10 de fevereiro de 2021 8:19 por Fátima de Sá
Lagoas ou Lagunas?
Lembro de uma definição que aprendemos em aulas de geografia, no curso primário: LAGOA é uma porção de água cercada de terra por todos os lados. No entanto, a maioria da população usa este nome também para designar corpos d’água que apresentam um formato parecido, mas que não são totalmente cercados de terra por todos os lados. Este é o caso de vários ecossistemas costeiros que ocorrem de norte a sul do país. Por exemplo: lagoa dos Patos (RS), Garopaba (SC), lagoas Rodrigo de Freitas e Araruama (RJ), lagoa Juparanã (ES), lagoa do Papicu (CE), lagoa Salina (PA) e, no estado de Alagoas, as lagoas Mundaú, Manguaba, Roteiro e Jiquiá.
Do ponto de vista geológico, estes corpos d’água que têm comunicação permanente, ou intermitente, com o mar são denominados LAGUNAS. No entanto, concordo com meu professor de limnologia – Francisco Esteves[i] – que deve ser mantido o termo lagoa “devido a seu caráter regional e de ampla aceitação”.
Um Mestre me disse
Revisitei a tese de doutorado do biólogo José Geraldo Wanderley Marques, alagoano de boa cepa e estudioso destas águas. Defendida em 1991, na Unicamp, após anos de pesquisa de campo, a tese é um rico trabalho intitulado Aspectos Ecológicos na Etnoictiologia dos Pescadores do Complexo Estuarino-Lagunar Mundaú-Manguaba.
Ali, ele fala de duas ecologias (a prática e a científica) que coexistem. “Uma, no seio dos espaços culturais exógenos à produção científica e tecnológica (a popular)”. “A outra (a erudita), no seio mesmo dos espaços produtores da ciência e da tecnologia.” Tal coexistência, explica, “teorizam, cada uma à sua maneira, sobre os seres vivos e outros aspectos da natureza”. Assim, as teorias populares “manipulam a mesma matéria das teorias cientificas que lhes são correspondentes”.
As lagoas de Alagoas
Desde quando cheguei a Maceió, fui informada que o nome do Estado decorre da existência de muitas lagoas costeiras. Falaram-me de 21 lagunas. Nunca chequei o número real.
O Prof. José Geraldo destacou em sua tese: “sobressaem-se as Lagoas Mundaú e Manguaba que se interligam por uma série de canais e mantêm contato permanente com o mar através de uma ou mais vias comuns. Elas são incluídas, na verdade, em um ecocomplexo […]”, mas, “por precedência histórica – e para evitar confusão na literatura”, manteve na tese a expressão Complexo Estuarino Lagunar Mundaú-Manguaba (CELMM).
São três os principais rios formadores do CELMM: Mundaú, Paraíba do Meio e Sumaúma. Os dois primeiros nascem em Pernambuco e desaguam, respectivamente, nas lagoas Mundaú e Manguaba, “suas antigas fozes, as quais, hoje afogadas, constituem rías”, conforme informação do Professor Ivan Fernandes Lima.
Além dos rios principais e das lagoas, há vários rios menores, córregos e canais, que formam “um verdadeiro emaranhado, unindo-se uns aos outros, unindo as lagoas entre si e unindo-as à barra de contato com o mar”, informou José Geraldo.
O CELMM multiestressado
Tive, como primeiras tarefas, ao chegar a Alagoas em 1977, de coletar amostras d’água nas lagoas Mundaú e Manguaba e seus canais a fim de monitorar, entre outras, as variações de temperatura e salinidade ao longo do ano. Desde então, tenho olhado para os trabalhadores e as trabalhadoras destas águas e não entendo por qual razão os gestores os mantêm abandonados à própria sorte, vítimas da poluição e do descaso.
De fato, ao longo dos anos, as lagoas vêm sendo (des)cuidadas, transformando-se em latas de lixo, receptoras de efluentes poluidores (da indústria, do agronegócio e de residências), sendo gradativamente aterradas e assoreadas, sem qualquer ordenamento dos seus espaços.
Já em 1991, o CELMM era um ecossistema poluído, como comprovam várias publicações. Assim, José Geraldo Marques, à época, “devido à sua própria complexidade e à natureza da sua degradação”, considerou-o como um “ecocomplexo multiestressado”.
Além do fato de ecossistemas estuarinos, por sua natureza, sofrerem estresse, identificava cinco grupos de estressores: 1. coleta de recursos renováveis, 2. descargas poluentes, 3. reestruturação física, 4. introdução de espécies exóticas, 5. eventos devastadores.
Além disso, listou problemas específicos: (a) desaparecimento cíclico do sururu; (b) diminuição do pescado; (c) desaparecimento de espécies de peixes; (d) mortandade de peixes; (e) assoreamento das barras; (f) assoreamento das embocaduras; (g) grande aporte de nutrientes; (h) grandes florações; (i) poluição hídrica.
O que mudou?
Não vou repetir o que dizem publicações recentes porque seria falar mais do mesmo. Mas, me perguntei: O que foi feito para mudar este quadro descrito há 30 anos?
Em março/2020, fui atraída pelo tema de uma audiência pública que haveria na Câmara Municipal de Maceió, convocada por um dos vereadores: Lagoa Mundaú e Orla Lagunar. Ouvi a apresentação da representante do Instituto para o Desenvolvimento das Alagoas (http://institutoideal.org.br) que (eu soube ali) é fundadora do Movimento dos Povos das Lagoas. Percebi que o pessoal envolvido já mapeou amplo leque de problemas, e tem uma lista de possíveis soluções, inclusive com objetivos definidos e metas traçadas[ii].
Contudo, percebi que os estressores não só continuam a ocorrer como aumentaram de intensidade, além de outros que se somaram aos tradicionais.
Portanto, estresse é o que não falta ao Ecocomplexo. As cargas poluidoras aumentaram. Os desmatamentos persistem e, não por acaso, o assoreamento dos corpos d’água. Efluentes industriais e do agronegócio continuam sendo lançados. Apenas um pequeno percentual das moradias situadas ao longo dos rios, riachos e lagoas, é atendida com serviços de saneamento básico. Em consequência, há lançamento de esgotos sem tratamento e acúmulo de resíduos sólidos. Cresceram as áreas de favelização, principalmente, diante do quadro de desemprego e de aumento da pobreza no país. Por fim, os gestores públicos nunca dão às orlas lagunares a mesma atenção da orla marítima.
E, mais um fator de estresse tem contribuído para o quadro de desalento: a ocupação de espaços para construção de condomínios ou de moradias da classe média e alta, com a expulsão crescente das comunidades tradicionalmente instaladas nessas áreas.
Como ter esperança de mudança?
No entanto, para a gestão não ser de “faz-de-conta” há que se considerar as bacias hidrográficas formadoras do CELMM e a gestão conjunta dos problemas, envolvendo as comunidades humanas e os gestores municipais e estaduais (de Pernambuco e Alagoas).
Portanto, soluções pontuais serão apenas enganação de campanhas eleitoreiras que ocorrem periodicamente. Em conclusão, a história continua a ser reproduzida como há décadas, aumentando as vulnerabilidades nas áreas de conflitos, haja vista o testemunho, há 102 anos, de outro alagoano ilustre:
“A natureza excelsa em formosa eclosão.
Os homens na miséria, apatia, orfandade,
O mangal em progresso, a vida-estagnação,
O lavrador sem pão, sem terra e liberdade.”
[Esta é uma das estrofes de: Dos canais à Lagoa do Sul – poema de Octávio Brandão, escrito no dia 27/01/1919, “… no mato da Lagoa Manguaba”].
[i] Francisco de Assis Esteves é autor do livro Fundamentos de Limnologia. 1 ed. Rio de Janeiro: Interciência: FINEP, 1988.
[ii] Visite a página do IDEAL no Facebook [https://www.facebook.com/InstitutoIdealAL] e veja como colaborar.