19 de dezembro de 2022 4:35 por Geraldo de Majella
A escritora Vera Romariz, professora aposentada da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), doutora em Literatura Brasileira, lançou o livro Na rua das arvores cortadas, pela Viva Editora (2022, 83p.).
Poetisa, contista, crítica literária, Vera revela no livro segredos de família guardados num “cofre antigo”, cuja senha tem sido passada, oralmente, para sucessivas gerações da família.
As memórias de Vera Romariz vêm a público através de uma narrativa construída de tal maneira que o leitor é envolvido e se identifica como se fosse um roteiro cinematográfico.
A criança que ouvia e prestava atenção em tudo o que os adultos conversavam ao seu redor, cresceu procurando decifrar o significado das histórias cujos protagonistas eram os seus familiares.
As histórias, se não fossem registradas, possivelmente, desapareceriam com o tempo. Ao decidir escrever e publicar Nas ruas das arvores cortadas, julgamos que ela tem, certamente, outros motivos que não tão somente a preservação das histórias da família.
O ponto de partida da memorialista é o avô, o consagrado poeta penedense Sabino Romariz (1873-1913), fonte de inspiração e orgulho incontido da família. A morte prematura, aos 40 anos de idade, agravou ainda mais as duras condições de sobrevivência da família, tendo deixado a viúva e dois filhos ainda crianças. O poeta e professor não tinha bens materiais.
O espólio legado à família foi sua obra que é, simbolicamente, uma fortuna apropriada a título de herança intelectual destinada à cidade do Penedo e a Alagoas.
A obra de Sabino Romariz tem sido reeditada e lida pelos seus conterrâneos e, agora, com a publicação de Na rua das arvores cortadas, a neta apresenta o avô às novas gerações.
O fio condutor do livro é João Romariz, pai, funcionário público de vida discreta, mas com posições políticas definidas sem que tenha sido um militante partidário. Em 1936, durante o governo autoritário de Getúlio Vargas, foi preso acusado de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Essa injustiça o marcou definitivamente.
A prisão passou a ser um segredo ou assunto que não deveria ser falado nem entre os membros da família. Vera, filha das mais novas dos oito filhos, soube do fato quando já estava com dezoito anos de idade, e o irmão mais velho, o radialista e compositor Sabino Romariz Neto, comentou sem entrar em detalhes. A vontade de conversar era grande, mas, faltava abertura para falar do assunto com o pai. No livro, o relato é parcimonioso e sem maiores detalhes.
Em Memórias do Cárcere, o escritor Graciliano Ramos, também preso e acusado de ser comunista, fato inverídico que custou, assim como a João Romariz, meses encarcerado no Rio de Janeiro. Mestre Graça registrou no livro dois momentos:
Busquei refúgio noutro cubículo, onde um sujeito de pijama vermelho se ocupava em devorar uma penca de bananas, respirei com alívio nessa companhia. João Romariz. Bem. Conversando com ele, sentia-me à vontade. Era um nacional de fala dormente, alheio às ideias abstratas. […] Firmava-me nesse propósito, divagava singelamente com Romariz. (Vol. 1- p.209). João Romariz não nos repelia nem nos atraía, amável e neutro”, (Vol. 1-p.317).
João Romariz, segundo Vera, era amigo de alguns comunistas de Penedo. Na condição de convidado, participou de uma reunião do partido e assinou a lista de presença, documento obtido pela polícia – não se sabe como – que serviu como comprovação para que a prisão fosse efetuada.
O escritor Graciliano Ramos e João Romariz, depois de purgarem meses presos, foram soltos por falta de provas. Nenhum dos dois era filiado ao PCB; o escritor Graciliano Ramos, anos depois, em 1945, se filiou ao PCB. Na ocasião, o partido havia adquirido o registro legal junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Adolescente, Vera passava pela calçada em frente ao semanário A Voz do Povo, à Rua do Comércio, 606, e diz: “sempre que voltava do escritório de meu pai, via com certa tensão e curiosidade a sede do jornal dos comunistas. […] As portas estavam sempre abertas, mas me faltou coragem para entrar na sede jornal” (p.22).
As revelações feitas sobre as mulheres da família são testemunhos do quanto a sociedade penedense e alagoana eram opressoras e, ainda hoje, são conservadoras, evidentemente, bem menos do que foram durante o século XX. As mulheres conquistaram os seus espaços sociais e políticos reivindicando, disputando e lutando com sacrifícios.
Quando se refere ao papel desempenhado por Salvelina, sua mãe, traça o perfil da mulher que casou na adolescência com dezesseis anos, sem o consentimento da família. Ela fugiu com João Romariz, fato que esgarçou a relação com o pai. A definição de Vera é que o avô era “autoritário e severo, uma espécie de feitor incorporando atitudes de senhor diante de escravos” (p.48).
A adolescente logo foi mãe pela primeira vez e passou a viver uma vida de muito trabalho e obrigações domésticas, invariavelmente, destinados às mulheres. Na definição da filha, a mãe era uma “mulher intensa” por ter vivido e cuidado de tantos filhos. Ficou sem tempo para viver a sua vida, pelo menos, enquanto os filhos estiveram sob a sua responsabilidade. Com o tempo, procurou aproveitar a vida de outra maneira diferente do que havia vivido anteriormente.
As sessões matinês do Cine São Luiz são o momento onde “o mundo se alargou para dona Salve como uma tela da Metro” (p.43). A presença de uma mulher casada na sala de cinema desacompanhada na década de sessenta não era comum em Maceió.
A distância provocada pelo tempo para quem não viveu essa época pode dar a entender que se está falando de algo fictício. Essas histórias narradas por Vera Romariz vão além e, certamente, servirão de fonte para pesquisadores de múltiplas áreas do conhecimento.
Na rua das árvores cortadas foi a leitura mais agradável que fiz em 2022.
Obrigado, Vera!
1 Comentário
Verinha,fiquei feliz pelo seu mais recente livro.Adorei o sugestivo e forte título. Estou ansiosa para lê-lo.
Se tivesse sabido do lançamento,certamente lá teria estado, para aplaudí-la e abraçá-la.
Em tempo,estou a fazê-lo
Virtualmente.