13 de fevereiro de 2022 9:19 por Marcos Berillo
Pe. Gilvan Gomes das Neves. Mestre e doutor em Ciências da Religião pela UNICAP, e-mail: Gilvan.neves@uol.com.br
Durante os festejos natalinos nas festas dos padroeiro(a)s que acontecem nessa época assistimos em quase todo estado de Alagoas manifestações culturais, religiosas como o Guerreiro, o Reisado, o pastoril e as Cavalhadas que envolvem a população do estado. Em Arapiraca, n ápice da festa, às 16h do último dia, a padroeira Nossa Senhora do Bom Conselho chega pelas mãos dos Cavaleiros da Ordem de Nossa Senhora. Ocorrendo também nas cidades de Anadia, no dia 23, véspera do inicio do novenário à Nossa Senhora da Piedade, ainda em Viçosa, Capela , Murici, União dos Palmares, São José da Laje, Colônia de Leopoldina e dezenas de outras cidades da zona litorânea e da mata alagoana.
A chegança também é derivada das lutas e danças entre cristãos e mouros da Europa: “Depois que os mares dividiram os continentes / Quis ver terras diferentes / Eu pensei: vou procurar / um mundo novo / Lá depois do horizonte / levo a rede balançante / Pra no sol me espreguiçar”(Chegança, Antônio Nóbrega).
Mas, como se deu esse hibridismo, esse encontro de culturas?
No ano de 711, 7 mil mouros liderados por Tárik desembarcaram perto de Gibraltar e iniciaram a ocupação da Península Ibérica. Sete séculos da presença árabe, chamada moura, deixaram fortes marcas na cultura e religiosidade de Portugal e Espanha. Segundo o Professor português J. A. Pires de Lima (1925) durante esses sete séculos de dominação na Península Ibérica, “cristãos e mouros” não estavam completamente separados. No território do Califado viviam numerosos Mosárabes¹ , mantendo a sua crença cristã; muitas vezes se celebravam alianças entre chefes cristãos e mouros e, depois , muitos muçulmanos ficaram vivendo ao lado dos cristãos, mantendo suas crenças e seus costumes (LIMA, 1925, p. 5-6).
Herdamos muito da cultura árabe, na língua (Almeida, Almenara, alvíssaras, aldeia, alecrim, alferes, algodão, alguidar, alazão, alfândega etc.,); medidas (almude, alqueire, álgebra); música (alaúde); livros e papel (almaço, alfarrábio, alvará, almanaque) fabricação de açúcar (alfenim, alambique, álcool) trabalho com couro (alforje, alpercata); história da lâmpada d Aladim, e religião (cristãos e mouros).
Houve grande influência na medicina, ciência e arte árabes. A contribuição árabe à cultura brasileira ainda não é suficiente conhecida e valorizada, mas houve influência via Portugal e, ao mesmo tempo, um bom número de escravos mulçumanos do Sudão ocidental vieram para Salvador (BA) e Penedo (AL): os das lutas está registrada Malês² .
No Brasil, a comemoração das lutas entre cristãos e mouros existe em muitos lugares e de muitos modos. A apresentação das lutas está registrada no “Triumpho Eucarístico” (1734), como “Dança de Turcos e Cristãos”. A encenação do combate entre mouros e cristãos consta da Epanófora Festiva (1763).
As lutas e embaixadas podem ser apresentadas a pé ou a cavalo; o castelo dos mouros e a praça da matriz fazem parte do cenário. Na chegança nordestina, cristãos e mouros chegam de navio. Nas cavalhadas, os cristãos se vestem de azul e os ouros de vermelho (encarnado). Nas bandeiras estão a cruz e a lua.
Aqui em Alagoas, o reisado reúne a memória da reconquista elementos de Natal e do reinado de Nossa Senhora do Rosário. Enfim, na comemoração brasileira andam juntas a memória das lutas entre os soldados de Cristo e os infiéis (os mouros), a história das cruzadas, e Carlos Magno e os 12 pares da França. Historicamente, em Portugal misturam-se as lutas da reconquista com as cruzadas, como por exemplo, quando Afonso Henriques recebeu apoio de uma frota de 200 navios com cruzados na reconquista de Lisboa em 1147.
Também observamos elementos dos torneios medievais como o jogo da argolinha.
Para guisa de considerações finais é possível perceber nas minhas pesquisas que nessas festas numa ação coletiva, os participantes promovem uma catequese espontânea através de lutas, danças e embaixadas. A luta é entre cristãos e mouros, quer dizer cristãos e não cristãos. As armas usadas são lanças, espadas e pistolas. A primeira vitória é dos mouros; a última dos cristãos. A identidade do cristão é apresentada de maneira popular, não clerical. Seriedade e alegria se misturam.
As festas atuais podem estar associadas a temas gerais como a luta entre o bem e o mal, entre a morte e a vida, entre senhores e escravos. Nas lutas entre cristãos e mouros, acontece um hibridismo cultural e um notável abrasileiramento.
NOTA
1- Cristãos ibéricos que viviam sob o governo mulçumano em Al-Andalus, adotando o árabe, entrando assim na comunidade “moçárabe”.
2- [do ioruba: “imàle”: mulçulmano]No Brasil cunhado para designar os escravos que professavam a fé islâmica.
REFERÊNCIAS:
LIMA, J. A. Pires. Tradições portuguesas de origem possivelmente muçulmana. Esposende: Livro. Esposende Ed, 1925.
NÓBREGA, Antônio. Chegança. In.: Madeira que cupim não rói, 1997.