quarta-feira 4 de dezembro de 2024

É Indignidade/indigência militar, um tema inadiável

Episódio grotesco traz à balha a iminente necessidade de o ministério da defesa investir em cursos de reforço escolar para sua oficialidade

24 de abril de 2022 12:23 por Roberto Amaral

  • “Incompetência, roubalheira e pusilanimidade é o resumo do noticiário militar. E há ainda o golpismo permanente. Vai ficando cada vez mais difícil sustentar que as Forças Armadas se modernizaram e democratizaram.” (Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo, 20/04/2022)
O presidente do STM, Luis Carlos Gomes Mattos | Divulgação

Era de se esperar – se a lógica fosse a mestra da História – que o ensino e a vida militar (incluindo os cursos no exterior) formassem, na caserna, cidadãos mais ou menos qualificados como os egressos das universidades públicas brasileiras, esta entidade fundamental para nosso desenvolvimento que o atual governo intenta destruir.

A boa vontade nos inspirava supor que facínoras como o brigadeiro Burnier (remeto à leitura de Hélio Silva, A vez e a voz dos vencidos, precisamente o capítulo XIV, “Caso Parasar”), ou como esse coronel Ustra que fascina o presidente celerado (para citar apenas duas espécimes de um canteiro bem regado), fossem degenerescências pontuais em um coletivo tão grande de fardados.

Seria igualmente razoável, se não estivéssemos tratando de nossa história presente, supor que a incompetência crassa do capitão genocida, como a do general intendente que desmontou a saúde pública brasileira em plena pandemia, fossem meros acasos, e mero acaso fosse igualmente a qualidade dos engalanados que ocupam o palácio da alvorada, conspirando diuturnamente contra a democracia.

Mas eis que surge do anonimato o general presidente do Superior Tribunal Militar, um certo Gomes Mattos, para nos dizer que a exceção é a regra. E deita falação – péssima na forma, inaceitável no conteúdo –, convencendo-nos, afinal, de que a questão militar é mais grave do que poderíamos supor mesmo em momentos de depressão cívica. O episódio, grotesco, traz à balha a iminente necessidade de o ministério da defesa investir em cursos de reforço escolar para sua oficialidade.

O que leva um general de quatro estrelas, quase seis décadas após o golpe de 1964, vir a público repudiar a – tímida – cobertura de imprensa acerca dos vídeos de depoimentos prestados no próprio STM, certificadores de torturas e assassinatos? Vídeos nos quais o áudio de deve a intervenções de outros ministros militares?

O general, ademais, não consegue juntar sem um erro gramatical duas palavras do nosso vernáculo: balbucia como um recém-alfabetizando, as palavras saltam desconexas, num cansativo estilo tatibitate, claudicante e tosco. Trata-se, não obstante, de um general no topo da carreira e retirado da reserva para as benesses da magistratura militar. Deve ser muito apreciado pelos colegas.

Há algo de podre nesse ensino que recebeu esse oficial ainda quase menino, no colégio militar, para hoje nos entregar um general em conflito com o vernáculo e a História, desafeito ao civismo e aos princípios que regem nossa Constituição.

Arranchado na cadeira presidencial, enfatiotado em reluzente verde-oliva, coroado por alamares e torçais prateados e dourados, o peito cravejado por condecorações, o general proclama que nada têm a declarar, nem ele nem a instituição que preside por força de rodízio.

Diz que vai ignorar as cobranças da imprensa e da sociedade. Gostou do verbo ignorar, e o repete à saciedade. Simplório, supõe que, ignorando a realidade, a está revogando. Não sabe que, de fato ignorando-o como personagem menor, a História jamais esquecerá os crimes da ditadura.

Os vídeos que o general quer ignorar (não só ele​, como o inútil general vice-presidente) trazem áudios que registram a discussão em plenário, pelos ministros nomeados pela ditadura, de casos de tortura, corriqueiros nos nefandos anos 70.

Os ministros militares e civis – mostram os vídeos trazidos a público pela pertinácia do historiador Carlos Fico – ouvem os relatos e, como o atual general presidente do STM, ignoram o que ouvem, tampam os ouvidos, cegam os olhos e silenciam.

Silenciam – extrema pusilanimidade – porque as atrocidades se davam nas dependências de quartéis das forças armadas, sob o comando de oficiais superiores. Covardes os carcereiros, como os que trucidaram Mário Alves nas dependências do Quartel da Polícia do Exército no Rio de Janeiro e Stuart Angel nas dependências da Aeronáutica no Galeão, também no Rio, covardes os julgadores engalanados e os que hoje dizem ignorar (na vã expectativa de fazê-la esquecida) essa página infame da história militar brasileira. História ainda por ser contada, para que as gerações de hoje se conscientizem dos riscos que ainda ameaçam a democracia brasileira. Riscos que permanecem em face da covardia das chamadas elites brasileiras, que conciliaram com a ditadura e não ousaram apurar seus crimes.

Aceitaram uma anistia, ditada pelos militares que saiam do poder, que protegia os criminosos, evitaram uma constituinte autônoma, e ainda assinaram o art. 142 da Constituição, supervisionada pelo general Leônidas Pires (poderoso representante da ditadura decaída), que é o pretexto para a presença militar nas ruas brasileiras.

Não cabe aos engalanados dizer que país querem para nós, muito menos impor a sociedade que aprenderam a defender nos cursos de reciclagem ideológica da Escola das Américas (e nas comissões de compras em Washington).

Ao contrário, cabe à República, a ela sim, dizer qual é a missão de suas forças armadas, que sustenta com tanto sacrifício em país tão pobre e injusto, e submetê-las a esta decisão. Os fardados falam muito em disciplina e hierarquia (um meio que lhes parece ser um fim), pois o primeiro dever de obediência é às leis da pátria (da qual se julgam mães e pais), e à ordem moral que nos diz que torturar é crime.

Nossas forças armadas não cumprem com seu papel constitucional. São insubordinadas, interferem no poder civil, e deixaram de ser guardiãs da defesa nacional, associadas que hoje estão à desnacionalização da economia nacional promovida pelo governo que sustentam. Não têm condições de assegurar a incolumidade de nosso território nem guardar nossa extensa e rica costa. Não exercem qualquer poder dissuasório. Não são devidamente equipadas, nem estão interessadas nisso, pois aos seus seguidos chefes parece mais lustroso comprar equipamentos obsoletos. Não investem na indústria de armamentos e cedem nossa defesa, e a do atlântico sul, aos interesses do Pentágono, que, quaisquer que sejam, não podem ser os nossos, a não ser que que tenhamos renunciado ao direito de construir sua própria política.

Não se sabe o que fazem os chamados estados-maiores das três forças, que não tomam conhecimento do mundo que se está desenhando, ignoram o teatro das guerras e suas raízes, desconhecem as transformações que se operam na ordem mundial caduca e suas repercussões nas estratégias nacionais.

Em artigo recente, o professor Manuel Domingos Neto, que se debruça há anos sobre essas questões, nos convida a meditar sobre as limitações conceituais e estratégicas de nossas forças. Pergunta-nos: “Por que, recebendo volumosos recursos, as corporações militares ainda dependem tão profundamente de complexo industrial-militar estrangeiro para se equipar?” E prossegue em suas indagações que têm embutidas suas respostas lógicas: “Estas aquisições servem mesmo à defesa do Brasil ou, ao contrário, reforçam o poderio de potências que pretendem manter multissecular domínio sobre os povos?” Porque quem decide não é a República, mas os concílios militares, desapartados de uma estratégia nacional, de um projeto de nação e país, e assim cumprindo o papel de correias de transmissão dos interesses da potência hegemônica. Míopes, não veem o Brasil onde caminham, porque suas cabeças, seus sonhos e aspirações estão no hemisfério Norte.

A definição do papel das forças armadas brasileiras é certamente uma das questões mais relevantes deste início de século, se desejamos retornar ao leito da democracia sem sobressaltos e abrir caminho para a justiça social. Tudo o mais revela-se secundário, porque, depois da ditadura e do desastre do atual governo, urge definir nossos próximos passos: que país pretendemos legar às futuras gerações.

Definir soberanamente o papel de nossas forças se ombreia em importância ao combate ao desemprego, à desnacionalização de nossa economia, ao sucateamento da indústria, ao combate ao desemprego e à carestia que corrói o salário dos trabalhadores. Se insere na linha de defesa nacional.

***

Divulgação

ABI – Cristina Serra (foto) informa que uma de suas primeiras iniciativas na presidência da ABI será a inauguração (talvez no saguão do 9° andar”), de um painel com os nomes dos jornalistas supliciados pela ditadura. Meus aplausos.

* Publicado originalmente em Carta Capital

* Com a colaboração de Pedro Amaral

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