Por Shirley Pinheiro, do portal Vermelho
A melhor cantora do milênio, de acordo com a rádio britânica BBC, é brasileira, preta e periférica. Nascida no dia 23 de junho de 1930, Elza Soares carregou na pele, nos olhos e na voz, durante seus 91 anos de existência, a dororidade de uma mulher que não se curvou aos sofrimentos da vida e transformou as lágrimas em samba — “mulher de moral não fica no chão/ nem quer que ninguém lhe venha dar a mão/ Reconhece a queda/ Mas não desanima/ Levanta, sacode a poeira/ E dá a volta por cima”.
Um dos maiores nomes da música popular brasileira, Elza Soares nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, na favela de Moça Bonita, onde hoje é conhecida como Vila Vintém. Filha de um operário e de uma lavadeira, aos 12 anos foi obrigada pelo pai a se casar com um homem dez anos mais velho, aos 13 virou mãe e aos 21 tornou-se viúva. De seu primeiro casamento, Elza teve cinco filhos, dois deles morreram de fome ainda bebês. Suas manifestações artísticas iniciaram ainda na infância, mas foi só em 1953 que iniciou sua carreira, quando venceu o teste para a Rádio Tupi, no programa “Calouros em Desfile”, de Ary Barroso.
Em 1962, foi ao Chile como representante do Brasil na Copa do Mundo. Foi nesse período que conheceu e se apaixonou pelo jogador Garrincha. Por alguns anos, os dois viveram um romance clandestino, uma vez que ele era casado, o que fez de Elza alvo de perseguições e acusações de ser amante do jogador e estopim para o fim de seu casamento. Elza e Garrincha casaram em 1966 e ficaram juntos por 17 anos, no entanto, com a aposentadoria dos campos, veio o alcoolismo por parte do jogador, que resultou em sessões de agressão à esposa, mais tarde denunciadas através da canção “Maria de Vila Matilde” — “‘Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Com a separação, em 1982, Elza foi novamente perseguida, dessa vez acusada de abandonar o jogador num momento crítico, enquanto enfrentava o alcoolismo.
A vida e a arte de Elza Soares foram marcadas pelas lutas sociais. Foi perseguida pela ditadura militar e obrigada a exilar-se na Itália, ao lado de Garrincha, quando sua casa foi metralhada, em 1970.
Referência no combate à violência contra a mulher — “Cadê meu celular? Eu vou ligar prum oito zero/ Vou entregar teu nome e explicar meu endereço” — e na luta contra o racismo — “A carne mais barata do mercado é a carne negra” —, foi uma importante aliada da comunidade LGBTQIA+ — “Pervertido, mal amado, menino malvado, cuidado/ Má influência, péssima aparência, menino indecente, viado/ A placa de censura no meu rosto diz/ Não recomendado à sociedade”. Sua missão era dar apoio às causas menos favorecidas, uma vez que a pobreza e o preconceito se mostraram companheiros pouco agradáveis em sua trajetória.
Sua obra conta com mais de 30 discos, que misturam samba, jazz, hip hop, funk e música eletrônica, repleta de parcerias com grandes vozes como Liniker, Pitty, Ana Carolina, Iza, Linn da Quebrada e muitas outras.
A morte de Elza Soares, em 20 de janeiro de 2022, integrou o período de luto que o país já vinha enfrentando desde o início da crise sanitária do Covid-19, com as perdas de grandes nomes da arte, como a atriz Nicette Bruno e o humorista Paulo Gustavo, além da morte precoce da cantora Marília Mendonça, em um acidente de avião.
Como era o seu desejo, até o fim, cantou a mulher do fim do mundo. O último lançamento de Elza Soares, Elza Ao Vivo no Municipal, foi gravado dois dias antes de sua morte, no Theatro Municipal de São Paulo, e estreou postumamente, no dia 13 de maio, data em que os umbandistas celebram o dia de preto velho e que é marcada pela resistência ao racismo. Considerado o Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo, em referência à data da abolição formal da escravatura em 1888, o “dia 13 era o dia em que Elza costumava reunir os amigos e cozinhar para eles um feijão especial”. O álbum é uma reunião de quinze canções “que contam passagens de sua vida e como ela enxergava o mundo aos 91 anos”, gravado num espaço elitista, mas que foi conquistado uma mulher, negra e sofrida, de origem pobre e periférica, “que por décadas passadas foi barrada em hotéis de luxo”, e que “aos 91 anos realizou um sonho, reinando no Theatro Municipal de São Paulo”. A obra é uma seleção que enche de saudades o peito, e os olhos de lágrimas.