Por Enio Oliveira, da Revista Bula
Os termos variam de acordo com os pontos de vista da política atual. Uns chamam os anos 1960 e 1970 no Brasil de “regime militar”, “revolução de 64” ou até de “período de luta política”. Outros optam pelas palavras diretas (“ditadura”, “golpe militar” e “anos de chumbo) ou jocosas (“redentora”). Alguns gostam de aparentar sofisticação e assim de suavizar a situação com o termo “ditadura civil-militar” — uma forma, sem dúvida, de compartilhar responsabilidades. O fato é que, nos últimos 30 anos, ocorreu uma nova rodada de disputas para dar nomes aos personagens e às histórias daquela época.
Ficou certamente para trás o tempo quente e chegou a hora da reflexão que aparece em filmes de ficção, documentários, memórias e livros de pesquisa histórica. O longa-metragem “Marighella” (2021), de Wagner Moura, por exemplo, é apenas o mais recente produto da batalha narrativa sobre o período político brasileiro de 50 anos atrás. No meio de tanta produção, o escritor Milton Hatoum começou em 2017 a publicação de uma trilogia de romances, chamada de “O Lugar Mais Sombrio”, que é um marco da reflexão na literatura contemporânea a respeito daquele período.
O romance “A Noite da Espera” (2017) inicia a trilogia e colocou Hatoum, um autor já consagrado, no grupo dos escritores que melhor enfrentaram o desafio de representar traumas históricos. O livro tenta apreender o que não se consegue dizer em palavras e relatos. Trata-se de formular o indizível e de capturar, pela escrita, as feridas da memória. Ele assim juntou-se à galeria de quem elaborou nos últimos anos de reflexivo sobre aqueles anos: “Não Falei” (Beatriz Bracher), “A Resistência” (Julián Fuks), “O Punho e a Renda” (Edgard Telles) e “K” (Bernardo Kucinski).
Até a trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, Hatoum fora lido como um narrador do espaço amazônico, das relações familiares e da imigração libanesa. Tânia Pellegrini especulou se ele estaria ou não revistando o regionalismo, em nova chave de leitura. O primeiro romance do autor, “Relato de um Certo Oriente” (1989), é quase um tratado de como elaborar as memórias de um indivíduo, no caso uma mulher que retorna a Manaus após anos de ausência.
“A narração remonta ao passado por lances retrospectivos, pela voz da narradora em que se encaixam outras vozes num coral coeso, lembrando a tradição oral dos narradores orientais: caixas de surpresas, de que saltam as múltiplas faces das personagens, num jogo de sombra e silêncio, sob a luz ardente do Amazonas. Nela se guardam hesitações e lacunas da memória, o que não se alcança do passado — modo oblíquo de se deparar com os limites do conhecimento do outro e de si mesmo, enigma último do ser”, assinalou Davi Arrigucci Jr, que no calor da hora decifrou os métodos de Hatoum.
O que se percebe com “A Noite da Espera” é a ampliação definitiva do estilo literário do autor. A memória dos anos 1960/70 já aparecia nos romances “Dois Irmãos” (2000), “Cinzas do Norte” (2005) e no conto Bárbara no inverno, publicado no livro “A Cidade Ilhada” (2009). Esse conto, por sinal, narra a história de um casal exilado em Paris, tendo o personagem central Lázaro. Tanto o exílio, como um personagem chamado Lázaro, reaparecem em “A Noite da Espera”, que tem uma continuação no romance “Pontos de Fuga” (2019) e terá o desfecho no último volume a ser lançado.
Montagem histórica
O narrador desta vez é o jovem Martim, que vive na capital francesa em 1977 e reúne anotações dos tempos que morou em Brasília (de 1968 a 1972). No início de seu relato, ele expõe as fontes dos materiais a serem montados: “Tirei da sacola a papelada de Brasília e São Paulo: cadernos, fotografias, cadernetas, folhas soltas, guardanapos com frases rabiscadas, cartas e diários de amigos, quase todos distantes; alguns perdidos, talvez para sempre. (…) Comecei a datilografar os manuscritos: anotações intermitentes, escritas aos solavancos: palavras ébrias num tempo salteado”.
Estamos diante de um personagem da Era das Catástrofes, o século 20, incluindo sobreviventes do Holocausto e das guerras de descolonização na África e Ásia. Memórias já estão danificadas e não podem mais ser resgatadas a partir de um mero esforço pessoal. A matriz para esse narrador catastrófico é o escritor Primo Levi, que passou pelo campo nazista de concentração e relatou o que é a experiência-limite da modernidade. O campo (o “lager”) é uma marca extrema do mundo contemporâneo que levou Theodor Adorno a duvidar se seria possível a poesia depois de Auschwitz.
O personagem Martim é um leitor consciente e reflexivo de documentos pessoais, os retalhos de certo tipo de arquivo brasileiro da História. Ele guarda seus próprios papéis, recortes, fotos que formam uma narrativa a ser decifrada e contada ao leitor. “A Noite da Espera” é a colagem de materiais de diversas fontes (transparentes e opacas). Em linguagem digital, é preciso “descriptografar” as lembranças — sendo a “cripta” um termo chave na história da psicanálise e da escrita.
O leitor desconhece o final da montagem feita por Martim. Talvez a trilogia de Hatoum deixe tudo em aberto. Ninguém sabe se ele continuará no comando desse trabalho de bricolagem. O ponto de partida do que ele conta é a recordação da mudança para a capital federal, no emblemático 1968 e após a traumática separação dos pais. Um dos eixos narrativos é a tensão familiar entre o narrador e o pai, Rodolfo, que é alto funcionário da burocracia e encarna o espírito conservador e apolítico. A mãe (Lina) fica em São Paulo e manda cartas que compõem parte do quebra-cabeça do livro.
“As palavras do meu pai sobre Brasília se perderam durante a viagem de ônibus, quando eu pensava na minha mãe. Ele, também em vigília, cobria meu corpo com uma manta de lã. Eu não sentia frio, sentia vertigem da distância, da separação”, diz Martim ao chegar à nova cidade. “Saí do hotel à procura do centro da capital, mas não encontrei: o centro era toda a cidade.”
Memórias brasilienses
O romance é um mergulho sentimental por Brasília. Lugares que desapareceram, espaços engolidos pelos “progressos”, outros pontos que resistiram às transformações urbanas. Martim e sua namorada Dinah passam por sua antiga escola e só enxergam ruínas — expressão que é uma alegoria comumente usada para designar os tempos modernos. Nesse passeio literário e memorialístico, é até possível construir um mapa geográfico de locais da cidade citados por Hatoum, a exemplo do que fez Franco Moretti com a Paris e a Londres dos romances europeus do século 19.
A vida dos personagens de Hatoum gira em torno de um coletivo cultural — sempre a atividade cultural aparecendo como última trincheira. Jovens de várias classes sociais de Brasília fazem a revista Tribo, traduzem autores estrangeiros, encenam tragédias gregas no teatro. Não há guerrilheiros da resistência armada que são os personagens clássicos das narrativas (romances, filmes, livros de memórias) que contestam as versões oficiais dos governos do período dos militares.
Além dos jovens da Tribo, Hatoum criou duas figuras memoráveis e alegóricas. A primeira é o embaixador Faisão, que se torna a voz lúcida e sombria do livro. Ele encena a dissolução do sujeito na época e a alegoria da cultura que é transformada à força em barbárie. A segunda delas é a “baronesa” Áurea, alusão à “marechala” Rosanette de Gustave Flaubert no romance “A Educação Sentimental” (1869). É em seu apartamento, ao lado da Igrejinha de Brasília, que se reúnem o alto e o baixo escalão da vida na capital. Todos circulam pelo espaço onde se pode fugir do clima de tensão.
Influência flaubertiana
A atmosfera de erotismo, política e cultura aproxima o livro de Hatoum do clássico “A Educação Sentimental”, de Flaubert. É uma chave importante de leitura e de inserção da história contada em contexto mais amplo. Também os personagens flaubertianos viveram sonhos e desilusões de um movimento político, as revoltas parisinenses de 1848. Num trecho central, Martim está num quarto de hotel em Goiânia à espera de sua mãe (será a “espera” do título?) e começa a delirar com a senhora Arnoux, a eterna paixão do protagonista do livro flaubertiano (Frédéric Moreau).
“Sentei numa poltrona do saguão, abri o livro de Flaubert e comecei a ler a passagem em que Frédéric e Mme Arnoux se encontrariam às três da tarde num apartamento em Paris, o primeiro rendez-vous amoroso, verdadeiro e clandestino. Frédéric sonhava com esse encontro, e eu com minha mãe; eram três horas da tarde no romance de Flaubert no hotel em Goiânia, Mme Arnoux e minha mãe não apareciam. Pulava frases do romance, voltava ao início do parágrafo, minha vista turva só enxergava o relógio na parede, o ponteiro preto e fino dos segundos movia-se com lentidão no círculo, minha ânsia crescia e retardava os segundos e minutos, melhor esquecer o relógio, fechar o livro e sair do hotel”, recorda Martim.
Flaubert escreveu um dos maiores romances de todos os tempos, a partir da recriação da Paris revolucionária de 1848 e seus traumas. Relacionou indivíduos e fracassos coletivos das revoltas, criando o “romance da desilusão”, segundo Georg Lukács. Não é por acaso que Hatoum também fez questão de definir o novo trabalho, a trilogia, como um romance de desilusão. O autor francês levou duas décadas para assimilar aquela experiência traumática (Hatoum gastou quatro) e transformá-la na obra que inaugurou a modernidade literária, virando a página do Romantismo.
O que veio após as Jornadas de 1848 na França foi um golpe de Estado, comandada por Luis Bonaparte, cujo apelido dado Marx era “Krapulinski” (crápula). Foram mais de vinte anos, até 1871, com um regime centralizador e modernizador. As revoltas de 1848 levaram Marx a escrever o clássico “18 Brumário”. Também Alexis de Tocqueville deixou seus registros analíticos no livro “Lembranças de 1848” — coincidentemente, ambos recorreram às imagens do teatro para analisar a política, como na célebre frase marxista da História que acontece como tragédia e se repete como farsa.
A resposta de Flaubert foi a criação de uma narrativa introspectiva, começando a mergulhar nas miudezas cotidianas dos personagens. Nada mais acontecia, porque não havia mais espaço para aventuras ou ações épicas dos românticos. O personagem Frédéric é o sujeito indeterminado que vaga em meio àquela sociedade prestes a explodir na década de 1840. Muito se falou de um Flaubert alheio à política, porém cada vez mais estudos mostram a precisão dele em mapear e captar o espírito da época – até o dia da queda dos revolucionários e as posteriores desilusões.
Resgate literário
A referência de Hatoum a Flaubert não é aleatória ou um mero floreio estilístico. O fracasso de 1848 representou o fim da ilusão revolucionária e socialista. Lembremos que os românticos tinham a missão de fundar nações na Europa e nas Américas. Eram figuras imbuídas da tarefa de moldar um passado e desenhar o futuro de países no berço de nascimento. O que “A Educação Sentimental” narra é o ponto de vista de um personagem (mesmo alheio à ação) que viu a derrota pessoal de não ter a mulher amada e, mais amplamente, o encerramento de ideais de juventude.
A desilusão flaubertiana já estava presente em “Cinzas do Norte”, de Hatoum, nas relações dos personagens Mundo e Lavo. O cenário era Manaus no surto desenvolvimentista da década de 1970. O tempo e o espaço de “A Noite da Espera” são do começo do fim das utopias políticas e culturais, na virada da década de 1960 para a de 1970. Importante notar que Hatoum não é um escritor realista e não entrega o jogo assim tão facilmente. O leitor, porém, vai localizando as alegorias históricas que mostram a época e que têm um sentido mais amplo para nos ajudar a compreender a sociedade.
Se quiser entender a atualidade brasileira e seus antecedentes, o leitor tem muito a ganhar ao voltar os olhos para aquele período da juventude do personagem Martim. A História é feita de continuidades e rupturas, mas alguns pensadores dizem que ela nada ensina. Apesar disso, ajuda muito a compreender o presente e a imaginar o futuro. O certo é que a trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, de Milton Hatoum, pode se tornar a grande obra ficção sobre os anos 1960/70, com fôlego narrativo e atraente ao público.