5 de dezembro de 2021 9:04 por Geraldo de Majella
Acordei ouvindo uma voz que me era muito familiar. Levantei, fiquei de pé para ter a certeza de que estava realmente acordado. De fato estava acordado, mas permanecia com a sensação de que estava ouvindo a voz. Era uma voz suave, pausada, carinhosa. Era a voz de dona Rosinha, minha avó. Passados tantos anos da sua morte, voltei a me lembrar de dona Rosinha, que era assim conhecida, mas fora registrada como Rosa Soares de Oliveira.
Logo após a sua morte, passei muitos anos com o som da sua voz em minha cabeça. Quando acordava, antes de ir dormir, na hora do banho, caminhando na praia…
A lembrança me acompanhou por muitos anos, mas fazia algum tempo que não me ocorria lembrar. No entanto, isso não significa que tenha esquecido seu jeito carinhoso e afável. A saudade me acompanha aonde quer que eu vá.
Demorou muito tempo para que eu entendesse – e não era segredo de família − que a dona Rosinha não era a minha avó e sim a bisavó. Quando minha mãe (Marinalva) nasceu, seu pai, meu avô Moisés, morreu. O fato de a avó Novinha (Maria Fidelis de Moura) ter ficado viúva fez com que ela entregasse a criança para a mãe criar.
A criança foi registrada como filha da avó dona Rosinha. É por isso que eu chamo e sempre chamei de Vó Rosinha ou dona Rosinha.
Nunca passou pela minha cabeça, nem quando era criança, e hoje também não me preocupo em saber o que ela fez na vida. O que me atraía era a sua fala mansa, pausada e, claro, os seus mimos, distribuídos sem sovinice.
As lembranças dos tempos em que eu era criança e fazia travessuras em sua casa ou para lá corria, fugindo de punições certas de minha mãe − não sem razão, pelas diabruras que realizava. A sua casa, arejada, com um quintal grande e com um pomar bem cuidado, era o meu esconderijo preferido.
Surras não eram permitidas. A casa da Rua Nova era território liberto. Ninguém ousava usar castigos físicos; nem minha mãe, com sua vocação autoritária, ousou. O meu refúgio sempre foi a casa de dona Rosinha.
O quintal-pomar tinha as frutas da minha preferência em abundância: sapoti, pitanga, manga-rosa, manga-jasmim, goiabas brancas e rosas, um pé de romã. E tinha o melhor: a Josefa, fiel escudeira, uma negra alta, de mãos grandes e habilidosas, uma artista na cena doméstica. O que de melhor comi foram os quitutes feitos pela Zefa. A minha memória afetiva me conduz: lembro-me dos sabores e dos prazeres da cozinha e da casa de dona Rosinha.
O lanche das tardes era sagrado. Doces de coco com mamão, leite, caju, broas de goma quentinhas, pé de moleque. O forno a lenha estava sempre aceso. O café passado na hora, torrado em casa. Tudo ou quase tudo era caseiro. As broas começavam a ser preparadas após o almoço.
Dona Rosinha, sentava na sua “cadeira da vovó”, que ficava na sala de visita, ajudava na confecção das broas de goma. Quem fosse chegando era convocado para o trabalho artesanal de produção de broas de goma, iguaria também conhecida como sequilho, feito da farinha de mandioca.
No sábado, dia da feira, a despensa da casa era abastecida com os mantimentos. A energia elétrica era a grande novidade na cidade, e a geladeira − aliás, dona Rosinha, acredito, não chegou a conhecer esse bem, hoje indispensável a qualquer residência.
A água tratada para consumo humano era outra novidade. Demorou alguns anos para que todas as casas tivessem ligações e pudessem consumir água tratada e fornecida pela Casal. O abastecimento de água da casa vinha da cacimba e era armazenada nos potes de barro. Estes eram cuidadosamente colocados num dos cantos da cozinha, do lado da sombra, para manter em temperatura amena, assim resfriando o líquido, observando-se o cuidado para que não entrassem insetos.
Esse ritual demorou alguns anos; não foram muitos, mas como tudo naquela casa era simples e comum, talvez por isso tenha sido tão marcante para mim. Essas lembranças que emergem durante um sonho ou quase sonho, para mim, constituem uma evidência de quão importante são as avós. E como é saudável a infância quando é bem vivida − e se for numa pequena cidade, melhor ainda.
A mesa da casa era o parlatório. A sala de visita era um ambiente confortável, mas onde pouco tempo ficávamos. O melhor lugar da casa era a sala de refeições, área interligada, separada apenas por uma meia-parede com a cozinha.
Esforço-me para lembrar se em alguma ocasião houve alteração na sua voz. Se houve algum grito, esporro ou resmungo.
Resmungar é uma condição, dizem, inerente aos velhos, chatos e mal-humorados. Em nenhuma dessas categorias é possível enquadrá-la. A forma como dona Rosinha se dirigia aos adultos e a nós crianças era a mesma: carinhosa e educada. Hoje, percebo o quanto ela prestava atenção em nossas falas.
Os conselhos, as orientações e as repreensões eram dados sem que houvesse constrangimentos. Os resmungos, esses sim, algumas vezes eram feitos por nós, ao sairmos da mesa.
A dona Rosinha sabia das coisas.
2 Comentários
Que texto saboroso, envolvente! Memórias afetivas de uma avó e seu tempo.
Parabéns Majella !
Como gosto desses fatos pitorescos que a memória é capaz de narrar!
Também tenho muitas lembranças que me são caras…
Hoje mesmo escrevi Brejo da minha saudade… E Arabari.. Sítio onde eu nasci ,aí em mm Anadia..