domingo 22 de dezembro de 2024

Eny Raimundo Moreira, presente!

Vera Durão, Frei Betto, Silvio Tendler, e João Batista Damasceno, escreveram sobre Eny  Moreira.Leia abaixo.

5 de janeiro de 2022 5:32 por Da Redação

O presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz, lamentou a perda. “Advogada combativa que resistiu ao regime militar defendendo perseguidos com coragem e heroísmo. Ela nunca aceitou calar-se diante do autoritarismo. Que Deus a conserve em bom lugar e console os seus entes queridos”, afirmou.

Eny foi criadora do Comitê Brasileiro pela Anistia e escreveu o livro Brasil: nunca mais. A notável atuação da advogada em defesa dos direitos humanos também é tema do livro Os advogados e a Ditadura de 1964 – A Defesa dos Presos Políticos no Brasil, organizado pelos professores Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, e publicado pelas editoras PUC-Rio e Vozes, em 2010.

A obra faz o relato da atuação de outros defensores, como Airton Soares, Dalmo Dallari, Eny Moreira George Tavares, Heleno Fragoso, Luís Eduardo Greenhalgh, Marcelo Alencar, Marcelo Cerqueira, Mário Simas, Modesto da Silveira, Sigmaringa Seixas, Sobral Pinto, Técio Lins e Silva e Wilson Mirza e Paulo Hélio Bicudo.

Em 2012, Eny Moreira deu depoimento à Comissão Nacional da Verdade. A advogada lembrou dois casos em específico. Um deles foi o de Aurora Maria Nascimento Furtado, que foi torturada e morta aos 26 anos. Ela também mencionou o desaparecimento de Ísis Dias de Oliveira e narrou seus esforços para encontrá-la e o sofrimento de sua mãe. Na ocasião, Eny Moreira disse que os advogados que atuaram na defesa de perseguidos pelo regime ditatorial não eram corajosos, mas “tinham uma enorme capacidade de se indignar com a violência”.

Altiva na defesa de seus clientes, Eny Moreira também sofreu com o arbítrio em tempos em tese já democráticos. Ela teve voz de prisão decretada em 3 de fevereiro de 1994 por determinação de parlamentares que compunham a CPI da Previdência. Durante uma acareação entre dois acusados de cometer fraudes contra a Previdência Social, um deles seu cliente, Eny Moreira insistiu em seu direito de fazer apartes para orientar o depoente que representava. Por isso, recebeu voz de prisão. O então presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, José Roberto Batochio, saiu em defesa da advogada e foi ao Ministério Público com representação por crime de abuso de autoridade contra os parlamentares.

No dia seguinte, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Luís Francisco Carvalho Filho escreveu: “A prisão da advogada cobre de vergonha o Congresso Nacional: Eny Moreira teria usado a palavra para denunciar a coação imposta ao seu cliente. É coação mesmo. Ela cumpriu um dever profissional. Sua prisão lembra os tempos do regime militar”. No Jornal do Brasil, o advogado Antonio Carlos Barandier também bateu forte: “Hoje é a violência contra a advogada. Amanhã os inquisidores e a multiplicidade de dispositivos repressivos poderão voltar-se contra os intelectuais, os dissidentes e oposicionistas, clamando pela ordem política e social, a paz dos cemitérios. O AI-5 era menos hipócrita e mais econômico”.

Fonte: portal Conjur

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Por Vera Durão

Conheci a Eny no Comitê Brasileiro pela Anistia ( CBA). Ela foi presidente antes da Iramaya. Era uma pessoa incrível, alegre, brincalhona, contadora de histórias. Apesar de ter um defeito na perna, ela,na época, morava num prédio de 3 andares na Dias Ferreira, q não tinha elevador. Gostava de desafios. Nesta época, ainda trabalhava no escritório do Sobral, q a adorava. Voltei a encontrá-la na Comissão Estadual da Verdade (CEV-RJ). Sempre batalhadora pela Justiça. Depois, nos distanciamos. Mas, no ano passado, a Rosa Cardoso, presidente da CEV-RJ, me disse q ela, Eny, não andava bem de saúde. Infelizmente, não a encontrei mais. Mas, já entrou para a história.

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Por Silvio Tendler

Minha grande amiga! Salvou gente levando até a CNBB que tinha uma escada “esquecida” no muro que dava para a Nunciatura.
Ela e o Sigmaringa.

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Por João Batista Damasceno

Em 2014, na Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro, depois do filme do Silvio Os advogados contra a ditadura participei de um debate com o Silvio, Eny Moreira e Modesto da Silveira. Em muitas outras oportunidades estive com a Eny. Sua morte abre uma lacuna na nossa existência.

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Frei Betto

  Imagine uma penitenciária de presos comuns, guardados em regime de segurança máxima, no interior de São Paulo. Mude agora o foco da fantasia para o bairro do Leblon, no Rio. Acredita que uma jovem advogada possa trocar a Zona Sul carioca, em plena noite de Natal, pela convivência com presos comuns? 
       Em 1972, eu me encontrava na Penitenciária de Presidente Venceslau (SP), em companhia de mais cinco presos políticos – os frades Ivo Lesbaupin e Fernando de Brito, o camponês Manuel Porfírio, o jornalista Maurício Politi e o advogado Wanderley Caixe – todos misturados, por arbítrio da ditadura militar, a centenas de presos comuns. O trenó da solidariedade nos levou um presente inusitado no Natal: a presença de nossa advogada, Eny Raimundo Moreira. A direção do cárcere não conseguia entender por que ela preferiu passar ali aquele período de festas, longe de seus familiares e amigos. Por que os “terroristas” mereciam tanta atenção?
       Eny era mais do que mera advogada. Destacava-se pela garra, pelo destemor frente ao aparato necrófilo da ditadura. Pequena na estatura, era grande na coragem. Mineira de Juiz de Fora, pele cor de amêndoa, tinha o raciocínio ágil e transpirava afeto. 
       Em 13 de junho de 1972, Paulo Vannuchi, um dos clientes da doutora Eny, compareceu à Auditoria Militar de São Paulo para depor como testemunha em um processo. Eny denunciou ao juiz Nelson da Silva Machado Guimarães a tortura que ele sofrera no DOI-CODI, a 9 de maio: apontou o hematoma no olho esquerdo e os sinais de enforcamento no pescoço. Pediu que ele abaixasse a calça e mostrasse hematomas na virilha e na perna esquerda, esfolamentos e escoriações diversas. Paulinho declarou que os torturadores, frente à sua resistência em não ingerir alimentos no decorrer da greve de fome, introduziram um tubo em seu ânus, por onde injetaram leite. 
       A única reação do juiz foi prometer que o prisioneiro não retornaria ao DOI-CODI. 
       A coragem da Eny era desproporcional ao seu tamanho. Tinha a quem puxar: trabalhou no escritório do famoso advogado Sobral Pinto, no Rio. Católico convicto, Sobral defendeu Luiz Carlos Prestes, líder comunista, sob a ditadura de Getúlio Vargas.
       Graças também ao empenho de Eny, a memória nacional resgatou, na obra “Brasil Nunca Mais” (Vozes), assinada por Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor Jaime Wright, as atrocidades cometidas pela ditadura. 
       Foi ela quem encontrou as vias transversas para acessar os arquivos do Superior Tribunal Militar, em Brasília, e microfilmar todos os processos de presos políticos.
       Na noite de Natal de 1972, a Penitenciária de Presidente Venceslau programara missa celebrada pelo capelão, um padre espanhol mais próximo dos carcereiros que dos condenados, na contramão de Jesus. Apelamos ao diretor para que Eny pudesse participar. Seria ele tão desalmado a ponto de permitir que ela, distante do Rio, ficasse sozinha num quarto de hotel naquela noite significativa? Vencido por nossa pressão, o homem cedeu. 
       Armou, no pátio da penitenciária, um palanque e, dentro dele, o altar. Lá embaixo, quatrocentos presos uniformizados e enfileirados. No momento da homilia, o celebrante deu a palavra ao diretor. Pronunciou um farisaico discurso, como se todos ali não soubessem que ele era conivente com torturas, castigos abusivos em solitárias, onde presos ficavam semanas trancados nus, às escuras, suportando o frio e a água com que os guardas molhavam o chão. 
       Em sua ânsia demagógica, o diretor cometeu o erro de exaltar o gesto da doutora Eny Raimundo Moreira, que viera de uma cidade distante para comemorar o Natal com seus clientes. Pediu uma salva de palmas à Eny. E ainda solicitou que ela dissesse uma palavra aos “reeducandos”. 
        Surpresa e bastante emocionada, ela nos dirigiu a palavra. Impossível reproduzir o que disse. Um canto de amor não pode ser descrito. Como doce perfume, suas palavras contagiaram o ambiente. Seu carinho penetrou o coração de cada presidiário. Só lembro que terminou dizendo: “Beijo cada um de vocês”. Mas não se limitou à palavra. Emocionada, preferiu uma atitude: 
       — É noite de Natal – disse – e quero dar um abraço em cada um de vocês.
       Abandonou o microfone e veio em direção aos bancos onde estávamos. Desceu do palanque-altar e, durante duas horas, sob um silêncio clamoroso, enquanto a banda de presidiários tocava as peças finais, ela caminhou lentamente entre aqueles homens uniformizados, enfileirados nos bancos, e abraçou e beijou cada um daqueles quatrocentos homens, a maioria há anos sem receber o carinho ou o toque de uma mulher. Choravam convulsivamente. Corações de pedra transmutavam-se em corações de carne, como reza a Bíblia. 
       Muitos companheiros não suportaram a ternura que extravasava daquele gesto. Um deles disse a ela: “É a primeira advogada que vejo advogar com amor”. Outros disseram: “Frei, por esta mulher, eu mato qualquer um” (dentro daquele mundo, isto era uma forma de elogio); “Eu não acreditava em gente boa, mas agora sou obrigado a reconhecer que estava errado”; “Não podia haver melhor presente”.
       Durante muito tempo, o assunto ali foi a presença de Eny. 
       Na segunda-feira, 25 de dezembro, Eny voltou cedo para passar o dia conosco. Foi a única visita que nós seis recebemos. Demos a ela, de presente, desenhos feitos pelo Caixe e o Mané. O time campeão da casa ofertou medalhas e faixas, que ela recebeu feliz. Todos queriam agradecer-lhe de alguma forma.
       Eny partiu na manhã seguinte. Mas sua presença perdurou. 
       Assim era Eny, advogada que não sabia atuar, em nível efetivo, sem o complemento do afetivo. Foi o anjo da guarda de centenas de presos políticos da ditadura e, como discípula de Sobral Pinto, defensora intransigente dos direitos humanos. 
       A história do Brasil a merece. E as vítimas da ditadura agradecem a vida, a coragem e a competência desta encantadora mulher, que aos 77 anos transvivenciou em São Paulo, acometida por problemas no coração e nos rins, na terça, 4 de janeiro de 2022. 

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Fotos de Vera Durão e João Batista Damasceno. Na capa, foto do portal Conjur

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