30 de agosto de 2022 10:14 por Da Redação
Por Fernanda Rosário, do portal Alma Preta
Três mulheres foram condenadas pelo crime de injúria racial em Maceió/AL após ataques a uma criança moçambicana que morava no mesmo condomínio. A sentença foi proferida no dia 9 deste mês pelo juiz Ygor Vieira de Figueirêdo, da 14ª Vara Criminal de Maceió, que julgou como procedente a denúncia feita pela mãe da vítima sobre casos de racismo e xenofobia vivenciados por sua filha enquanto moravam em um edifício no bairro do Pinheiro, na capital alagoana.
Originalmente, cinco mulheres foram a julgamento por conta da mesma ação penal movida pelo Ministério Público a favor da vítima, porém duas foram absolvidas, porque não foi possível atribuir a responsabilidade específica a elas sobre xingamentos racistas e xenófobos. Segundo os autos do inquérito policial, no dia 1º de março de 2017, por volta das 16h30, as acusadas praticaram o crime de injúria contra a vítima que, na época, tinha 10 anos de idade.
O documento ainda informa que na ocasião a criança e sua mãe residiam há cinco anos no condomínio e as acusadas eram vizinhas da família, sendo uma delas a síndica. Sónia André, mãe da criança, relata que, desde sua chegada ao prédio, sendo as únicas pessoas negras e africanas, ela e sua filha recebiam perguntas preconceituosas de caráter racista e xenófobo.
“São uma sequência de atos: minha filha sendo chutada, minha filha sendo proibida de brincar no prédio, minha filha sendo mandada para que voltasse para o país dela e que aqui não era o lugar dela. Enfim, foram muitos episódios que aconteceram. Sabemos como é que o negro vive a todo momento sendo xingado, mas chegou um tempo que não dava mais”, ela conta.
O episódio estopim para Sónia, que a levou a procurar a Justiça após muitos episódios enfrentados, foi quando em um final de semana, enquanto ela seguia com atividades dentro de casa, sua filha desceu para brincar no pátio do prédio junto a outras crianças. Três moradoras do prédio apareceram e começaram a expulsar a filha de Sónia do espaço.
Conforme a menina resistiu a sair de uma área comum a que também tinha direito como as outras crianças, teve como resposta das outras moradoras palavras como “sai daqui, sua peste. Vá brincar em seu país. Saia sua pirralha”.
As palavras foram acompanhadas de perseguição no pátio enquanto a criança corria e, em um momento, uma das senhoras levantou uma sandália contra ela. Quando Sónia foi procurar saber o que acontecia, relata que também ouviu palavras racistas e xenofóbicas direcionadas a ela.
“Eu instruía minha filha sobre como ela deveria se comportar nesse aspecto para que ela não saísse de lá. Então ela resistia [a sair de áreas comuns do prédio]. Quando minha filha descia, perseguiam ela, mas as outras crianças brancas continuavam brincando no prédio. Então o problema não era as crianças brincarem, era a criança preta que estava lá brincando”, conta Sónia André.
“A expulsão dela pelas sandálias já foi a gota d’água, mas ela sempre era proibida de descer. Sempre mandavam ela sair com palavras como ‘sai, aqui não é seu lugar’. Então se não há convivência entre vizinhos, se não há respeito enquanto seres humanos, então que se cumpra a lei”, relata a mãe da vítima.
Outro caso relatado também nos autos do processo, ocorreu no mesmo período e envolveu a síndica e a família dela. Na ocasião, a filha de Sónia e outra criança, em protesto pela retirada de um sofá que ficava na área comum do prédio, fizeram uma pintura na parede. Segundo Sónia, a pintura havia sido percebida por ela, que ia comunicar às crianças, incluindo sua filha, sobre o motivo de não se fazer aquilo e chamar todos os envolvidos para ajudar na limpeza.
Entretanto, em um momento que Sónia saiu para comprar pão, sua filha chegou de um passeio e foi a única abordada pela síndica sobre a pintura na parede. “Por que não vai fazer isso no seu país? Aqui não é seu país. Aqui não é sua casa”, foi a fala da síndica dirigida à menina e escutada por outras pessoas que estavam no condomínio.
Nos autos do processo, a criança relata que algumas moradoras proferiam xingamentos sempre direcionados exclusivamente a ela, em tom de ameaça, o que a deixava temerosa e em clima de medo e tensão. Também colocou que os comentários eram frequentes, exemplificando que a cada 10 vezes que ia brincar, em 9 aconteciam agressões verbais.
O documento de sentença também coloca que todas as rés negaram as acusações e passaram a apresentar, individualmente, suas versões sobre os fatos, de modo a demonstrar que nunca ofenderam a dignidade da criança ou de sua mãe, acentuando que os problemas as quais possuíram se relacionaram, em síntese, aos barulhos advindos das crianças do prédio.
14 anos de frequentes ataques racistas e xenofóbicos
Sónia André, que é acadêmica, atriz, diretora, escritora e produtora de cinema, relata que sua família chegou de Moçambique ao Brasil em 2007 e, desde então, já enfrentou e viu a filha passar por várias situações discriminatórias.
Muitos casos são exemplificados em seu artigo “Você é de onde?”, publicado na Revista Odeere, do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade. “No Brasil, sei, soube (descobri ou o racismo gritou/vociferou) que tenho cor, que sou ‘negra’ e senti o que é ser ‘negra’. Em casa sei que sou negra, cidadã, pessoa, gente, ser humano”, palavras de Sónia que abrem o artigo publicado.
“Quando nós chegamos, o racismo se deu em todos os lugares que nós passávamos. Minha filha vive isso desde que chegamos aqui, desde bebê. Quando eu fui pra justiça, minha filha estava com dez anos”, relata Sónia.
No primeiro prédio em que moravam, conforme relatado no artigo disponibilizado na Revista Odeere, sua filha foi pisoteada por outras crianças e atacada com palavras como “toma sua neguinha, volta para sua terra, volta! Volta para África!”. Na ocasião, ela tinha 8 meses de vida, estava começando a dar os primeiros passos e tudo aconteceu em um momento em que a mãe foi buscar água para ela.
“Isso foi na primeira moradia onde nós nos estabelecemos, chegamos lá em 2007 e saímos em 2012. Então, nos mudamos para esse outro apartamento onde foi a gota d’água para mim, porque as coisas iam se repetindo em todos os lugares que andávamos. Em todos os prédios, nós éramos as únicas negras e africanas”, comenta.
Condenação
De acordo com o documento de sentença, foram imputadas às acusadas a prática do crime de injúria previsto no Artigo 140, § 3º do Código Penal Brasileiro. Ainda segundo os autos do processo, enquanto que na injúria racial a ofensa é dirigida a um indivíduo específico, no crime de racismo (diferente da qualificação atribuída), a agressão é contra uma coletividade, sem a necessária individualização do ofendido.
“Observa-se que no caso dos autos, em conformidade com a narrativa trazida na denúncia, foram realizados xingamentos com o objetivo de ofender a honra subjetiva da vítima, empregando palavras que propõe menosprezar, especificamente, suas características pessoais, com o intuito de intimidá-la a deixar de frequentar as áreas comuns dos prédios”, alega a fundamentação da sentença.
O advogado Alberto Jorge Betinho, que assessora Sónia André junto ao advogado Alberto Anderson e é assistente de acusação do Ministério Público no processo, conta que, apesar de querer que o crime fosse apurado como racismo, foi respeitada a qualificação do crime conforme foi apresentada em sentença.
Duas das acusadas foram condenadas a 1 ano e 2 meses de reclusão. A terceira acusada ficou com 1 ano, 5 meses e 15 dias de reclusão. Todas terão que pagar multas de acordo com o salário mínimo vigente na época dos fatos, além de um valor que deverá ser pago à vítima ou entidade com finalidade social de 3 salários mínimos por cada condenada. A pena deverá ser cumprida inicialmente em regime aberto. Além disso, a pena privativa de liberdade também foi convertida em prestação de serviços à comunidade.
“Como o processo não transitou em julgado, foi sentença de primeiro grau, elas [mulheres condenadas]poderão recorrer dessa decisão ainda. Toda a pena só pode começar a ser cumprida no trânsito em julgado da sentença”, informa o advogado Alberto Jorge.
A vitória de uma mãe solo, negra e estrangeira
Sónia André fala sobre a importância de publicizar sua história e da criança para que saibam que a justiça pode ser feita, como foi em seu caso. Ela conta que o boletim de ocorrências foi realizado em 2017 e, de lá para cá, pensou muitas vezes que o processo não poderia chegar a uma solução. Foram muitos os desencorajamentos que, segundo ela, ouvia das vizinhas que foram denunciadas.
“A vitória de um negro e uma negra é a vitória de todas e todos nós nesse aspecto. Espero que essa condenação seja pedagógica. A lei existe para todas e todos. E se as pessoas não nos respeitam por simplesmente sermos seres humanos, que nos respeitem a partir daquilo que as leis nos dizem, tanto as leis nacionais, regionais e internacionais. Trata-se de erguer os punhos, de persistirmos e mostrarmos que a lei está lá. Resistimos e Existimos pela Teimosia.”, comenta a acadêmica.