7 de dezembro de 2021 7:57 por Braulio Leite Junior
Mexendo nas coisas esquecidas, encontrei essa joia em meio a tantas outras que com certeza, foram deixadas ” prá depois”, ” depois publicamos”. E o tempo foi passando… Hoje, eu como filha apreciadora e admiradora de seus escritos, tenho o prazer de publicar em primeira mão e assinar seu nome, para que outros possam apreciar assim como eu.
Eleonora Duse Leite é funcionária pública e graduanda em comunicação.
Era a segunda vez, naquele ano, que o circo visitava a cidade. Quando no mês de fevereiro ele passara, indo percorrer capitais e cidades mais populosas do norte e nordeste, o cinco possuis além do grande pavilhão aonde ficava o picadeiro, duas outras tendas menores, todas embandeiradas, além de quatro caminhões, duas camionetes, dois ônibus, um furgão e mais oito ou nove grandes carrocerias nas quais se alojavam as diversas jaulas com o leão, duas zebras, um urso, quatro ou cinco cavalos, macacos, cachorros, três pôneis, algumas araras e um trailer aonde se lia grande “guarda-roupa e maquilagem”. Era uma fileira de transportes que chamava a atenção e alertava toda a cidade para os espetáculos que se sucederiam. Seus proprietários, gerentes, artistas e pessoal de serviços pareciam contentes e esperançosos com a grande viagem pretendida…
Agora neste mês de novembro a situação era outra. A seca, a falta de dinheiro, a falta de apoio, a falta de condições financeira da população para assistir o espetáculo colorido e iluminado, fizeram com que toda aquela felicidade e esperança inicial fosse sendo abandonada em cada cidade do interior. Apenas em algumas capitais, cm fins de semana, a feria dava para pagar as despesas, alguns salários atrasados e comprar ração deficiente dos pobres animais enjaulados, emagrecendo a olhos vistos, urrando e grunhindo dia e noite e fazendo com que a empresa, aos poucos, os fosse vendendo para zoológicos, parques de lazer e até mesmo particulares que se interessavam em comprar aqueles animais para suas propriedades, sítios e fazendas. Quando retornaram àquela cidade só lhes restavam uma jaula com um leão esfomeado, ossos à mostra e segundo o seu tratador quase totalmente cego e surdo. As lonas dos pavilhões rasgadas em alguns pontos e remendadas em outros, já não possuíam as bandeirolas nem os enfeites coloridos. Apenas dois caminhões, uma camionete, uma carroceria e o velho trailer, todos no pior estado possível. Além disso o elenco de artistas estava reduzido a um terço, tendo alguns deles depois de uma suspensão de contrato, viajado para as suas cidades do sul do país. Até o velho palhaço que tinha mais de 30 anos na empresa, com a mulher e a filha fazendo parte da trupe, tinha desistido após ver sua menina sair com uns e outros espectadores para conseguir alguns trocados e ainda por uma farta refeição. Um desalento. Uma tristeza que atingia o orgulho de um dos melhores grupos circenses do pais. Uma lástima.
Não havia como fazer um espetáculo no centro da cidade. Buscaram um bairro, um arrabalde mais distante, mais outro, até que por fim resolveram ir para uma outra cidade do interior, como se fosse uma leva de desiludidos e derrotados.
Foi justamente ai que aconteceu um fato curioso, inédito, que bem justifica esta narrativa. No caminho para a cidade interiorana mais próxima, num local deserto cuja estrada era margeada por canaviais e aqui e lá longe uma clareira, uma das rodas da carroça que levava a jaula do leão soltou-se, fazendo com que aquela procissão de miseráveis contivesse a sua marcha. Para o conserto era necessário retirar a jaula, o que foi feito, deixando-a entre o canavial, enquanto um dos responsáveis procurava auxilio numa povoação próxima, três ou quatro quilômetros adiante. Por acaso o leão ao encostar-se na grade abriu a porta e mesmo sem bem enxergar e melhor ouvir saiu ao léu, talvez em busca de alguma comida.
Acontece que naquela vila havia um militar que servia no Posto de transito, localizado na entrada da cidade e que, de vez em quando gostava de tomar uns tragos acompanhado de tira-gostos, como carne de bode, caça, ensopado de bagre ou peixe frito. E foi justamente esse dia que o soldado Joaquim Praxedes, mais conhecido como Quinzinho, depois do plantão da noite anterior resolveu tomar umas e outras, abusando da conta. Com a cabeça cheia e o estomago mais cheio ainda com o sarapatel apimentado e os caldos de sururu que ingerira, resolves passar pelo Posto e ir descansar em baixo de uma frondosa árvore que havia a uns com metros dali. Deitou-se entre as raízes, e tirou o quepe colocando-0 sobre os olhos e adormeceu.
O leão vadiando pelo canavial foi em direção ao frescor da sombra, projetada pela árvore. Antes que o animal chegasse, Quinzinho sentiu-se mal, a cabeça rodando, o estômago embrulhado e ali mesmo como estava, deitado, vomitou o que havia comido e bebido por sobre a própria cara, a farda e o chão. Sem poder atinar com o que acontecera, continuou dormindo enquanto aquela sujeira se espraiava em redor e parte do seu corpo. Sem enxergar ou ouvir, o leão seguia o seu faro até que farejou à sua frente a inesperada e mal cheirosa refeição. E como todo animal faminto entregou-se a lamber o chão, a farda e a embriagado que, naquele instante, incomodado com a língua carasquenta do bicho, os olhos e viu o focinho do animal, língua enorme e ranheta para fora lambendo-lhe as bochechas.
O susto foi terrível.
Foi tão grande que não pode sequer balbuciar uma palavra, embora o pensamento rogasse a proteção de todos os santos do céu para salva-lo de ser comido por aquele felino. O leão continuava na sua limpeza esfomeada, preso apenas ao sabor e odor daquela boia temperada que reunia carneiro guisado, bagre ensopado e sururu engolidos sem mastigar. Uma loucura, uma assombrosa situação entre o animal e o homem. Este transido de medo arrastou-se como pôde levantando-se em seguida numa desabalada carreira só interrompida na porta da delegacia:
Seu delegado! Seu dele-ga-ga-a-a-do! Pelo amor de Deus O que foi isso Quinzinho? Um leão! Um leão quer me comer!
Que historia é essa, seu cachaceiro de uma figa?….
Um leão… quando me acordei o bicho estava de boca aberta para engolir a minha cabeça!
Os olhos injetados e o balo da cachaça fizeram o delegado cair em si e raciocinar, chamando os outros militares que serviam no Posto:
Venham cá, venham ver o Quinzinho como está… Tenha vergonha e pare com isso, sendo mando recolher você para o xadrez e depois para o asilo. Você não tem responsabilidade, vestido com a farda da nossa gloriosa policia e tomar um porre desses. Sala daqui seu cachaceiro irresponsável!
Quinzinho chorando, fisionomia transtornada, jurava, pedia, suplicava: Juro, juro por Deus, juro pela alma da minha mãe que o leão queria me comer. Pelo amor de Deus seu Delegado, vamos até lá. Se for mentira minha o senhor pede a minha “baixa”. Faça o que quiser, mas depois que for comigo ver o leão. E prevenia insistindo, mas vá armado, pelo amor de Deus… o bicho é feroz, não me mordeu a cara porque consegui escapulir. Por favor, vamos lá, mas vamos armados…
Feito o conserto o domador deu por falta do leão. Saiu procurando e logo ali adiante, encontrou-o deitada pacificamente, como se nada tivesse acontecido, pegou-o pela juba, levo-o para a jaula e novamente o grupo continuou viagem.
O delegado após relutar, deu cabo de uma 12, tomou o jipe e foi para o sítio onde Quinzinho vira o leão, ele e mais dois soldados além do denunciante . Procuraram tudo pelo canavial e durante quase duas horas sob um sol escaldante bateram secas e meças em busca do rei da selva… Nada, nem um gato, nem um preá vivia por aquelas bandas. Furibundo a autoridade voltou para o posto sem trazer consigo o lambido e quase assumido repasto do leão.
O soldado Joaquim Praxedes, pediu “baixa”, perdeu a farda, perdeu a credibilidade, perdeu o juízo e até hoje na sua contínua e angustiada carraspana diz a quem dele se aproxima: – Eu juru, eu juro que vi… O leão estava ali… eu juro que vi. E soluça um choro convulso, desatinado, braços e mãos estendidos como numa súplica, enquanto a molecada grita e sorrir chamando-o de “leoa”! Armadilha do destino!
(*) Braulio Leite Júnior [1931-2013], alagoano, filho de Anália Meyer Leite e Braulio Leite, graduado em Direito, Ciências Contábeis e jornalismo. Diretor do Teatro Deodoro e de Arena Sérgio Cardoso, criador e idealizador da Fundação Teatro Deodoro, do Centro de Belas Artes, Museu da Imagem e do Som de Alagoas, Orquestra Filarmônica de Alagoas, Casa de Marechal Deodoro e tantas outras criações. Escreveu em vários jornais da capital como convidado.
Nasceu em 24 de dezembro de 1931, véspera do natal e faleceu no dia 27de fevereiro de 2013.