Por Maria Carolina Santos, Inácio França e Sérgio Miguel Buarque, do Marco Zero
“Abelha é sinônimo de ganho maior e proteção do meio ambiente”. O autor dessa definição é um rapaz de 25 anos que passa boa parte do seu tempo convivendo com vizinhos e vizinhas bem mais velhos que ele nas atividades da associação de pequenos produtores, pessoas na casa dos 70 anos que enfrentaram tanto as grandes secas da segunda metade do século passado, quanto a prosperidade trazida pelas cisternas e pelos programas governamentais a partir dos anos 2000.
Na infância, Jair Cardoso de Matos pensava que seu destino seria viver da criação de caprinos, o trabalho mais comum entre os homens de Uauá, um município baiano de pouco menos de 25 mil habitantes, a 425 quilômetros de Salvador. Na convivência com os idosos, não demorou para ele perceber que os bodes e cabras tinham se tornado um “negócio sem futuro” para os sertanejos.
A explicação para a pouca viabilidade econômica da caprinocultura está na própria caprinocultura. Jair sabe explicar melhor: “A caatinga está degradada por causa do sobrepastoreio, são tantos bodes e cabras comendo que eles tem de andar mais para encontrar o que comer, aí demoram a pegar peso. Por isso, os criadores têm de vender os bichos ainda magros, aí vendem barato”.
Essa é um dos motivos que levou o rapaz a criar abelhas. Mas não qualquer abelha.
“Ainda estou começando, mas optei pelas abelhas sem ferrão nativas da caatinga, as meloponíferas”.
Essa escolha ajuda a entender o segundo motivo de Jair para abraçar a apicultura: a luta pela preservação da caatinga, bioma que tem 13% de sua extensão ameaçado pela desertificação. Além de contribuir para reduzir o risco de extinção de espécies de abelhas ameaçadas, a presença desses insetos na caatinga multiplica a velocidade de polinização da vegetação.
“Para ganhar dinheiro com a apicultura não é preciso desmatar. Pelo contrário, quanto mais caatinga, melhor. É o contrário da pecuária”, explica Jair Matos, que pretende fazer faculdade de Agroecologia ou Educação no Campo enquanto ganha a vida com as abelhas.
As abelhas meloponíferas são aquelas que perderam o ferrão ao longo do processo evolutivo. Ao contrário das abelhas com ferrão, as melíferas, que se dividem em apenas oito espécies de um único gênero (Apis), as meloponíferas possuem dezenas de gêneros e pouco mais de 250 espécies somente no Brasil. No semiárido, as mais comuns são a mandaçaia (Melipona mandacaia), a jandaíra (Melipona subnitida), a jataí (Tetragonisca angustula) a moça-branca (Frieseomelitta doederleini) e a mosquito (Plebeia flavocincta).
Mel caro e delicado
Quando o apiário de Jair estiver produzindo normalmente, o que deve acontecer ainda este ano, cada enxame poderá produzir até dois litros de mel a cada florada. Parece pouco, mas cada litro de mel de jandaíra ou manassaia pode custar de R$ 120 a R$ 200, mesmo quando comprado diretamente ao produtor. No mercado, o preço é bem mais alto, podendo chegar a R$ 600.
A maior parte da produção é escoada com apoio da Coopercuc, a sigla pela qual os agricultores da região chamam a Cooperativa da Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá.
Mais experiente, o técnico agrícola Tamilo de Souza Costa, de 34 anos, vende o mel de mandassaia que produz junto com seu pai, Nestor Rodrigues Costa, de 66, no quintal do sítio da família no Frade, povoado de Curaçá, município vizinho a Uauá. Uma garrafinha de 50 ml custa R$ 10 – nessa região da Bahia, os apicultores costumam usar litro para medir volume do mel e não o quilo, medida mais comum em outras regiões do Nordeste, como se verá mais adiante nesta reportagem.
Integrante da equipe de assistência técnica do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada, o IRPAA, organização não governamental criada em 1990, Tamilo acredita que a valorização se explica tanto pela raridade das abelhas sem ferrão, quanto pela imagem positiva do produto. Além de ser usado como antibiótico e antiinflamatório natural, o mel das meloponíferas ganhou fama como ingrediente da alta gastronomia internacional, principalmente depois que o midiático chef Alex Atala, proprietário do DOM, um dos restaurantes mais caros do Brasil, passou a divulgar que costuma usar em suas receitas.
As colmeias usadas pelos apicultores para abrigar os enxames das meloponíferas são bem menores das colmeias das abelhas africanizadas. Pouco maiores do que uma caixa de sapato, parecem mais uma casa de bonecas e dão ideia de como as abelhas nativas são mais simples de criar do que suas agressivas primas com ferrão. “Não precisa deixar as caixas longe, no meio da mata. A gente só fez uma coberta no quintal para proteger as colmeias, então, quando precisa ir fazer o manejo elas estão aqui pertinho, não precisa nem colocar os trajes de segurança para tirar o mel”, explica Tamilo. Seu apiário está a menos de 50 metros da casa onde vivem seus pais, Nestor e Tereza.
De vez em quando, Tamilo e seu Nestor vistoriam caixa por caixa para afugentar as abelhas africanizadas, invasoras que tentam retirar própolis alheio para revestir suas próprias colmeias.
Se criar as abelhas sem ferrão é mais fácil, deixar o mel em condições de comercialização é mais complicado. “Assim que a gente retira da colmeia, o mel da mandassaia é muito ácido. É preciso deixar ele descansando um tempo para apurar e ficar no ponto ideal”, detalha o técnico do IRPAA. Aí é que está mais um detalhe que encarece ainda mais o produto: são necessários seis meses apurando para o mel ficar pronto para o consumo. Seu Nestor explica que o transporte desse tipo de mel também requer atenção, pois, às vezes, se maturação ainda não chegou ao final, há acúmulo de gases nas garrafas, o que pode provocar derramamento.
Venda garantida no Oeste Baiano
Anselmo Ferreira de Sousa tem 29 anos, mora na comunidade tradicional de Paixão dos Bois, em Campo Alegre de Lourdes (BA), e é um dos coordenadores do grupo de agricultoras e agricultores que assinaram contrato para fornecer alimentos ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). No seu quintal, planta macaxeira, abóbora, limão e hortaliças, variando o tipo de cultura de acordo com a época. Mas um grande diferencial para aumentar a renda da família é o mel. Ao todo, ele tem trinta colmeias. “Em um ano bom chego a produzir mais de mil quilos de mel”.
Desde que começou a vender para o PNAE, Anselmo viu a lucratividade do seu negócio aumentar bastante. No programa, ele consegue entregar seu produto com um preço justo, compatível com o de mercado. “Esse ano a prefeitura colocou na chamada pública a proposta de compra de dois mil quilos de mel em sachê ao preço de R$ 53,56 o quilo. Só pra vocês terem uma ideia, eu tenho registros aqui de pessoas que venderam parte da sua produção para atravessadores a R$ 8,00, R$ 9,00 o quilo”, explica Francisco José da Silva, conhecido por todos com Franzé, que é assessor técnico do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (SASOP).
Anselmo e os demais apicultores que entregam mel ao PNAE beneficiam o produto na Cooperativa de Apicultores de Campo Alegre de Lourdes (Coapical). Para colocar no sachê, que é uma exigência da chamada pública, eles pagam atualmente R$ 11 por quilo à cooperativa. Mesmo com o custo do beneficiamento, o agricultor consegue um preço até cinco vezes maior do que o que receberia do atravessador. Ou seja, um excelente negócio.
Talvez por isso, a apicultura esteja crescendo tanto em Campo Alegre e até atraindo jovens para o negócio. Um exemplo é Manoel José dos Santos Passos. Ele tem 20 anos e desde o ano passado começou a criar abelhas. “Eu comecei faz pouco tempo. Quem tinha a experiência era o pai e meu irmão. Comecei a estudar na escola de Sobradinho (BA), a fazer curso técnico, e fui ganhando experiência. Comecei a produzir mais esse ano”. Manoel tem quatro colmeias e, mais outras nove que mantém em parceria com um tio, vende 31 quilos anualmente para o PNAE.
O irmão do meio de Manuel, Hércules Pereira dos Passos, também cria abelhas. Atualmente ele tem 13 colmeias e produziu cerca de 80 quilos no ano de 2023. A exemplo do irmão caçula, entrega 31 quilos ao PNAE. Somando com as dos pais, a família tem 45 colmeias que produziu mais de 120 quilos em 2023. Juntos, entregarão 93 quilos ao PNAE garantindo uma renda de quase R$ 5 mil. Uma renda que, somada a conseguida com a comercialização dos outros produtos, contribui para que Manoel e Hércules permanecessem em Campo Alegre, não seguindo o caminho do irmão mais velho que deixou a cidade natal para tentar a vida em São Paulo.
Segundo a publicação de 2019 do Projeto Bahia Produtiva, do governo do estado da Bahia, mencionada por Denis Monteiro em sua tese doutorado Gente é pra brilhar: Interpretação do desenvolvimento de comunidades camponesas do Sertão do São Francisco, o estado é o terceiro maior produtor de mel do Brasil e o primeiro do Nordeste. Informou também que Campo Alegre de Lourdes é o município com maior número de apicultores da Bahia (3 mil), com uma produção que chega a 600 toneladas por ano, e que a Coapical tem 408 cooperados e comercializou 54 toneladas de mel na safra 2017/2018. A Coapical, portanto, comercializou neste período cerca de 9% do mel produzido no município.
As “africanizadas” de Novas Russas
Em Novas Russas, no Ceará, a centenas de quilômetros do sertão do São Francisco, o papel das abelhas na vida econômica dos agricultores cearenses é bem parecida. Há nove anos, Francisco Neurimar Marques morava no Rio de Janeiro. Assim como tantos moradores de Irapuá, comunidade de Nova Russas, no sertão do Ceará, havia migrado em busca de trabalho. Foram sete anos no Rio de Janeiro, mas já sentia que era hora de voltar. Mas como se manter no sertão? Umas conversas em Irapuá, pouco antes de ele ir para o Rio, ficavam martelando na cabeça dele. “Tinha um apicultor que passava vendendo mel. Ele falava da criação de abelhas e aí o pessoal daqui foi se interessando. Fiquei com vontade de criar abelhas também, mas acabei indo para o Rio”, lembra.
Quando voltou para o sertão, em 2015, decidiu que iria tentar ser apicultor. Hoje tem 102 colmeias de abelhas italianas africanizadas. Cada colmeia produtiva rende uma média de 20 quilos de mel por ano, que é vendido entre R$ 9,50 a R$ 15, o quilo. Ainda que o valor não seja tão bom quanto o que os apicultores que vendem para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) conseguem, Neurimar diz que tem dado certo para ele porque a compra de todo o mel que ele produz é garantida.
A produção dos apicultores de Irapuá é vendida pela Associação dos Produtores na Agricultura Familiar de Irapuá para empresas que exportam o produto. “A empresa que paga mais compra tudo. Vem no galpão da associação e pega o mel, o que facilita bastante pra gente, que não tem nenhum trabalho nem custo com envasamento, transporte, embalagem”, detalha Neurimar. “Conciliando com outros serviços, com outras atividades, a gente vai conseguindo viver no sertão”, completa.
A associação de Irapuá conta com uma pequena fábrica de beneficiamento do mel, que foi doada por meio do Projeto Dom Hélder Câmara, da ong Esplar. Com as máquinas da associação, os apicultores podem tirar rapidamente o mel das colmeias.
“Quando você vai colher o mel, você tira as melgueiras, que são compartimentos de madeira em que o mel fica armazenado”, explica o técnico agrícola e apicultor Francisco Luciélio de Carvalho, que também é o atual presidente da Associação dos Produtores na Agricultura Familiar de Irapuá. “Dizemos que a melgueira está operculada quando os favos estão maduros. As próprias abelhas é que sabem quando estão maduras, que é quando a umidade que tem no mel chega a 18%. Aí quando está fechada, com o mel no ponto certo, a gente traz aqui no galpão e faz a desoperculação, que é a abertura”, explica Luciélio.
Ele destaca que a apicultura é uma forma eficaz de fixar os jovens do semiárido no campo. “A cultura aqui era fazer 18 anos e procurar o centro ou ir para o Rio de Janeiro. A produção de mel tem uma importância gigantesca em manter os mais jovens aqui, porque é uma atividade que não é tão pesada como a agricultura. E também é mais lucrativa. Quando o preço está bom você consegue tirar uma boa renda”, afirma Luciélio.
Em Irapuá, as abelhas que os apicultores criam são as africanizadas. Há desvantagens, como o ferrão, o que faz com que se necessite de EPIs para trabalhar com elas, e vantagens, como a alta produtividade do mel dessas abelhas.
Neurimar destaca que a intervenção na natureza é mínima com a apicultura. Em Irapuá, as colmeias ficam dentro das matas da caatinga, longe do barulho das estradas, das pessoas e dos animais. É também por uma questão de segurança: as abelhas africanizadas são mais defensivas do que as abelhas nativas e as abelhas europeias. Com o manejo correto, contudo, podem dar de duas a três vezes mais mel do que outras espécies de abelhas existentes no Brasil.
A associação de Irapuá vende entre 2 mil e 5 mil litros de mel por ano, dependendo das floradas – melhor em anos de chuva, pior em anos de seca. As abelhas usam o néctar das flores nativas da caatinga: tem a florada da maniçoba, do mofumbo, do angico, do marmeleiro e das flores rasteiras. Um dos projetos futuros de Neurimar é de também vender propólis. “Vi que estão fazendo um estudo sobre o própolis da florada da jurema preta, que é uma árvore muito comum aqui na região. Parece que as abelhas tiram um própolis verde muito rico dessa florada, com propriedade medicinal. E isso, claro, vai ter um valor econômico também muito bom para nós apicultores”, diz.
Toda uma sociedade em uma colmeia
Tem uma frase que Neurimar ouviu há muito tempo e que gosta de repetir para explicar como funciona uma colmeia de abelhas. “São vários sistemas convivendo. Tem a monarquia, tem o socialismo e tem o capitalismo”, diz. “A monarquia é porque tem a abelha-rainha, que comanda tudo. O socialismo porque quem decide quem é a rainha e até quando ela vai governar são as abelhas operárias. E o capitalismo é porque elas produzem muito mais do que podem consumir”, completa.
Até os três dias de vida, todas as larvas de abelhas recebem um mesmo alimento, a geleia real, que é produzido por uma glândula das abelhas e é bastante rico em nutrientes. Após esse tempo, as abelhas operárias escolhem apenas algumas abelhas para continuar recebendo este alimento. Essas poucas abelhas depois disputam uma batalha mortal, onde apenas uma sobrevive e vira a abelha-rainha da colmeia.
“A abelha-rainha é a mãe de todas as outras, já que só ela tem os órgãos reprodutores desenvolvidos, justamente por conta da alimentação especial que recebe durante toda a vida”, diz. Uma abelha-rainha pode viver até sete anos, enquanto que as operárias vivem em média 45 dias e os zangões, os machos, por mais ou menos 80 dias. Saber os detalhes do funcionamento de uma colmeia é essencial para o manejo das abelhas e a eficiência da produção do mel. Em Irapuá, os agricultores contam com um grupo de apicultores dentro da Associação, onde se reúnem para trocar experiências e informações sobre as abelhas.