3 de novembro de 2021 11:04 por Adelmo Marques Luz
(*) Adelmo Marques Luz é funcionário público, advogado e escritor
Por que razão, e sem que haja para isso um motivo plausível, ressurgem em nós, mesmo que espaçadamente, os acontecimentos de nossas infâncias, como se os tivéssemos diante dos nossos olhos? Creio que com todos nós é mais ou menos assim que esse fenômeno ocorre.
Revi-me, recentemente, diante de tais circunstâncias, ao relembrar-me de cenas vivenciadas em um passado longínquo. O fato é que carrego, involuntariamente, na memória, figuras pretéritas, peculiares, suas vozes, seus traços, as cenas nas quais estão inseridas, o ambiente da narrativa… Tudo aflui-me à consciência. Um elenco borbulhante de personagens com seus semblantes dos quais me valho para fixar e desenvolver a urdidura. Devo reconhecer que a circunstância de morarem em mim as lembranças do meu tempo de menino, e poder transportá-la para o papel, constitui um inestimável privilégio pessoal. Mas também sei que os meus leitores, se é que os tenho, talvez não demonstrem curiosidade em conhecer tais vivências. Paciência! Afinal de contas, não sou um homem culto, letrado, não possuo títulos ou comendas, tampouco escrevo livros; sou apenas um presunçoso que pretende escrever livros. Hei de conseguir? Nem eu mesmo sei dizer. Todavia, por falta de aptidão e alternativas para a realização de outro ofício mais útil, teimo em registrá-las em forma de crônica. Apenas isso.
A minha infância, adolescência e parte da vida adulta, passaram-se na Rua General Hermes, 81, no bairro da Cambona, cidade de Maceió. Aportei por lá ainda garoto, nos idos de 1963, aos sete anos de idade. Amei aquela casa, ainda hoje existente, mas condenada pela ação implacável do tempo. “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. “Vão demolir a casa onde outrora me criei. Mas como dizia o poeta, “meu quarto vai ficar, não como forma imperfeita, neste mundo de aparência: Vai ficar na eternidade, com meus livros, quadros, imagens, intacto, suspenso no ar”!
O quintal comprido, espaçoso e frutífero (manga, cajarana, coco, fruta pão, banana, goiaba), era o meu local predileto. Acordava-me pela madrugada, sobretudo nas férias escolares de fim de ano, que se estendiam entre os meses de dezembro a março, para usufruí-lo. Costumava escalar o pé de manga rosa para colher a fruta por mim tão desejada, e que lembravam as maçãs do rosto da menina mimada, e os seios por mim acariciados dos meus tenros e fugazes amores.
O número e a diversidade de pássaros que cruzavam o local enchiam-me de alegria. Via o xexéu, serelepe e cantante, fazendo a festa nas bananeiras; o sanhaçu, o sibiti, famoso caga-sebo, o beija-fllor, o bem-te-vi, a lavandeira, o papa-capim… Aprendi, com o tempo, a distinguir os trinados e gorjeios de todos eles. Era um deslumbramento para os meus olhos, maravilha para os meus ouvidos, e até hoje um encanto para a minha imaginação. E os vigilantes e implacáveis marimbondos? Ficavam enfurecidos quando percebiam que invadíamos o perímetro em redor de suas moradas. Deram-me, certa vez, uma surra. Injetaram-me no corpo, aleatória e desapiedadamente seus ferrões, que me levaram à cama com fortes dores de cabeça, calafrios e febre.
Durante o tempo em que permaneci morando no mencionado bairro, período que se estendeu por quase trinta anos, guardei, ao longo do caminho, as horas de plena felicidade, aprendizado, experiência… As de amargura, também.
Um desses instantâneos cambonenses passou-se no Mercado da Produção, o maior e mais tradicional do nosso Estado. Fixei a cena para lhe dar vida, muitos anos depois, por intermédio da palavra escrita.
Havia eu ido ao local na companhia de minha mãe fazer a feira semanal. Era um sábado, dia em que a feira proliferava desde cedo em quantidade de pessoas e no aquecimento das transações. Toda espécie de negociação era realizada, desde a compra e venda de mercadorias, a troca de objetos, a negociação de animais, o embuste, a receptação, a prostituição… Comerciantes, feirantes, ambulantes, carroceiros, carregadores, marisqueiras, cachaceiros, maloqueiros, prostitutas, larápios, todos mercadejavam. Vale lembrar que naquela época o comércio ali desenvolvido tinha uma forte influência econômica, por se tratar de um espaço para o qual convergia boa parte dos consumidores da cidade. Refiro-me à década de sessenta, quando ainda não havia supermercados por aqui.
A área era extensa, e sua conformação, dinâmica e personagens excêntricas, proporcionavam-me muita curiosidade e interesse, a exemplo do vendedor de elixir, remédio destinado ao consumo oral, que contém substâncias aromáticas e miraculosas, restauradora do vigor das pessoas vítimas de qualquer espécie de enfermidade. Acreditava-se, também, que a mencionada mezinha possuía virtudes mágicas, e que proporcionava rejuvenescimento e vida longa. Mas o que me tomava de fascinação era a cobra jiboia enorme que o vendedor ostentava, enroscada em dos seus braços, às vezes no pescoço, ao apresentar o milagroso produto aos curiosos que formavam um círculo ao seu redor.
O ajuntamento de pessoas, o grito dos pregoeiros, o ruge-ruge dos compradores, o cheiro das frutas, dos legumes, dos pescados que trago na memória afetiva, por meios de elementos sensoriais e emocionais, a exemplo dos sons, cheiros, sabores e cores, e que me remetem àquelas vivências experimentadas no passado, extasiavam-me. Quase nada, ali, se passava sem que eu não lhe desse atenção. Até o grito tonitruante de um carregador que transportava apressado um fardo de carne às costas, ordenando a todos que saíssem de sua frente: Olhe o sangue!
No perímetro daquela enorme área, que açambarcava também a feira do passarinho e/ou do rato, um trecho extremamente barulhento e imundo, acorriam pessoas de vida obscura, de linguajar áspero e intenções duvidosas, a fim de negociarem objetos de procedência desconhecida. Os quiosques afrontosos serviam de ponto de parada obrigatória dos cachaceiros e mulheres de vida fácil. O cenário tinha como pano de fundo a eminente e pomposa Lagoa Mundaú, ventre do sururu, em cujas margens surgiu, aos poucos, a Vila Bejal, bairro que já nasceu sofrível, ambientalmente degradado, edificado numa porção de terreno às margens da Mundaú, alagado e lamacento, insalubre, desprovido, habitado por gente pobre e vítima das recorrentes inundações nos períodos chuvosos.
Certo dia, enquanto esperava que minha mãe concluísse uma compra, observei que havia um ajuntamento de muitas pessoas próximo ao prédio onde funcionava o Centro de Abastecimento/CEASA. Uma plateia barulhenta e em círculo que engrossava em número à medida que para lá convergia. Ouviam-se gritos, repetidos e simultâneos, numa verdadeira algazarra: – É para comer com casca e tudo! Se vomitar, perde!
Do que se tratava, afinal? Por que tanta euforia? A curiosidade terminou por vencer-me, e resolvi averiguar. Antes que minha mãe percebesse a minha ausência, corri a olhar. Fiquei intrigado com o que vi. A princípio, não alcancei o significado do espetáculo que considerei extravagante e incomum. Depositei à cena um olhar fixo e interpelador. Eis que me deparo com dois sujeitos, sentados em caixões de madeira, um de frente para o outro, e sob seus pés, no chão forrado por uma lona encardida, um amontoado de bananas maduras. Tratava-se de um ajuste firmado entre os dois, cujas opiniões divergiam acerca da possibilidade de um deles ser capaz de comer um cento de bananas, inclusive as cascas. Devendo o perdedor da aposta pagar ao vencedor uma certa quantia em dinheiro.
Naquela altura dos acontecimentos, o comedor de bananas já havia engolido dezenas delas. Isso mesmo. Absurdamente empanturrado, a um passo da derrota provocada pelo excesso ingerido, a exemplo das formigas que se afogam numa porção de mel, o comedor suava, seu rosto refletia uma palidez marmórea. O tronco desnudo mostrava um ventre sobrecarregado e disforme, estorvando-lhe os movimentos, lembrando um gorila doentiamente saciado. Engulhava a cada fruta engolida, numa clara demonstração de não mais poder continuar com a insana comilança. Via-se em seu semblante que eram exíguas suas forças, a despeito de sua obstinação em dar cabo da penca que ainda restava. Não lhe bastava o entusiasmo para concluir o desafio que se lhe tornara irrealizável. Ao tempo em que ouvia as zombarias sádicas da plateia circundante que não transigia: – Se vomitar perde!
De repente, surge alguém que se compadeceu com a situação vexatória. Aproximou-se dos apostadores, indagou-lhes sobre o significado daquilo, e, ao saber que se tratava de uma aposta, inteirou-se sobre os termos avençados, as condições impostas e o valor em dinheiro que fora convencionado entre eles. Indignado com a cena extravagante e burlesca, prontifica-se a quitar o valor acordado, mas na condição de que aquilo cessasse imediatamente. E foi o que aconteceu.
O comedor de bananas permaneceu inerte, mudo, os olhos esbugalhados, resfolegante e deitando baba sobre o ventre abaulado. Devido à impossibilidade de locomover-se, saiu dali amparado. Conduziram-no nos braços em direção ao Canal da Levada para expurgar do estômago o que comera desmedidamente. Cerca de 75 bananas.
Na semana seguinte, ao retornar ao local na companhia de minha mãe, que mantinha uma relação de freguesia com uma vendedora de legumes, ouvimos dela que o comedor de bananas exigia uma revanche, sob a alegação de que no dia da desditosa aposta, inadvertidamente, havia feito a primeira refeição à base de pães, ovos, caldo de cana e bagos de jaca. Desconheço se lhe fora concedida a desforra.