sexta-feira 22 de novembro de 2024

Desastre na Cinemateca é projeto político de governo que quer acabar com a memória

Incêndio foi crime anunciado; desde janeiro de 2020, o maior acervo audiovisual da América do Sul foi abandono pelo Governo Federal

3 de agosto de 2021 11:20 por Marcos Berillo

Cinemateca é consumida pelo fogo | Reprodução

O incêndio ocorrido na última quinta-feira, (29/07) em um dos galpões da Cinemateca Brasileira foi um crime anunciado. Desde janeiro de 2020, o maior acervo audiovisual da América do Sul permanece em um estado de abandono por parte do Governo Federal, que parou de repassar a verba para a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (ACERP).

No dia 07 de agosto do ano passado, ocorreu a retomada das chaves pelo governo e, dias depois, a demissão de todo o corpo técnico da Cinemateca, sem o pagamento dos salários atrasados e as rescisões. Com o encerramento das atividades da instituição, todo o seu acervo passou a ficar em grande perigo: os filmes de nitrato existentes no acervo são altamente inflamáveis e precisam de monitoramento constante, assim como os demais documentos em seus mais variados suportes: papéis, tecidos, fotografias, vídeos magnéticos. Como escrito em outro lugar, “o que acontece com o patrimônio histórico, cultural e artístico brasileiro não é um acidente, um acaso, é inclusive previsível: se a fiação está exposta, se há rachaduras e infiltrações, é de se prever incêndios e desmantelamentos” (GOMES, 2020).

Para um não marxista, a citação acima poderia ser uma previsão macabra. Para aqueles que adotam o materialismo histórico é apenas uma análise concreta das condições objetivas que se apresentam.

O incêndio que destruiu documentos imprescindíveis para a história do audiovisual brasileiro parece ter sido resultado de uma manutenção malsucedida no equipamento de refrigeração da sede da Vila Leopoldina. Registros sobre a Empresa Brasileira de Filmes S.A (Embrafilme); o Conselho Nacional do Cinema (Concine); o Instituto Nacional do Cinema (INC) e parte do acervo recolhido do Templo Glauber entre 2018 e 2019, do cineasta Glauber Rocha, foram perdidos em meio ao fogo ou danificados pela água na tentativa de apagar o incêndio.

O descaso com a Cinemateca não é de hoje, mas a forma como o encerramento das atividades desta entidade se deu ganhou contornos trágicos, talvez até performáticos se lembrarmos de situações como a visita da ex-secretária da Cultura Regina Duarte à entidade, após Bolsonaro “prometer a Cinemateca” para a atriz e a entrega das chaves do prédio da Vila Clementino para o atual secretário da cultura, com direito a presença armada da Polícia Federal.

O incêndio do galpão da Cinemateca é grave, sua possibilidade foi alertada pelos/as trabalhadores/as e é mais um crime imputado ao governo genocida de Jair Bolsonaro à cultura. Contudo, o objetivo deste texto é trazer reflexões mais amplas sobre o patrimônio, a memória e suas implicações políticas.

Patrimônio, memória e suas implicações políticas

A reflexão se faz oportuna em um contexto no qual, além do incêndio em parte do acervo da Cinemateca Brasileira, há uma intensificação da atuação de grupos na disputa pela memória através de intervenções em monumentos urbanos, como no caso do incêndio auto organizado da estátua do bandeirante Borba Gato e das pichações no monumento do guerrilheiro Carlos Marighella e na imagem da vereadora assassinada Marielle Franco.

Esse contexto de intervenções em monumentos – públicos ou de iniciativa da comunidade -, somado ao incêndio na Cinemateca representa a tempestade perfeita para adentrarmos em um debate urgente sobre como nós, trabalhadores/as da cultura, especificamente das áreas de patrimônios e de acervos não podemos nos ausentar do debate político que envolve a preservação da memória e o patrimônio.

Tal discussão está longe de ser óbvia, ao adentramos nesse debate somos envolvidos por um idealismo e um posicionamento apolítico surpreendente: a luta de classes, a conjuntura política e a forma como determinados projetos de poder são disputadas parecem não afetar o patrimônio brasileiro.

A análise da realidade concreta se perde em um espírito abstrato de abnegação com palavras vazias sobre a importância da preservação da memória e da história, mas que não ganham objetividade através de ações como a expansão de orçamentos, a contratação e formação de profissionais, a valorização desses profissionais através de melhores salários.

A discussão sobre memória e patrimônio sempre foi e será política. Primeiro, porque o conceito de memória não é algo imutável e atrelado ao passado, pelo contrário, a construção da memória e seus usos coletivos são formulações do presente e servem para atender às solicitações do presente, como formulado pelo historiador Ulpiano Bezerra de Meneses (1992).

Entendemos a memória como um processo inerente à luta de classes e a disputa no campo político-ideológico do que deve ser considerado como símbolo e aquilo que deve ser esquecido, descartado da memória coletiva.

Não só no Brasil, mas em diversos países que experimentaram protestos populares nos últimos anos, a derrubada de estátuas de figuras ligadas ao escravagismo e à colonização ganharam grande notoriedade. Esses atos demonstram como a memória está impregnada do presente e não do passado. As atuações pela derrubada de monumentos evocam como determinados grupos sociais disputam a apreensão destes símbolos.

São ações políticas, não acadêmicas ou técnicas. Portanto, a consulta aos historiadores sobre tais ações nos parece fora do sentido. Ao historiador não cabe julgar, mas entender como tais atos refletem a dinâmica de como a sociedade ressignifica seus símbolos.

E é necessário também que os trabalhadores de instituições de memória se entendam dentro da dimensão política do trabalho que realizam, pois, suas decisões podem estar pautadas em relatórios e pareceres técnicos, mas sabemos que a técnica está sempre a serviço da política. Quando os trabalhadores do setor se ausentam do debate político sobre a preservação, isso não significa que não há uma política sendo feita, significa apenas que ela está sendo feita por outrem e não está sendo disputada.

Memória em disputa

Diante destas considerações, precisamos nos apropriar do debate sobre a preservação da memória através de uma perspectiva materialista. Entender que a memória está em constante disputa por grupos dominantes e pelos grupos espoliados é um primeiro aspecto que envolve essa questão, a segunda refere-se ao entendimento de que a preservação do patrimônio e dos acervos envolve recursos financeiros, sejam eles no âmbito de instituições públicas ou privadas e, por isso, estas instituições estão imersas na conjuntura política que define quando e como os recursos serão realocados.

São as decisões políticas que podem definir se um determinado patrimônio cultural será preservado ou consumido pelas chamas. Uma decisão política levou à espoliação dos trabalhadores/as da Cinemateca, sua demissão e o incêndio da última quinta-feira.

O antropólogo Viveiro de Castro, em razão do incêndio que destruiu parte do Museu Nacional em 2018, disse que o Brasil é um país onde governar é criar desertos, a destruição da sua cultura é a criação de desertos no tempo. Essa analogia interessante talvez nos ajude a entender que em cada “acidente” nas instituições de preservação da memória reside um projeto de destruição. Se a memória é um ato político, o esquecimento também o é.

Fonte: Página do MST

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