30 de dezembro de 2021 3:05 por Da Redação
A vida da carioca Thereza Rabêlo, 70 anos, é marcada por um grande amor, sete filhos e três golpes militares. Casada com um jornalista, ela saiu do país durante a ditadura, levando muita coragem e sete crianças. Passou pelos golpes na Bolívia e no Chile. Viveu dezesseis anos longe do Brasil. Hoje Thereza mora com o marido em Belo Horizonte e relembra a sua saga no exílio.
Os golpes de Estado me perseguem. Por causa deles fui fincando raízes pelo mundo junto com meu marido e sete filhos. Passamos pelos golpes no Brasil, na Bolívia e no Chile. Vivemos 16 anos no exílio. Em cada mudança a gente deixava tudo para trás. Vestíamos roupas doadas em refúgios de exilados e tínhamos que refazer a vida num mundo desconhecido, com outra cultura. Se alguma coisa aprendemos no exílio foi aproveitar o que a vida oferece de bom e deixar o resto pelo caminho. Mas é claro que, esquecer o que aconteceu, a gente nunca esquece.
Venho de uma família de militares, tive uma educação quase reacionária. Nasci e fui criada no Rio de Janeiro. Tenho duas irmãs, a gente frequentava as festas do Clube Militar. Um dia minha mãe leu no jornal a notícia sobre um curso de preparação para o concurso dos Correios, que eu ia fazer. O curso funcionava na sede do antigo Partido Socialista Brasileiro, o professor de geografia era bonito e falante. Depois de uma aula entrei no elevador ao lado dele e limpei o pó de giz no seu ombro. Dias depois começamos a namorar. A notícia correu: “Thereza está namorando um comunista”. Meu namorado, José Maria Rabêlo, era membro do Partido Socialista. Mas, com jeitinho, convencemos a família de que isso não seria um problema.
Namoramos quase dois anos e nos casamos em março de 1952. A igreja ficou dividida: de um lado, os militares com fardas de gala; do outro, os amigos do Zé Maria. Mas na festa, na casa dos meus pais, teve até clima de confraternização. Uma de minhas amigas saiu dizendo: “Esses comunistas amigos da Thereza são até simpáticos”.
Já tínhamos dois filhos, Álvaro e Pedro, quando deixamos o Rio para morar em Belo Horizonte. Zé Maria é mineiro, tinha trabalhado em alguns jornais de lá. Brinco que a cidade foi meu primeiro exílio. Estranhei o conservadorismo, o jeito fechado das pessoas, tão diferente do Rio. Um dia olhei as montanhas e senti um aperto no coração. Tive essa sensação outras vezes no exílio, parecia uma premonição. Era o início de uma vida intensa ao lado do Zé Maria. Ele dirigia o jornal Binômio, considerado um dos precursores da imprensa alternativa no Brasil. Com humor e coragem o jornal agitava Belo Horizonte com reportagens que enfrentavam os poderosos.
Nesses anos em Belo Horizonte, tivemos mais cinco filhos: Mônica, Patrícia, Hélio, Fernando e Ricardo. Eu e Zé Maria adoramos crianças. Não era um plano ter tantas, mas elas foram bem-vindas. Eu trabalhava na tesouraria dos Correios, cuidava da meninada e vivia a tensão que cercava o Binômio. Às vésperas do golpe de 64, o jornal vivia recebendo ameaças. Em meados de fevereiro, um mês antes do golpe, ouvi pelo rádio a notícia de uma manifestação nas ruas. O locutor anunciou a presença de vários líderes da esquerda, entre eles o diretor do Binômio, José Maria Rabêlo. Em seguida ouvi uma explosão, a transmissão foi interrompida. Cerca de 200 ficaram feridos. Meu marido não sofreu nada, mas fiquei desesperada. Eu me imaginava sozinha com os meninos. Na época, o mais velho tinha 10 anos e o caçula engatinhava.
A sede do Binômio foi depredada, Zé Maria teve de se esconder. Peguei meus filhos e fui para o Rio num carro dirigido por um motorista do jornal. Sem notícias do meu marido, espalhei as crianças em casas de parentes. Um dia recebi um aviso de que Zé Maria estava na embaixada da Bolívia esperando o salvo-conduto para poder viajar para lá. Eu ia diariamente à embaixada e levava alguns de nossos filhos. No dia 3 de julho de 1964, ele partiu para o exílio no mesmo grupo do José Serra (ex-ministro da Saúde, no governo Fernando Henrique), que era presidente da União Nacional dos Estudantes. O aeroporto Santos Dumont estava cercado por militares. Eu e os meninos tivemos pouco tempo para nos despedir. A imagem que ficou foi a de uma foto belíssima dos filhos abraçando os pais, publicada no Jornal do Brasil.
Com medo de perder meu emprego, voltei para Belo Horizonte com a meninada. Meu salário não dava para sustentar a família. Fui vendendo tudo na bacia das almas: as máquinas do jornal, as coisas da casa, um terreno.
A sorte é que tive inúmeras manifestações de solidariedade. Minha mãe deixou o Rio para morar comigo, a família do Zé Maria me apoiava. Quando as crianças perguntavam pelo pai, eu dizia que ele voltaria logo, não deixava a peteca cair. Um dia um amigo do Hélio disse a ele: “Seu pai está exilado porque roubou a carteira de um general”. Hélio respondeu: “Meu pai está exilado porque é comunista”. Eles sempre tiveram muito orgulho do Zé Maria. No primeiro Dia dos Pais depois do golpe, a revista O Cruzeiro publicou uma reportagem com o título Nossa vida sem papai, mostrando as famílias dos exilados. Lá estava a minha foto cercada pelos filhos.
Zé Maria começou a trabalhar em um jornal em La Paz. Ele me pediu para ir encontrá-lo, para a gente alugar uma casa e só depois levar as crianças. Comemorei com elas em um parque, com sanduíches e refrigerantes. Deixei os sete com minha mãe e viajei. A Bolívia vivia um momento complicado, com greves e ameaça de golpe militar. Foi só a gente começar a procurar a casa que começaram os disparos nas ruas. Um golpe derrubou o presidente Victor Paz Estenssoro e uma junta militar assumiu o poder. O sonho de reunir a família teve de ser adiado. Zé Maria tinha que ir embora porque o jornal em que trabalhava apoiava o presidente deposto. Fugiu para o Chile, país que acolheu muitos brasileiros. Voltei para Belo Horizonte e passei quase um ano sem saber o que seria de nós, até que recebi um recado do Zé Maria pedindo para eu preparar a mudança para Santiago.
Era dezembro de 1965. Senti um aperto no coração, o meu exílio iria começar. No avião que me levou a Santiago, meus filhos, lourinhos, chamavam a atenção. Os três mais novos ainda tomavam mamadeira, os mais velhos me ajudavam com os pequenos. O reencontro com o Zé Maria foi emocionante. Ele trabalhava numa instituição internacional voltada para questões sociais e recebia um salário que dava para manter a família. Alugou uma casa branca com jardim e quintal. Ali estavam plantados pés de avelãs, pêras, damascos, maçãs e tinha um riacho com águas que desciam da Cordilheira dos Andes. É impossível esquecer a emoção que senti ao entrar na nossa casa. Zé Maria espalhou flores em todos os cômodos e num quarto grande colocou as sete camas dos filhos. Sob o meu travesseiro encontrei um poema que ele fez: Nada nos separará/Nem o céu, nem a terra/Ou a fúria dos vendavais/… Nem as armadilhas do caminho/Ou o ódio dos generais.
Foi um tempo feliz. Os meninos brincavam na rua, eu tinha mais tempo para eles e adorava passar horas olhando as mudanças de cor da cordilheira, que ia do branco ao rosa. Ali, tivemos um Natal inesquecível quando meu filho Pedro, o Didi, encontrou um tesouro escondido no sótão da casa. Eram caixas de brinquedos fantásticos, usados e cobertos de pó. Lá do alto, com uma corda nas mãos, ele descia os brinquedos para os irmãos, que olhavam maravilhados. Depois disso passamos a acreditar que Papai Noel existe.
No Chile tivemos também nosso batismo de fogo com os terremotos. Foi numa noite em que o Zé Maria e eu voltávamos de uma reunião de exilados em uma das casas do poeta Pablo Neruda, ouvi um barulho ensurdecedor, que vinha do fundo da terra. Zé Maria estacionou o carro para não perder o controle da direção, as luzes se apagaram, eu ouvia gritos. Dezenas de pessoas morreram, milhares ficaram feridas. Felizmente nada aconteceu com meus meninos e com minha mãe, que estava passando uma temporada em Santiago.
O Brasil foi ficando distante. Durante a ditadura, amigos e parentes tinham medo de manter contato com exilados. Isso fez com que a gente se apegasse muito ao Chile. Zé Maria organizou uma rede de livrarias especializada em ciências sociais. Eu trabalhava na parte administrativa. Acompanhamos a campanha do presidente Salvador Allende, eleito em 1970. Vimos também como foi armada a conspiração contra o governo. A direita sumia com remédios e alimentos para provocar uma crise de abastecimento. Em três anos, Allende foi deposto pelo general Augusto Pinochet. Foi uma das coisas mais violentas que vivi. Caminhões passavam levando corpos mutilados. Só havia o medo e o horror das perseguições.
Nessa época envelheci muitos anos. O Zé Maria estava na lista dos perseguidos e, como não conseguiram pegá-lo, prenderam meu segundo filho, o Didi, que estava com vinte anos e estudava Belas Artes. Eu acordava de madrugada, ouvia rajadas de metralhadoras e pensava que meu filho poderia estar sendo fuzilado. Um dia recebi um bilhete dele com um autoretrato que ele desenhou e até hoje me faz chorar: “Mãe, te mando esta caricatura minha para que você possa ficar perto de mim, mas não chore, porque você é a mãe mais valente que vi em minha vida”.
Eu falo nisso e me emociono. Meu filho mais velho, o Dudu, era integrante do Partido Socialista e ficou com o Zé Maria na embaixada do Panamá, que recebeu mais de 200 pessoas. Fiquei sozinha com as cinco crianças que restaram e sentia muito medo. Uma de minhas irmãs mandou passagens para a gente voltar para o Brasil, mas nosso visto estava vencido. Eu ficava com as crianças na embaixada do Brasil à espera do visto. Era o único lugar em que me sentia um pouco segura. Pensava que teria ajuda ali, mas eles só me enrolavam.
Fiquei seis dias nessa agonia e, desesperada, disse ao embaixador: “Eu fico no Chile e peço que o senhor deixe meus filhos voltarem”. Não adiantou. Saí da minha casa com a roupa do corpo e fui com as crianças para um refúgio das Nações Unidas. Foi o pior momento. A gente tinha comida e agasalhos, mas as noites eram terríveis. Eu não conseguia dormir, minha cabeça não parava de pensar: “O que será de nós?”
Zé Maria e Dudu conseguiram o salvo-conduto. Didi saiu da prisão depois de quase três meses de violência. Não tinha o dente da frente, passou por pancadarias, ameaças de morte. Chegou a ser levado para o paredão de fuzilamento, ordenaram a um pelotão para tomar a posição de tiro. Gritaram: “Apuntar! Fuego!” Era uma simulação para abalá-lo psicologicamente. E ele tinha só vinte anos.
No dia 26 de janeiro de 1974, o pesadelo terminou. O Chile que eu tanto amei e amo tinha se tornado um inferno. Depois de oito anos naquele país, fomos com outros exilados para Paris. Da janela do avião, achei Paris linda e um desafio para a minha força, que andava exaurida. Fomos para um abrigo no sul da cidade, num lugar chamado Choisy-le-Roi. Pouco tempo depois nos transferiram para Clichy, um reduto eleitoral dos partidos de esquerda, onde moravam imigrantes portugueses e africanos.
Eu e Zé Maria tínhamos muito a fazer. Era preciso procurar trabalho e colocar as crianças na escola. As meninas já eram adolescentes, com dezessete e quinze anos e Ricardo, o caçula, tinha onze anos. Eles estranharam as escolas francesas, rígidas, mas aprenderam francês rapidinho e até corrigiam a pronúncia do pai. Nos fins de semana, a gente ia a igrejas, museus e exposições.
O Zé Maria começou a trabalhar na Livraria Portuguesa, fundada por Mário Soares, o ex-presidente de Portugal, que na época estava exilado em Paris. Depois passou a procurar sócios para uma livraria que divulgasse a cultura latino-americana na Europa. Foi um sucesso. A Livraria Centro dos Países de Língua Espanhola e Portuguesa ficava na Rue des Ecoles, no bairro Quartier Latin, e era considerada uma das melhores livrarias estrangeiras de Paris. Isto numa cidade cheia de livrarias. Eu trabalhava na administração e o Zé Maria dizia que eu era a “loura do caixa”.
Passavam pela livraria muitos brasileiros, exilados ou não. Gente como Fernando Gabeira, Ziraldo, Henfil, Brizola e muitos outros. Nosso apartamento em Massy, no sudoeste de Paris, era um ponto de encontro e uma Torre de Babel. Tínhamos amigos franceses, chilenos, portugueses. A feijoada lá de casa era famosa. Um dia, escutando um disco do carnaval brasileiro, me dei conta de que não conhecia nenhuma das músicas. Percebi, então, que eu estava há muito tempo fora do Brasil.
Nossos amigos já falavam em voltar por causa da abertura política. Eu e Zé Maria não sabíamos se era a hora ou não, nossos filhos tinham criado raízes na França. Também ficávamos preocupados em perder os direitos sociais que se têm na França. Tenho uma foto em que estou com a cabeça encostada no ombro do Zé Maria, é uma imagem bonita e muito importante para mim. Nesse dia estávamos confusos sem saber o que fazer. Pouco depois decidimos voltar, com os três filhos mais novos. Os outros preferiram ficar em Paris. Eles tinham amigos, Patrícia estava terminando o curso de Letras na Sorbonne. Álvaro acabou se casando com uma francesa, Pedro com uma colombiana e Mônica com um exilado brasileiro.
Estamos em Belo Horizonte desde 1979. O tempo passa rápido. Tenho onze netos lindos, que são a minha alegria. Meus três filhos mais velhos agora moram em BH. Dudu trabalha com cinema e Didi, o que passou pela tortura, é artista plástico. Ele não ficou com sequelas mas, é claro, nunca esqueceu. Hélio trabalha com turismo. Mônica mora em Florianópolis, tem um empório de vinhos. Patrícia e os dois mais novos vivem no Rio. Ela trabalha com meio ambiente, Fernando é fotógrafo, e Ricardo, o caçula, de 41 anos, edita um jornal alternativo, o Bafafá.
Zé Maria e eu estamos às voltas com a edição de livros de ciências sociais. O nome da nossa editora é Barlavento, uma palavra bonita e leve, um termo náutico que quer dizer “o lado em que toca o vento”. Pensando agora, vejo que isso tem alguma coisa a ver comigo. Fui tocando a minha vida de um país ao outro sem carregar ressentimentos. Não me considero corajosa. Mas, pela minha família, sou capaz de tudo.
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Este texto encontra-se na página 521 do livro “68 a geração que queria mudar o mundo relatos”, organizado e editado por Eliete Ferrer, publicado no Projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia, na Presidência de Paulo Abrão.
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