19 de dezembro de 2022 4:35 por Da Redação
Por Marco Fernandes*, Globetrotter em Peoples Dispatch
A vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente do Brasil para um terceiro mandato em 30 de outubro deve rever as relações entre Brasília e Pequim. O Brasil está passando por uma grave crise econômica, política, social e ambiental. Combater a pobreza, retomar o crescimento econômico com redistribuição de renda, reindustrializar o país e reverter os abusos ambientais são tarefas urgentes, que exigirão do novo governo uma fineza nacional e internacional sem precedentes. A parceria econômica entre Brasil e China, que avançou muito nas últimas duas décadas, pode ser uma das chaves para reverter a crise que o Brasil enfrenta. Mas alguns desafios terão de ser enfrentados com diplomacia e planejamento estratégico.
Apesar dos “insultos” dirigidos pelo governo do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro à China, especialmente durante a pandemia, e do inevitável distanciamento das relações diplomáticas entre os dois países, o comércio bilateral entre Brasil e China tem aumentado. Em 2021, o comércio bilateral entre os países atingiu US$ 135,4 bilhões, com o Brasil registrando um superavit comercial de US$ 40 bilhões com a China, que só foi superado pela região de Taiwan e dois países, Austrália e Coreia do Sul. A China é o maior parceiro comercial do Brasil desde 2009, representando quase o dobro do volume comercial que o Brasil importou de seu segundo maior parceiro em 2021, os EUA (US$ 70,5 bilhões), com o qual registrou um déficit de deficit of $8.3 billion.
Uma relação comercial lucrativa, mas desequilibrada
A cesta de exportações do Brasil, porém, é vulnerável no longo prazo: não é muito diversificada e se baseia em produtos de baixo valor agregado. Os quatro principais produtos que exporta (minério de ferro, soja, óleo cru e proteína animal) responderam por 87,7% do total das exportações para a China em 2021. Entretanto, as importações de produtos chineses para o Brasil são altamente diversificadas, com predominância de produtos manufaturados, e com um alto índice tecnológico. Por exemplo, o principal item de importação da China para o Brasil (equipamento de telecomunicações) representou apenas 5,9% das importações.
O setor de commodities brasileiro, componente importante da economia, representou 68,3% das exportações brasileiras no primeiro semestre de 2022 e contribuiu durante anos para o aumento das reservas internacionais. Por outro lado, o setor de commodities tem alta concentração de riqueza, paga poucos impostos, gera relativamente poucos e empregos de baixa qualificação, está sujeito a mudanças cíclicas de preços e, em muitos casos, causa danos ambientais, que precisam ser melhor controlados pelo Estado. Nesse sentido, foi importante a iniciativa anunciada pela COFCO International — o maior comprador de alimentos brasileiros na China — de monitorar e proibir a compra de soja plantada em áreas de desmatamento ilegal no Brasil a partir de 2023.
Mas também vai exigir que o Estado brasileiro — que se tornou notório nos últimos anos por incentivar o desmatamento e a invasão das reservas indígenas — garanta a eficácia da iniciativa. A China precisa dos recursos naturais do Brasil para seu desenvolvimento, e o Brasil precisa do mercado chinês para suas commodities. Mas, a médio e longo prazo, o Brasil precisará buscar maior equilíbrio em sua agenda comercial se quiser voltar a ser uma economia sólida. Lembremos que em 2000, o principal produto de exportação brasileiro foram os aviões a jato da Embraer, enquanto em 2021, as principais exportações foram de minério de ferro e soja. Este é apenas um dos muitos sintomas da desindustrialização crônica.
O investimento é necessário, mas também é necessário diversificar
Os investimentos chineses no Brasil têm um perfil semelhante às suas exportações: robustos, mas não muito diversificados. Em 2021, o Brasil recebeu o maior número de investimentos chineses no mundo, totalizando US$ 5,9 bilhões (13,6% do total global). Entre 2005 e 2021, o Brasil foi o quarto maior receptor mundial de investimentos chineses (4,8% do total), atrás apenas dos EUA (14,3%), Austrália (7,8%) e Reino Unido (7,4%). Esses investimentos da China resultaram em uma contribuição fundamental de recursos para a economia brasileira, mas não vieram sem o seu conjunto de desafios. De 2007 a 2021, 76,4% dos investimentos chineses foram concentrados no setor energético (eletricidade e extração de petróleo e gás), enquanto apenas 5,5% foram para a indústria de transformação e 4,5% para obras de infraestrutura, entre outras maiores necessidades da economia brasileira.
O setor elétrico brasileiro foi o maior destino dos investimentos chineses (45,5% do total), mas parte disso correspondeu à compra de empresas estatais brasileiras por empresas estatais chinesas. Em 2017, a companhia chinesa State Grid adquiriu o controle acionário da CPFL Energia, uma companhia estatal do estado de São Paulo, e em 2021, a CPFL Energia adquiriu o controle da CEEE-Transmissão, uma companhia estatal do Estado do Rio Grande do Sul. Para o Brasil, estes não foram bons negócios e demonstraram a irresponsabilidade dos governos dos estados neoliberais do Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), que privatizaram ativos públicos estratégicos. A China — que nunca venderia uma empresa estatal de energia a estrangeiros — cuidou de seus próprios interesses e aproveitou uma oportunidade de negócios oferecida pelo mercado. Não foi um pacote de privatizações imposto pelo Fundo Monetário Internacional. Mas será que Pequim estaria disposta a aceitar outros modelos de investimento que trariam mais benefícios aos dois países?
O exemplo dos hermanos do sul
Desde 2021, Buenos Aires e Pequim firmaram uma série de acordos de investimento estratégico. Em fevereiro de 2022, a Argentina aderiu à “Nova Rota da Seda”, que deverá atrair US$ 23 bilhões em investimentos chineses para a Argentina. Antes disso, outros investimentos e projetos de empresas chinesas incluíram a reforma do sistema ferroviário argentino (US$ 4,69 bilhões) e, volumosos investimentos no setor elétrico, como 1) a expansão do Parque Cauchari, a maior usina solar da América Latina, que era originalmente uma parceria sino-argentina, 2) a construção do complexo hidrelétrico “Kirchner-Cepernic” na Patagônia (com custo superior a US$ 4 bilhões), e 3) a construção da usina nuclear “Atucha III” (com custo de US$ 8 bilhões).3 bilhões), cujo financiamento tem um período de carência de aproximadamente oito anos e, o mais importante, prevê a transferência da tecnologia nuclear chinesa Hualong — dominada em 2021 — para o Estado argentino, que controlará a usina.
O Brasil pode propor parcerias semelhantes às da Argentina, que são tão ou mais estratégicas, com benefícios mútuos. Por que não propor a troca de commodities (petróleo e gás) por infraestrutura e tecnologia com a China, como países como o Irã já propuseram? Ou a formação de mais joint ventures sino-brasileiras — que receberam apenas 6% dos investimentos chineses (2005-2020), enquanto as fusões e aquisições receberam 70% — que preveem a transferência de tecnologia para o Brasil?
O Brasil precisará de um esforço gigantesco para reindustrializar sua economia em vários níveis, como investimento em pesquisa e desenvolvimento, treinamento de mão de obra qualificada, financiamento e transferência de tecnologia. Nenhum outro país, como a China, tem condições financeiras, industriais e tecnológicas para cooperar com o Brasil em vários setores promissores, como veículos elétricos, tecnologia da informação, 5G, energia renovável, aeroespacial, biomedicina e semicondutores. Cabe ao Brasil propor um diálogo estratégico de alto nível com a China, que reafirmou no relatório do 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China que está empenhado em ajudar a acelerar o desenvolvimento dos países do Sul Global. “A China está preparada para investir mais recursos na cooperação para o desenvolvimento global. Está empenhada em diminuir a lacuna Norte-Sul e apoiar e ajudar outros países em desenvolvimento a acelerar o desenvolvimento”, disse o presidente da China, Xi Jinping, durante o congresso.
*Este artigo foi produzido pela Globetrotter. Marco Fernandes é pesquisador do Tricontinental: Instituto de Pesquisas Sociais, co-editor de Dongsheng e membro do coletivo No Cold War. Ele vive em Pequim.