Por Nara Lacerda, do Brasil de Fato
No início dos anos 1990, o engenheiro Augusto Guimarães Filho foi convidado pelo Arquivo Público do Distrito Federal a dar um depoimento sobre a concepção e a construção de Brasília. Braço direito do arquiteto Lúcio Costa, ele foi responsável por tirar o projeto da nova capital federal do papel e viu de perto os monumentos que viraram símbolo do Brasil serem construídos.
Ao narrar parte dessa experiência, Guimarães Filho resumiu o que parece ser um espírito de apreço à arte que perdura até hoje na cultura candanga, nomenclatura dada a quem construiu a cidade e usada até hoje para definir a primeira geração de trabalhadores e trabalhadoras que ocuparam o planalto central.
“Não há pessoa que não se comova diante das colunas do Alvorada. Pode ter espírito de porco, reclamar, protestar, mas é só deixar uma meia hora de contemplação, que no final a coluna está se impondo. E se impondo de uma maneira que é uma coisa nova, que é uma coisa inusitada, que é um negócio generoso”, disse o engenheiro.
O Palácio do Alvorada, ao qual ele se referia, é o mesmo que foi exposto ao país na primeira semana do ano pela primeira-dama Janja Lula da Silva com mobiliário danificado, obras de arte mal conservadas, infiltrações e falta de zelo em geral. O estado da joia arquitetônica, assinada por Oscar Niemeyer, é resultado dos quatro anos em que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ocupou o palácio com a família.
Poucos dias após a exposição do descaso, o país assistiu um novo ataque ao patrimônio nacional. Bolsonaristas invadiram as sedes dos três Poderes em Brasília e destruíram tudo o que encontraram.
O desprezo pela arte e pela memória ficou escancarado. Os extremistas destruíram quadros a facadas, roubaram peças que valem milhões, depredaram móveis históricos, defecaram e urinaram nos salões dos prédios públicos e filmaram a si mesmos durante toda a ação. Os vídeos e fotos, provas da barbárie, foram publicados em redes sociais.
A artista e pesquisadora, Tings Chak, afirma que a destruição do acervo artístico dos três palácios de Brasília “é muito simbólica do que o bolsonarismo representa”. Nascida em Hong Kong, ela viveu no Brasil ao longo dos primeiros anos do governo conservador.
Chak é diretora do departamento de arte do Instituto Tricontinental. Atualmente baseada em Pequim, ela assistiu às cenas do atentado na Praça dos Três Poderes de longe. Mesmo nas imagens à distância, a artista captou explicitamente o que classifica como uma “tragédia”.
“Mudei-me para o Brasil apenas alguns meses antes da eleição de Bolsonaro em 2018, após um golpe de Estado que durou dois anos. Meu primeiro ano no Brasil foi marcado por dois grandes incêndios. Um foi o trágico incêndio do Museu Nacional do Rio, onde a maior parte dos 20 milhões de artefatos foram destruídos. Em 2019, foram os incêndios na Amazônia, incentivados pelo ex-presidente. Estes momentos são simbólicos do projeto de Bolsonaro, que atende aos interesses da elite, do agronegócio e de uma extrema direita às custas do povo e do seu patrimônio nacional.”
O tratamento que o governo de Bolsonaro deu à arte e à cultura, de certa forma, foi um prenúncio dos ataques de 8 de janeiro. O professor de História Contemporânea na Universidade Federal de Juiz de Fora, Odilon Caldeira Neto, um dos coordenadores do Observatório da Extrema Direita Brasileira (OEDBrasil), considera o ato golpista “uma crônica de um desastre anunciado”.
Ele cita um exemplo que se tornou símbolo da gestão conservadora, a condução da Fundação Palmares ao longo do mandato. Sob comando de Sérgio Camargo, a instituição atuou para censurar e excluir qualquer tipo de manifestação artística não relacionada aos ideais de sociedade da direita
“As notícias sobre o estado de conservação do Palácio são uma síntese. Mas podemos lembrar, por exemplo, a forma com que a Fundação Palmares, sob a direção do Sérgio Camargo, fez espécies de emulações de exposições de arte ou de acervo degenerados. Index de livros, uma seleção de obras de arte, de documentação ,que, em certa medida, estavam distante daquele modelo de arte, de sociedade, de sexualidade, de família. Não podemos tomar o evento apoteótico que ocorre no dia 8 como algo desconectado de uma construção de uma noção de sociedade, de cultura, de arte, ao longo dos últimos anos.”
Tanto no atentado violento contra a capital federal quanto no estado de péssima conservação deixado no Palácio de Alvorada, os especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato observam muito mais do que a simples ignorância sobre a importância e o valor do que foi perdido. A ideia de destruir uma arte considerada imprópria ou degenerada é comum nas ideologias autoritárias e extremistas.
“Durante a invasão, muitas obras de arte foram destruídas. Isso incluiu uma das quatro cópias restantes da Constituição e uma obra-prima de Emiliano Di Cavalcanti. Foi trágico, mas muito simbólico. Di Cavalcanti foi um dos principais organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, elevando o Brasil e seu projeto nacional no cenário internacional. Ele também foi perseguido por sua filiação ao Partido Comunista do Brasil em uma época de grande luta internacional contra o fascismo. A luta contra o fascismo, que continua hoje em dia, é uma luta pela memória, pela história, e pelos símbolos que representam o povo, que preservam nosso passado a fim de criar um projeto nacional e popular para o futuro”, ressalta a artista Tings Chak.
O prejuízo também é material. Somente o quadro As Mulatas, de Di Cavancanti, vale de R$ 10 milhões a R$ 20 milhões, segundo o Ministério da Cultura. No Congresso, estimativas iniciais calculam perdas de pelo menos R$ 6 milhões.
Nesta quinta-feira (12), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) divulgou que a maior parte dos danos estruturais aos prédios podem ser contornados. A avaliação sobre o estrago causado a obras de arte, no entanto, vai demorar. Esse processo exige técnicas de restauração específicas e há peças de valor incalculável.
O professor Odilon Caldeira Neto afirma que a destruição das obras revela o objetivo de destruição institucional da própria democracia. Essa ideia permeia o bolsonarismo em diversos aspectos.
“O culto à autoridade, a uma certa forma de personalidade autoritária, traz consigo também uma ideia da construção de uma visão de mundo conspiracionista, de culto à ideia de tradição, processos e ideias de purificação de identidades, de individualidades. Então, nesse sentido, a arte, a educação, a cultura, a intelectualidade são lidas por muitos desses movimentos, dessas facetas das direitas globais mais extremadas, como elementos de degeneração de tradições, de uma ideia de masculinidade, uma ideia de sociedade, uma ideia de nacionalidade”.