sexta-feira 10 de janeiro de 2025

35 anos da Constituição de 1988: “O pequeno grande PCB”

 

Fernando Santana (terno branco), Augusto Carvalho e Roberto Freire no plenário da Câmara Federal. Foto: Correio Braziliense.

Davi Emerich, jornalista do Senado.

 

Eles eram poucos, não cantaram a Internacional baixinho como registrou Ferreira Gullar em belo poema sobre os fundadores de 1922, mas tiveram um grande papel na discussão e construção da Constituição de 88, a mais avançada do país. A bancada do PCB, legalizado então há poucos anos, era composta por três parlamentares apenas, mas com uma influência no Congresso que ultrapassava a lógica da política.

 

Parece que o perfil de cada parlamentar comunista tinha sido esculpido por alguma razão indecifrável, que se encaixava em um mosaico à perfeição.

 

Fernando Santana, um mito baiano, querido por todos, misturava convições socialistas a um forte nacionalismo e era a ponte de prestígio junto a Ulisses Guimarães e a outras lideranças expressivas, muitas delas forjadas antes do regime militar. Era convocado sempre pelo doutor Ulisses para falar por mais de hora na tribuna, segurando a sessão para que as reuniões de acordo acontecessem. Se preciso fosse, cumpriria esse papel por horas, “a la Fidel”, tudo de improviso, citando números, metido dentro de um indefectível terno branco engomado à moda dos antigos coronéis do cacau.

 

Com a mania de chamar todo mundo de “seu corno” e de dar tapas fortes no peito dos amigos (certa feita levou a nocaute o deputado baiano direitista José Lourenço, que acabara de sair de uma cirurgia cardíaca) tinha por hábito cochilar nas sessões. Algumas vezes seus sapatos eram escondidos por “molecagem” de Dante de Oliveira e João Hermann Neto e ele ia só de meias para o gabinete, sem reclamar.

 

Augusto Carvalho, o caçula da turma, respondia principalmente pelas questões trabalhistas e sindicais, usando do prestígio que obtivera como ex-presidente do Sindicato dos Bancários do Distrito Federal. Travou debates memoráveis sobre o modelo sindical, a favor da unicidade e contra o pluralismo que informava o nascente Partido dos Trabalhadores, este ainda com uma bancada igualmente diminuta.

 

O maestro da turma era Roberto Freire, debatedor, formulador e com bom trânsito em todas as correntes políticas, sempre afirmando suas posições de esquerda.

 

Invariavelmente, nas sessões mais tensas, Freire era presença marcante no microfone frontal à Mesa para orientar as votações. Dezenas de deputados seguiam a orientação do comunista pernambucano e não a de seus líderes.

 

Freire foi o idealizador da chamada emenda aglutinativa, que não existia no regimento das Casas e da Constituinte. Foi exatamente essa inovação que permitiu que centenas de emendas se transformassem em um mero artigo de três linhas. E que centenas de parlamentares pudessem propagar junto às suas bases serem autores de várias partes da Constituição. Coisas da política!

 

Coragem incomum era uma das marcas de Freire, para além de sua capacidade de articulação. Certo dia, a UDR de Caiado, com milhares de manifestantes em Brasília, explodiu em alegria na esplanada quando conseguiu aprovar anistia para as dívidas de todos os produtores rurais, incluindo fundações privadas na condição de jabutis. A festa rolava solta, de repente a frustração: Freire aprovara uma subemenda, restringindo o benefício apenas para os micros e pequenos agricultores.

 

O Congresso foi invadido, o Túnel do Tempo tomado, a segurança da Câmara querendo tirar Freire do prédio pelo Anexo 1. Teimoso, o líder comunista não aceitou o conselho e abriu passagem entre os manifestantes, paletó desabotoado, em direção ao seu gabinete no anexo 4. Sob a Biblioteca fez um discurso duro após alguém gritar “vendido aos banqueiros”. Todos ficaram calados e o deputado seguiu o seu caminho, sem nenhum traço de temor.

 

Naquele dia ficou parecendo que realmente os céus protegem os doidos!

 

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