18 de setembro de 2021 1:38 por Mácleim Carneiro
Blindfold Test, literalmente, significa teste de olhos vendados. É, também, uma seção da revista americana DownBeat, onde instrumentistas de jazz escutam determinados temas, sem saber quem os executa, e tentam descobrir de quem são as gravações. O baterista brasileiro Vanderlei Pereira, radicado em Nova York há mais de 30 anos, criou o seu grupo com esse nome e alguma afinidade com o teste da revista.
Desde a infância, Vanderlei Pereira sofria de retinite pigmentosa progressiva ocular, que culminou com a perda total da sua visão e o fez parar a carreira na música clássica, pois ler partituras não era mais possível. A deficiência visual acabou levando-o à inovação, ao sugerir que os músicos da sua banda decorassem as músicas, como ele próprio fazia e, se possível, tocassem com vendas nos olhos, nas performances mais complexas. Os músicos toparam e funcionou maravilhosamente bem!
O álbum Vision For Rhythm é o primeiro da carreira de Vanderlei Pereira. Nas 12 músicas, ele atua com a Blindfold Test, que tem formação flutuante, e nesse álbum conta com os brasileiros Jorge Continentino (sax e flauta), Rodrigo Ursaia (sax), Gustavo Amarante e Itaiguara Brandão (baixos) e os norte-americanos Deanna Witkowski (piano), Paul Meyers (violão) e Susan Pereira (voz/percussão). Aliás, além de ser a companheira do Vanderlei Pereira, a vocalista, pianista, percussionista, compositora e arranjadora Susan Pereira, é nativa de Nova York e atuou em quase todas as faixas desse álbum, realizando um trabalho maravilhoso!
Música Propositiva
Vanderlei Pereira foi músico da Orquestra Sinfônica Brasileira, porém, à medida que o seu problema visual progredia e sua visão se deteriorava, percebeu que não podia continuar atuando no campo clássico. Em 1988, decidiu ir morar em Nova York. Lá, deu formas a sua música positivista, como também é a sua opinião sobre os desafios causados pela deficiência visual: “Tento manter uma atitude positiva. Tive que lidar com a perda quando já trabalhava como músico. Levou mais de 20 anos para aceitar a cegueira completamente e desenvolver a capacidade de ver as coisas com positividade. Tento compartilhar um pouco desse otimismo. Odiaria pensar que sentem pena de mim. Sou cego, mas e daí? Tenho a música e minha própria maneira de ver as coisas.”
Como o próprio título do álbum sugere, trata-se da visão particularíssima dos ritmos de um baterista da escola dos grandes mestres desse instrumento, que se revelou um compositor de ‘visão ampliada’, como se percebe nos quatro temas de sua autoria. Porém, quem abre o álbum é Misturada (Airto Moreira), com Vanderlei Pereira usando uma contagem, com as baquetas, muitíssimo peculiar, só para quem foi avisado de que seria assim, e esse alguém é ele mesmo. Então, depois de uma nota na caixa e outra nos tons, entra a base já com o vocalize de Susan Pereira, em dueto com a flauta de Jorge Continentino, conduzindo a melodia até o primeiro solo, onde o próprio Vanderlei Pereira faz as honras da casa. Depois, Continentino debulha a flauta em notas e frases caudalosas e leves ao mesmo tempo, dando lugar e vez ao improviso do violão de Paul Meyers, no que temos uma bela mostra de alguns dos companheiros de jornada pelo aprazível Vision For Rhythm.
Linho Branco
Ponto de Partida (Vanderlei Pereira) é um samba partido-alto, com generosas pitadas jazzísticas, que ao fruidor atento e sedento de música substantiva, não há mais o que deliberar a não ser se entregar de vez e se deixar guiar por tamanha visão privilegiada, onde, dessa vez, pontuam o sax de Jorge Continentino e o piano de Deanna Witkowski, como protagonistas de uma elegância encontrada nos ternos de linho branco, nas rodas de samba do Rio antigo. Daí, para não deixar o fôlego vulnerável a qualquer dúvida, a maestria do samba Chapéu de Palha (Toninho Ferragutti) arrebata de vez o ouvinte, numa condução de aro de caixa e ximbau em temperatura elevada, onde só os mestres das baquetas arriscam trafegar. A próxima é Mercado Modelo (Kinson Plaut), um baião parente próximo do jazz, com um belo solo de Paul Meyers ao violão e aquele triangulozinho insinuante que, depois de entrar em cena, torna-se inimaginável sua ausência!
A quinta faixa é O Que Ficou (Vanderlei Pereira), uma bossa sincopada, que nos primeiros compassos parece que vai descambar para Chega de Saudade (Tom e Vinícius), não fosse um tamborim apontando em contramão. É a vez de Gustavo Amarante sair do alicerce basilar e trazer o contrabaixo para a sala de estar, apresentando um solo tipo realeza da gravidade do instrumento. Já passamos da metade do álbum, quando o grande Antonio Adolfo aparece no repertório, com Partido Leve (Antonio Adolfo), seguido do Edu Lobo e o seu Corrupião, ambos ratificando que a escolha de um repertório adequado é meio caminho andado, para que um álbum almeje e tenha a possibilidade de ser considerado todo bom! E esse é o caso de Vision For Rhythm, um álbum onde o Brasil funciona de verdade, voltando a ser tipo exportação nos sambas que jamais serão commodity, posto que, em altíssima performance, foram explanados e apresentados em linguagem universal contemporânea.
De Volta à Festa (Vanderlei Pereira) é daquelas que, quando postas estrategicamente ao final dos trabalhos de um álbum, inevitavelmente, nos impele a querer continuar a audição e dar um replay, com sabor de saudade coeva. No caso em questão, essa ‘festa’ é quase um híbrido de samba e frevo, como a prenunciar a próxima e última, que encerra o álbum e também o titula. Vision For Rhythm (Vanderlei Pereira) é um frevo no qual Vanderlei trafega sem sotaques e acrescenta uma boa dose de jazz, como, por exemplo, a condução nos pratos, mas que certamente poderia ser percebida num tarol, em plena folia de Momo, pelas ladeiras de Olinda! Então, senhoras e senhores, temos um final apoteótico em criatividade e ideias geniais, onde gêneros se irmanam e provam que a leitura musical está, sobretudo, nas partituras do coração ou num maravilhoso solo de bateria, que coroa a bela obra de um grande músico em sua Vision For Rhythm!
Serviço
Vision For Rhythm, Vanderlei Pereira
Plataformas digitais: Spotify, Deezer, iTunes, Amazon Targt …
Plataforma física: Em CD, pelo site www.jazzheads.com
No + MÚSICABOAEMSUAVIDA!!!