2 de abril de 2021 11:27 por Roberto Amaral
Roberto Amaral
O general Braga Netto, recém nomeado ministro da Defesa, disse a que veio. Com a Ordem do Dia sobre o 1º de abril de 1964, por si só uma insubordinação em face do Pacto de 1988, cumpriu a primeira tarefa que lhe terá sido imposta pelo capitão, em busca de narrativa que favoreça seus planos antidemocráticos. Essas maquinações palacianas – as quais, reconheçamos, jamais foram escondidas – podem ter sido postas em repouso tático, mas é certo que até o ultimo dia desse interminável mandato estarão nas cogitações do Bonaparte de hospício que nos governa. Na crise desta semana, preocupa a ligeireza com que militares graduados se apressaram em garantir que “não há risco de golpe”. Em situação normal chefes militares são dispensados dessas garantias. No futebol, que tanto nos ensina, quando o dirigente de clube garante que o técnico “está prestigiado”, é certo que ele estará desempregado em uma semana.
Portanto, todo cuidado é pouco.
O capitão é o problema que nos assola, e seguirá assolando enquanto tiver a solidariedade das baionetas ou dispuser da guarda pretoriana que cuida de seus interesses no Congresso. Aliás, ainda se está por conhecer a real inteligência da reforma ministerial levada a cabo no início da semana, depois de o capitão perder o apoio da fatia mais grossa do PIB e sua popularidade despencar, no momento mais grave da pandemia, quando a crise econômica prenuncia o caos social.
O general não poderia, pois, escolher momento mais inoportuno para defender o golpe militar de primeiro de abril que os fardados insistem em comemorar no dia 31 de março, que nada fez para merecer tamanha injúria. Aliás, a primeira questão que se impõe é a legitimidade desses pronunciamentos. Por que a retomada das louvações a um monstruoso golpe de Estado que nos roubou 21 anos de democracia? Sua defesa, por uma instituição do Estado, atenta contra a Constituição e a ordem democrática que ela consagra. Ademais, essas “ordens do dia” são, sempre, a repetição monótona e pobre de inverdades e meias verdades, umas e outras desmentidas pela História que a caserna jamais conseguirá reescrever. A primeira aleivosia é chamar de “movimento” um golpe de Estado que se perpetuou como ditadura.
Num esforço não alcançado de apresentar atenuantes ao golpe, o general ministro da defesa tenta inseri-lo nos feitos da Guerra Fria, que teria chegado ao Brasil, segundo ele, como as chuvas de verão. Ora, foram as forças armadas brasileiras, dependentes ideológicas da geopolítica militar estadunidense, que nos inseriram no conflito entre os EUA e a URSS de então, que em nada nos dizia respeito, como não nos dizem respeito as contendas de hoje entre os EUA e a China, senão na medida da defesa dos nossos interesses, pelos quais não se interessa o capitão. Mas os militares brasileiros já não pensavam com suas próprias cabeças, porque as escolas de formação de nossos oficiais de há muito funcionavam como correias de transmissão ideológica do pensamento estratégico formulado na Escola de Comando e Estado-Maior dos EUA, em Fort Leavenworth, onde se formaram ou estagiaram numerosos oficiais brasileiros das três armas, e na National War College (e suas congêneres), matriz de nossa Escola Superior de Guerra. Nem o anticomunismo de nossos militares é autêntico.
Os militares, que tanto se ufanam como “defensores da pátria” (atributo que julgam ser exclusividade deles), se esquecem de que o “movimento” foi ditado por Washington. Além da registrada conversa telefônica entre Lyndon Johnson, presidente dos EUA, e seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, autorizando o golpe, a “Operação Brother Sam”, como os americanos chamaram o ancoramento de petroleiros na costa brasileira, já faz parte da historiografia sobre o golpe (Marcos Sá Corrêa. 1964 visto e comentado pela Casa Branca, L&PM). As ligações com as autoridades dos EUA estão documentadas, e podem mesmo ser revistas nos depoimentos de muitos dos principais conspiradores, como o general Cordeiro de Farias (Diálogo com Cordeiro de Farias, Nova Fronteira, p. 571). As pesquisas mostram ainda a participação da CIA, as articulações da embaixada norte-americana e do adido militar dos EUA, o Cel. Vernon Walters, interlocutor de nossos generais desde os tempos da FEB, quando conheceu Castelo Branco e Cordeiro de Farias. (A propósito: as bibliotecas de Lyndon Johnson, em Austin, e de John Kennedy, em Boston, guardam extensa documentação sobre a participação dos EUA na preparação do golpe).
A subordinação de nossos interesses aos ditames de uma potência estrangeira foram escandalizados no primeiro governo do mandarinato militar, ditador o marechal Castelo Branco, quando o general Juraci Magalhães, embaixador brasileiro nos EUA, declararia que “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Em nome desta subalternidade abjeta, tropas brasileiras invadiram a República Dominicana (1965), um pequeno e pobre país caribenho, para combater os constitucionalistas que lutavam contra uma ditadura de extrema-direita. Voltamos à ilha de São Domingos, 2004, para exercer o policiamento nas ruas do Haiti. Ficamos 13 anos. A “elite” militar de hoje fez lá seu “pós-doutorado”, adestrando-se para ações internas de “segurança pública”, como a fracassada intervenção federal no Rio de Janeiro (2018), chefiada pelo general Walter Souza Braga Netto. Outra parte estagiou nos altos cargos do Comitê Olímpico Internacional, e agora habita o terceiro andar do palácio do planalto.
Desses militares não podemos nos orgulhar.
Não sei se esses episódios constam das apostilas (os ‘polígrafos’ dos tempos de Castello Branco) que circulam nos cursos da EsAO. Tampouco sei se, quando estudam a história militar no Império, se referem às invasões da Cisplatina (1825), do Prata (1821), do Uruguai (1864) e do Paraguai (1864-1870), onde, no final da guerra, nossas tropas enfrentaram um exército de meninos, velhos e mulheres. Evento despido de glória.
Diz o general ministro da defesa, na absurda Ordem do Dia, que “As Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos”. Essa sandice não se põe de pé. Como chamar de pacificação uma ditadura de 21 anos, a perseguição a milhares de brasileiros, as cassações de mandatos eletivos, a censura, a invasão de universidades e a perseguição a cientistas e pesquisadores, o confinamento e o exílio de centenas de patriotas, enfim, as prisões, a tortura e os assassinatos, os incontáveis mortos sem sepultura? Reorganizar o país? Ora, isso foi obra da Constituinte de 88, requerida pelo povo contra o veto dos militares. Uma reorganização, aliás, interrompida pelo golpe de 2016 e o governo militar do capitão. Sim, governo militar, e dele não conseguirão se apartar os fardados diante do severo julgamento da História.
E como falar em liberdades democráticas, se nossas forças armadas sempre as golpearam, como nas ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, ou sustentando por trinta anos os governos autoritários e ilegítimos da velha república, a serviço do latifúndio e do atraso, como o desastrado governo do quase grotesco marechal Hermes da Fonseca, que governou do primeiro ao último dia sob estado de sítio? Como podem se auto-nomear defensoras das liberdades democráticas as forças armadas que deram o golpe de 1937, contra a democracia e a Constituição liberal de 1934, implantaram a ditadura do Estado Novo, levaram Getúlio Vargas ao suicídio em 1954, se insurgiram contra a Constituição em 1961 e, finalmente, instauraram a ditadura em 1964, rasgaram a Constituição de 1946 e passaram a legislar mediante atos institucionais protofascistas? Foram generais, liderados pelo comandante do exército, que inventaram Bolsonaro – tenente de carreira reles, reformado como capitão e por quase 30 anos habitante do baixo clero da câmara dos deputados – e é a caserna (o capitão fala mesmo em “meu exército”) que lhe dá sustentação.
As instituições, quando perdem a visão histórica, cavam sua própria degradação. As forças armadas brasileiras, sem nenhuma justificativa, insistem na defesa do golpe militar de 1964, quando deveriam pedir desculpas pelos crimes cometidos e acobertados. Na história presente, dão sustentação a um governo corrupto, inepto, antinacional e criminoso, surdas e cegas para os desmandos que estão destruindo o país, sua economia, sua população e sua dignidade. Como já observou o professor Manuel Domingos Neto, da UFF, esse erro clamoroso pode ser as Malvinas de nossas tropas.
O ministro nos fala em defesa da ‘Pátria’. Que é, mesmo, a pátria? É nosso território? É nosso povo? É nossa história? É o meio ambiente devastado? São os índios massacrados? Os desempregados? As mais de trezentas mil vítimas da Covid-19 e da incompetência do general (da ativa) Eduardo Pazuello? São os trabalhadores sem terra? Ou os capitães do agronegócio e as mineradoras, ou os rentistas da Faria Lima? De quem os militares estão defendendo a pátria? Dos que lutam internamente por uma sociedade distinta desta fundada na desigualdade, sociedade e capitalismo arcaicos que generais fardados e de pijama defendem e impõem pela força das armas que o povo lhes entregou (e os remunera) para defendê-lo?
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia