Surpresa: a primeira impressão sobre o presente entregue pelo carteiro logo se desfez. Na orelha de “Tempo dos Cardos” (expressão recolhida de um poema de Manuel Bandeira), consta que o autor Celso Horta foi preso em 1969, aos 21 anos, em São Paulo, como militante da ALN, comandada pelo ex-deputado comunista Carlos Marighella. Após deixar a prisão em 1977, formou-se em comunicação social e trabalhou pelo resto da vida na imprensa partidária (PT) e sindical (CUT).
Nesta breve nota biográfica, não se menciona a ABR – Agência Brasileira de Reportagem, típico órgão da imprensa nanica tocado Celso Horta com a ajuda de amigos em 1980. Foi aí que o conheci em São Paulo. Depois disso, nunca mais nos encontramos.
Assim, ler “Tempo dos Cardos” (Expressão Popular, 342 páginas) significou uma retomada de contato, poucos dias depois de saber da morte do autor – Celso tinha 75 anos e não chegou a ver impressa a obra a que dedicou seus últimos dez anos de vida. No lançamento em São Paulo, no dia 23 de maio, falou por ele sua filha Joana Horta.
“Tempo dos Cardos” não esconde origens nem objetivos: é uma narrativa de militante de esquerda. Enaltece dirigentes da guerra revolucionária contra a ditadura militar e o imperialismo ianque, mas focaliza com inequívoco faro jornalístico a história das dissidências da esquerda brasileira sobre como enfrentar o governo militar durante os chamados anos de chumbo (1968/1980).
Embora faça menção a diversos episódios ocorridos no período acima, o narrador se concentra sobretudo na história do Movimento de Libertação Popular (Molipo), pequena organização política saída do ventre da Aliança de Libertação Nacional (ALN). O Molipo nasceu como “dissidência armada” do Partido Comunista Brasileiro (PCB), quando este decidiu que não pegar em armas contra o regime autoritário.
Boa parte do livro procura recuperar a trajetória de João Leonardo da Silva Rocha, baiano como Marighella. Nascido em 1939 em Amargosa, ele morreu aos 36 anos no sudoeste da Bahia, onde se achava trabalhando como peão de fazenda numa região infestada de grileiros e posseiros de terras devolutas.
Professor secundário e estudante de Direito em São Paulo, João Leonardo era culto e possuía liderança, mas na luta para não ser
preso acabou se isolando no interior do Nordeste. Por três anos sobreviveu como sitiante solitário em Pernambuco. Quando se sentiu acuado por uma comitiva de policiais militares da Bahia, fugiu para o Sul em busca de contato com companheiros de luta. José Dirceu, um deles, sobreviveu cinco anos com nome falso em Cruzeiro do Oeste, PR, de onde voltou à vida normal graças à anistia de 1979.
A maioria dos molipeanos participou de treinamento de guerrilha em Cuba. Alguns não voltaram para o Brasil ao se dar conta de que não teriam condições objetivas de sobrevivência no país natal. Em sua narrativa, Horta fala não só dos cabeças, mas de militantes que trabalharam em “atividades anônimas” na retaguarda dos movimentos guerrilheiros.
No apoio logístico, destacou-se Ana Cerqueira Cesar Corbisier, que aparece em vários trechos do livro, sempre com uma participação luminosa. Nascida em São Paulo, formada em sociologia na USP, ela se afastou dos filhos para lutar contra a ditadura.
Em dado momento da história, saiu de Havana a fim de recuperar o contato com João Leonardo, extraviado no Nordeste do Brasil. Depois de um mês peregrinando por cidades como Arcoverde, Caruaru e Garanhuns, reencontrou o companheiro – só para continuarem se escondendo.
Após três dias de pura deriva na região mais pobre do Brasil, os dois se separaram sem trocar endereços. Fugitivos, sabiam que a guerra estava perdida. Seu objetivo era sobreviver para, de alguma forma, contar o que aconteceu. É o que se espera ainda da socióloga Ana Corbisier.
Aos 82 anos, ela deu uma rara contribuição ao livro de Celso Horta, mas tudo indica que tem munição para ir mais longe e mais fundo. Graças a essas historietas humanas diluídas na obra final de Celso Horta, os leitores podem ter uma boa noção do quanto foi desigual a luta armada contra a ditadura militar: algumas centenas de pessoas de esquerda reunidas em organizações precárias, mal armadas, praticamente sem apoio externo, foram massacradas por um numeroso exército profissional, bem equipado e com cobertura política para praticar atrocidades em unidades militares clandestinas.
Essa crônica policial-militar é bem conhecida, mas de tempos em tempos aparecem novidades que clamam por justiça. Uma das revelações de “Tempo dos Cardos” é que falta confirmar onde, no sudoeste da Bahia, foi sepultado João Leonardo, abatido pela Polícia Militar baiana em Palmas do Monte Alto em novembro de 1975. Ali perto, em Guanambi, vivia o violeiro Elomar Figueira de Melo, que dedicou uma “incelença” ao conterrâneo falecido.
Falta saber também qual foi a participação dos órgãos federais como o Serviço Nacional de Informações na morte do “guerrilheiro” identificado pelo outro lado como “pistoleiro”. Por falta de uma melhor organização cronológica, o livro de Celso Horta antecipa informações que se repetem mais de uma vez em algumas partes do livro. Entretanto, é melhor repetir do que esconder, falsear ou omitir.
“Tempo dos Cardos” tem qualidades para figurar na História como uma das mais ricas narrativas sobre os anseios, motivações e temores dos que há mais de 50 anos pretenderam derrubar a ditadura. Como se sabe, a luta continua.
* Jornalista e escritor.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.