sexta-feira 22 de novembro de 2024

Hóspede das formigas

O amigo preso, o caminhão apreendido, a carga confiscada e um olho inútil. E ainda teve de refazer a pé boa parte do caminho de volta para casa. Esse foi o preço da liberdade que Valdevino pagou à vista.

26 de abril de 2022 4:40 por Adelmo Marques Luz

 

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(*) Adelmo Marques Luz é funcionário público, advogado e escritor

Valdevino estava desempregado há bastante tempo. E não foi por falta de iniciativa. Nas portas em que bateu só ouviu negativas sob as mais variadas desculpas. Nunca aprendeu uma arte, e sem profissão definida, apelava para o biscate como opção mais próxima. Fazia ponto na feira com seu carro de mão onde pegava fretes. Embora não fosse casado, era arrimo de família. Na qualidade de filho mais velho, ficou responsável pelo sustento dos irmãos pequenos e da mãe viúva, depois que o pai foi assassinado durante uma discussão num jogo de sinuca. Se Valdevino ganhasse algum dinheiro, todos comiam; caso contrário, ninguém dormia, pois a agonia da escassez não deixava. No inverno a situação piorava. Com a chegada das águas o movimento diminuía para desespero dos feirantes que ali negociam. A área ficava inundada, o lixo boiava e entupia os bueiros. A fedentina afastava o consumidor enojado e atraía roedores e cães famintos.

Lamentando a sorte com um amigo, motorista de caminhão, recebeu dele proposta para realizar um serviço “sujo”. Consistia em acompanhá-lo numa viagem ao interior do Estado de Pernambuco. Trariam de lá, escondida sob uma carga de maracujá, meia tonelada de maconha. Empreitada rápida, não obstante perigosa. Segundo os termos do acordo, o valor da compensadora gratificação seria pago no final da missão. E pelas contas de Valdevino, a quantia que iria embolsar garantiria a sobrevivência da família pelo resto do ano.

Receoso de se envolver em complicações, fraquejou no primeiro instante, tergiversou, mas diante das argumentações convincentes e tranquilizadoras do amigo, que era reincidente naquele tipo de crime, aquiesceu e viajaram no dia seguinte. Chegaram ao destino ainda com o dia claro. Pernoitaram carregando o caminhão e durante a madrugada empreenderam a última e mais delicada etapa do programa. Na viagem de retorno, cujo ponto de intensidade foi crescente, persistiu um clímax cortante, como se estivessem sobre um fio de navalha. O estado de flagrância, mesmo que sob a proteção dos maracujás, cujo aroma dominava o ambiente, não lhes garantia a inviolabilidade do segredo. Uma fiscalização de rotina seria suficiente para pôr tudo de água abaixo.

Às três horas da manhã estavam próximos a um povoado que não tinha energia elétrica. Embora praticamente desabitada, a área era passagem obrigatória para quem transitasse entre Alagoas e Pernambuco. Tudo transcorria sem alterações até serem surpreendidos por uma blitz à beira da estrada. Haviam armado uma ratoeira da qual ninguém escaparia, exceto rompendo a barreira à bala, o que poucos ousariam fazê-lo. Tratava-se de uma operação pente-fino. Policiais sisudos portavam armamento pesado e vasculhavam tudo, à procura de agulhas no palheiro. Nem padre usando batina era poupado. Foi um susto dos diabos. Neno, o motorista, encostou o caminhão antes de ser abordado. Mas já era tarde, pois estavam sob a mira da polícia que havia percebido a maranha. Mesmo sob o risco de uma fuga malograda, que poderia lhes ceifar a vida, optou por abrir a porta do velho Ford e correu gritando:

– Corra! Sujou! Sujou!

Valdevino também fugiu. Só que em direção contrária à de Neno que terminou sendo preso. Embrenhou-se no mato, a despeito do troar intermitente dos disparos deflagrados pela tropa. Corria desembestado e descalço, completamente perdido na escuridão da noite sem lua, por uma região que lhe era desconhecida. Chegou a temer que pudesse ser tragado por um despenhadeiro. Mas o medo de ser preso longe de casa e dos maus- tratos a que certamente seria submetido o impulsionou para frente mesmo sem ter noção de onde pisava nem aonde chegaria. Terminou esbarrando numa cerca improvisada com arame farpado que lhe vasou um olho e o levou ao chão. A circunstância o obrigou a suportar a dor sem direito a gemidos para não denunciar sua posição. Exausto e com a patrulha no seu encalço, imaginou-se perdido. Foi quando tateou um buraco e, acossado pelo pavor de uma fera ferida e na iminência de ser aprisionada, entranhou-se naquilo que parecia inacessível. A fenda era profunda, asfixiante e sinuosa. Desceu até onde pôde e lhe coube. Embora possuísse um corpo esquálido, aquele aperto lhe estorvava os movimentos, mas continuou deslizando até sumir nas profundezas. Depois de engolido pelo buraco, percebeu que se tratava de uma morada de formigas-de-roça que, ao serem molestadas com a intromissão indesejada, atacaram-no. Seu corpo ficou agasalhado por uma manta a lhe cortar a carne sem piedade, enquanto ouvia a voz aloprada da patrulha sobre a sua cabeça, bufando de ódio e cansaço, lamentando não contar com o auxílio de cães farejadores.

Ainda no abrasador esconderijo, onde suportou ser “costurado”, o fugitivo indagava se teria valido a pena haver escapado. Quando se desvencilhou do túnel, o que só ocorreu horas depois, Valdevino estava cego de um olho e com a pele tricotada como a de um sabugo. O amigo preso, o caminhão apreendido, a carga confiscada e um olho inútil. E ainda teve de refazer a pé boa parte do caminho de volta para casa. Esse foi o preço da liberdade que Valdevino pagou à vista.

 

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