimentalização. É por isso que eu prefiro a expressão “literatura de autoria negra”, em vez de de “literatura negra”.

Embora, compreensivelmente, a tendência de qualquer escritor seja escrever sobre a realidade que melhor conhece, a verdade é que a literatura de autoria negra pode ser qualquer coisa, tal como, aliás, toda a literatura, sejam os seus autores brancos, negros, asiáticos, indígenas ou quaisquer outros. Não acredito em “lugar de fala” na literatura. Para mim, a arte é o lugar da empatia por excelência. Os artistas radicais e que, por isso, se tornaram imortais, sempre foram aqueles que souberam captar e expressar a nossa “humanidade compartilhada”, para usar a expressão da nigeriana Bernardine Evaristo. “Impor na criação uma cor de pele é segregação” — afirmou o escritor congolês publicado no Brasil Alain Mabanckou.

Aqui chegado, lembro: o que está em jogo, na verdade, quando se torna necessário recorrer a certas fórmulas, categorias ou slogans, é a visibilidade. Vivendo nós sob o capitalismo, acrescento: é o acesso ao mercado. Assim, todas as lutas, a começar pelas retóricas, são legítimas e vitais para permitir a visibilidade e o acesso ao mercado dos autores até aqui discriminados, por diferentes razões (raciais, sexuais, políticas, de classe e outras). O segredo para o sucesso de tais lutas, entretanto, implica que não nos deixemos enredar pelas nossas próprias narrativas. Mais do que táticas, precisamos de estratégias.

JOÃO MELO
Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Fonte: Jornal Rascunho

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