21 de março de 2021 10:34 por Marcos Vasconcelos Filho
Lembrei-me de um fato. À praça Deodoro, numa daquelas manhãs de bate-papos conosco a respeito de pessoas e sucessos não apenas cá das Alagoas, narrara-o a mim, entre tiques dum dos ombros, a voz roufenha do meu amigo Ib Gatto Falcão (1914-2008), médico então investido na presidência de nossa querida Academia Alagoana de Letras (AAL).
Quando estudante da primaz faculdade do Terreiro de Jesus, na Bahia dos anos trinta, um pensionista havia na república de moços da época cujo comportamento, quase ao sempre fugidio de desconfiança, acicatava a curiosidade alheia: o cidadão espalhava por todas as ladeiras do Salvador estar matriculado nas aulas de medicina; contudo, nunca ninguém chegava a vê-lo pelos corredores do antigo Colégio dos Jesuítas. “Meu filho”, explicava Ib Gatto, “depois fomos descobrir: veja você, o rapaz escondia de toda a gente ser jogador de futebol, porque naqueles tempos era uma profissão vítima de preconceito, sinônima de vagabundagem, ou até uma atividade prostituída”. Decênios desde ali, tudo mudou bastante: quem não desejaria, ora bolas, a fama e, em especial, o salário dos Cristiano Ronaldo, Lionel Messi, Neymar Jr. ou Pobga e Iniesta?!
Assim também eram julgados os profissionais do teatro, da dança, da música, do rádio e do cinema. Paulo Gracindo (1911-95) — na pia batismal, Pelópidas, prenome de general tibetano e de reduzida eufonia —, um alagoano nascido por acaso aos oito meses no Rio, onde não havia muito se radicara o pai a fim de ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados, sofreria a intolerância dês o lar. Todos os dias, Demócrito Gracindo (1884-1927), antes de dormir, lia para o garoto na rede de seu gabinete poesias parnasianas de Bilac ou do primo da mulher, Guimarães Passos. No quotidiano, como desjejum, acordava-o às quatro ou cinco da matina, e, com ele, repassava à luz de vela metros cúbicos de conteúdos da véspera e ministrava-lhe lições de história universal; pouco depois, haveriam de chegar os seus colegas de Lyceu para o ensino do português, alemão, latim, francês e inglês. “Este menino é um burro; aos quinze anos Álvares de Azevedo já escrevera um livro!”, berrava o corpanzil de dois de altura por dois de ombros e duzentos quilos de músculos, cujos punhos arrancavam paralelepípedos com espantosa facilidade durante as inspeções das obras quando prefeito de Maceió.
Sobre o lombo do rapazote recaíam todas as cobranças. Era agora, ele, filho único, após a morte prematura de Epaminondas (outro nome de militar, parelha de campanha daquele no Peloponeso!). Minondas (1909-21) e o irmão estudavam no recém-fundado Colégio Nóbrega, na capital pernambucana. Uma vez, entretanto, ao voltarem de um piquenique, por sedentos, se fartam ao longo do caminho da água contaminada de uma cacimba. O primogênito vitima-se fatalmente de uma infecção intestinal; o caçula culpar-se-ia pela vida em fora: — Por que ele e não eu?!
Demócrito fazia questão de fixar repulsa pelo mundo artístico tão pendor do último descendente. Herdaria do avô do jovem, mais tarde decalque para o quatrocentão Antenor de “Os ossos do Barão” (1973-4), o coronel e senador estadual Epaminondas Gracindo (1844-1911) — senhor das terras do Boa Sorte, lá na Viçosa, e temível chefe político de quem o começo da República da Espada guardou a passagem de que mandara os capangas fecharem, em dia de eleição local, as vias de acesso à cidade —, o temperamento explosivo, embora sua personalidade houvesse de se esmaltar, na Belle époque brasílica, daquela sisudez polidora das convenções da urbanidade e do seu gosto de erudição pelos clássicos.
Intimidativo: — No dia em que você subir a um palco, saio da plateia e te faço baixar de lá pela gola do paletó na frente do povo! (Logo ele: o inaugurador do Teatro Deodoro, onde o embrião era já milagre vital no útero de dona Argentina). Todavia, ao fugir o mancebo de casa aos quinze anos, o retorno encontrara, para a surpresa, um homenzarrão, chapeirão e terno branco, abrandado no píer de Jaraguá; a mão abençoadora perfumada pelo frasco de Fanal: — Vamos, seu fujão; olha, comprei esse buick!
Só nasce a liberdade de vocação quando, aos dezesseis, recebe o adolescente uma notícia, nos corredores da seminal Faculdade de Direito do Recife: a raríssima insulina autoaplicada não dera conta do fulminante diabetes paterno. (“A morte me escreveu… / O primeiro bilhete que eu recebi da morte, / foi uma pontada fina / […] deixou meu coração martirizado, / com a queda de meu pai p’ra a Eternidade!”).
Lenços vermelhos. 1930. Paulo se instala em definitivo no Sudeste. Aí, passa por poucas e boas: dorme nos bancos, acorda em praças, rouba garrafas de leite das portas. Vencido o orgulho, procura amizades de outrora do velho. No “Correio da manhã”, o redator Costa Rego. O ex-governador alagoano dissuade o rebento de seu saudoso conterrâneo da ideia de seguir a carreira circense e lhe oferece um cargo de revisor no periódico. Não demorou para que o rapaz de vinte anos conquistasse espaço, não sem a ajuda do seu tipo galanteador, ora com bigodes, cavanhaque e pronúncia anasalada, a lhe abrirem as portas do tablado antes de se tornar um dos mais completos nomes de intérprete em nosso país, sem dívida a outros das tramas mundiais. (Homem-multimídia).
Se Gracindo entraria para os anais brasileiros em virtude da magistral interpretação de personagens novelísticos — quais, entre outros, Tucão, em “Bandeira 2” (1971), ou o coronel Ramiro Bastos, em “Gabriela” (1975) —, consagrá-lo-ia mesmo o protagonismo, nos anos 70 e 80, do prefeito cínico e corrupto Odorico Paraguaçu, naquela ficcional urbe litorânea, Sucupira, criada por Dias Gomes. O papel parece haver sido talhado para si, tanto quanto — indefectíveis — a Osmar Prado, o barão de Araruna de “Sinhá moça” (2006), remake para as telinhas inspirado na ficção de Maria Dezonne Pacheco Fernandes; a Othon Bastos, o Paulo Honório de “São Bernardo” (1972), na adaptação cinematográfica do altíssimo romance de Graciliano Ramos por Leon Hirszman; e, a Matheus Nachtergaele, o arquetípico João Grilo de “O auto da Compadecida” (1999), na famosíssima minissérie de base na peça de Ariano Suassuna.
Poucos, no entanto, talvez saibam: no penúltimo ano da Segunda Guerra, Paulo Gracindo publicaria um pequeno livro de poemas, hoje raridade de colecionador, o qual (não sendo chiste) se esgotaria em duas semanas. »Meu pecado« (1944), editaram-no os irmãos Ruggero e Rodolfo Pongetti.
Compõe-se o título, ao longo de 160 páginas, de 34 versos livres. Apoderam-se do volume a emotividade comezinha, o sabor inatural, a chã sinestesia, a fixação por bocas e beijos, a míngua de sugestividade evidenciada justo pelo abuso das reticências e a concreção pedestre (carne, poros, nervos, paralíticos). Próximo à imolação da artesania lírica, a sua poética, porém, se aviva quando se consome pelo recurso voluptuoso, se não pela dolência a emergir docilidade.
Mas a fatia redentora de sua produção residirá, sem dúvida, nos fragmentos autobiográficos de algumas estrofes, os quais, numa sentimental geografia, se deixam embalar, memorialística e psicanaliticamente, pelo ritmo das lembranças e do testemunho de seu gênio com alma de jangadeiro: “o meu grande desejo / de vencer!”; “minh’alma tem sêde / das distâncias infinitas…”; “a minha ansiedade / é como a fúria dos ventos contra a ramada / verde!”; “Dentro de mim, / — nas quatro paredes da minha sensibilidade — / ressôa ainda o primeiro chôro / que eu chorei… / e o éco do meu pranto longínquo / me amedronta ainda! // Dentro de mim / o meu sangue esfria / com a lembrança da primeira palmada / que apanhei!”; “as cartas me encontravam sempre só! / tão longe da família”; “o sangue-tragédia: Revolução!”; “Areia da praia / me viste nascer, / me viste crescer… // […] Levou-me p’ra longe… / bem longe de ti! / Passaram-se os anos… / Saudades deixaram”; “vento suave que empurra o meu triste / destino… / minha doce mãezinha…”.
Entretantos da história: ei-la a se repetir. O sênior, de início, recusa-se a ceder à veia artística daquele outro e mesmo João Maciel (Gracindo, o Júnior, ou Minondinhas — vige, mais um Epaminondas na genealogia!): — Você só tem catorze anos, tem que estudar, cursar uma faculdade de medicina, direito, arranjar uma profissão decente; não vou permitir que entre na rádio! Coisas do Destino — a obra se abre com uma epígrafe edipiana: “Papai, publiquei um livro / de versos! / Agora vou me esconder / com medo das suas palmadas!”.
* Marcos Vasconcelos Filho é ensaísta, PhD, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e integrante das academias Alagoana e Pernambucana de Letras e dos institutos históricos de Alagoas, Bahia e Pernambuco.